25 Abril 2020
"Se a presente pandemia traz consigo uma crise civilizatória, como nós estamos percebendo, esta crise pandêmica é do vulgar, do comum, de um todo com o qual nós estamos inteiramente familiarizados", escreve Daniel Rodrigues Ramos, professor efetivo no curso de Filosofia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
1. Vivemos um tempo de pandemia. O que significa esta situação que nomeamos com esta palavra? Noticia-se que em todos os países, em toda parte, pessoas são infectadas pelo novo Coronavírus. Temos um cenário de desolação mundial, uma crise global em termos de saúde pública. Este significado epidemiológico é o significado técnico-científico da palavra. Há um significado, porém, mais elementar que interessa a esta reflexão, haurido de sua etimologia, o qual pode evocar uma pandemia ainda mais grave, embora de efeitos silenciosos. Este segundo significado de pandemia nomeia aquilo que é comum a todos os povos, aquilo é universalmente público. Por isto, significa também tudo que é vulgar, comum, usual, mas que possui proporção universal: aquilo que pertence a todo o povo, não a só a todas as etnias e sociedades, mas povo como tal, aos ocidentais no seu todo. Assim, pandemia fala de uma vulgaridade, no sentido positivo do termo, de um sentido comum que movimenta todos os povos e que atinge a inteireza do nosso modo de habitar o todo, o universo. Tomemos pandemia, privilegiadamente, neste sentido: o modo comum ou vulgar de ser de todos os seres humanos que integram a civilização e, hoje, na sua fase global.
2. Se a presente pandemia traz consigo uma crise civilizatória, como nós estamos percebendo, esta crise pandêmica é do vulgar, do comum, de um todo com o qual nós estamos inteiramente familiarizados. Estamos vivendo uma crise do ordinário, não do extraordinário; embora este vírus seja um fato científico novo, seus efeitos patológicos ainda desconhecidos na sua grande envergadura e a situação em que ele nos coloca seja um estado de exceção. Nesta perspectiva, é a crise de um modo ordinário de ser com o qual e em torno do qual nós estamos todos há muito tempo solidarizados, mesmo que esta “solidariedade” não seja ainda aquela que promova relações de responsabilidade com o cuidado da dignidade humana, com a promoção do bem comum, da saúde da terra que habitamos. Pelo contrário, é uma “solidariedade” em um modo de ser e coexistir que, por não nos unir em um originário comum, nos reunir sem exclusão em um “todo o povo” ou comum-unidade, conduz-nos a uma crise sem precedentes. Nesta perspectiva de um comum que nos solidariza, a pandemia que vivemos ainda não é uma autêntica pandemia, aquela que nos devolve de modo pleno para uma evidência da condição humana: a de que toda existência é coexistência. Em todo caso, a palavra pandemia nos ensina que vivemos a partir de um “comum” pelo qual nos solidarizamos, mas o contexto atual em que aprendemos este ensinamento nos faz ver que projetamos a nós mesmos, comunitária e publicamente, como infra-humanos, para não dizer desumanos. Es esta condição de humanização desumanizante já é há muito tempo o ordinário de nossa existência ocidental.
3. Mas o que é este vulgar com o qual estamos todos, de certo modo, solidarizados na projeção de um humano infra humano e engajados na liberação de um mundo submundano? O mais comum a nós mesmos, no nosso dia a dia, o nosso ordinário em sentido pleno, é a nossa compreensão que somos, de quem cada um de nós é, mas que se revela também como uma compreensão comum, compartilhada, isto é, como a familiaridade de uma totalidade que nos rodeia, na qual nos relacionamos, trabalhamos, produzimos, divertirmo-nos e exercemos todo o agir humano. Então, o vulgar é o modo dominante de sermos nós mesmos, de existir e coexistir (trabalho, consumo, lazer, convivência social). O contágio viral em escala planetária nos faz perceber este comum. E mais: faz-nos dar conta do quanto estávamos supostamente seguros no dia a dia, justamente ao nos mostrar que aquilo que construímos para nos protegermos de nossa própria vulnerabilidade - uma civilização com instituições baseadas na racionalidade técnico-científica – potencializa a nossa fragilidade. Assim, a pandemia nos tira todas as certezas de que estamos no rumo certo da projeção de nossa existência e coexistência, faz pensar sobre o sentido e o destino de nossa civilização ocidental. E é justamente a morte, o risco de uma destruição maciça da vida humana que nestes dias nos espreita em toda parte, que está a nos devolver para a falsa segurança com que vivíamos a partir deste modo comum e dominante de existir e coexistir. E, talvez, recorde-nos a pandemia que não estaremos realmente seguros enquanto não aprendermos a viver com as inseguranças de nossa própria finitude, a projetar e inaugurar um modo comum de existência a partir de nossas fragilidades, em vez de afastá-las a todo custo numa cotidiana evitação da morte, numa busca insaciável pela jovialidade que se faz por meio do controle e potenciação da vida com os recursos e conhecimento técnico-científicos.
4. Com a crise pandêmica, no sentido de crise do familiar, tudo está inteiramente em crise. Nada e ninguém escapa. A crise não é, portanto, somente econômica, uma crise exclusiva do capital. Ela atinge o todo de nossa existência e do nosso modo habitual de nos abrirmos para os outros, paras as coisas e estabelecermos as relações e as teias de significados que criam mundo. A pandemia do Coronavírus, portanto, aponta para uma crise do fundamental, da qual um microrganismo patógeno não é a causa, tampouco não é da crise econômica. A crise sanitária-econômica é senão o ápice de um desmoronamento mais profundo. E por ser o desmoronamento de algo tão familiar a nós, passa despercebido que o nosso modo de ser há muito já não sustenta uma vida propriamente humana sobre esta terra, neste mundo global. Por isto, certamente, contentamo-nos apenas com os importantíssimos e gravíssimos aspectos econômicos, sociopolíticos, culturais e sanitários desta crise. Sentimos, porém, a ausência do fundamental, justamente ao nos percebermos sem chão, sem terra firme para pisarmos. A pandemia nos retira a segurança que vivemos o nosso dia a dia. Neste sentido, ela é ou pode ser o kairós, o tempo de oportuno de uma compreensão do fundamental e dos riscos inerentes ao nosso modo de ser e de habitarmos conjuntamente esta terra.
5. Como se caracteriza esse modo dominante de existir e coexistir hoje? Por mais estranho que possa parecer, este modo dominante de existir e coexistir determina-se pela técnica. Nesta compreensão, a técnica não se mostra nos aparatos técnicos, ela não reside nos instrumentais e maquinarias de última geração, nas tecnologias de informação e comunicação. Também a técnica não está nas mãos dos homens, quem teria o livre arbítrio de utilizá-la para o bem ou para o mal. Pelo contrário, é o homem que está nas mãos da técnica, na medida em que ela é o sentido silencioso que está a guiar o comum, o vulgar, o ordinário, o público de nossa existência, de nossa coexistência, gerando o que se chama de civilização planetária, global, interconectada pelas tecnologias digitais, como sendo o último nome do projeto de humanização e civilizatório do Ocidente.
Como indicar este sentido? Vagamente, podemos dizer que se trata de uma disposição “interior”, de uma “vontade” de responder ao apelo para tudo pôr, dispor arbitrariamente e expor no horizonte ilimitado da exploração, articulando tudo que é numa rede de interconexões dispositivas e funcionais. Nesta direção, a técnica é algo que convoca o núcleo de nosso modo comum e vulgar; ela pertence a todo o povo.
No nosso tempo, ela é pandêmica (no sentido elementar de pandemia). E seu efeito e sua transparência é que ela cria redes mais eficazes e mais poderosas que aquelas mantidas pelas tecnologias de comunicação e digitais. A técnica trança tudo e todos, enreda em uma trama exploratória, à medida que transforma a nós e as coisas em meros dispositivos para a produção exploratória.
No horizonte da técnica, tudo que é já não é por si mesmo, mas para uma função, para uma relação com outro dispositivo. Nesta rede funcional, armada para a exploração global do planeta, já estamos também nós, na medida em que nos correspondemos ao apelo com que ela se mostra. Na técnica, nós residimos e nos movemos. Por causa disto, temos um cenário de desolação universal, peculiar ao âmbito ontológico-existencial ou, como se disse, do fundamental, no qual se instala a desolação pandêmica (no sentido sanitário, técnico-científico) do Coronavírus.
6. A técnica, portanto, é o sentido do modo comum e dominante do homem ocidental ser ele mesmo e construir a civilização (europeia, mas que se alastrou muito além das fronteiras geográficas da Europa), com o qual nós nos habituamos desde que a razão e a ciência passaram a reger o nosso projeto comum de existência. Deste modo, ela possui longa história, que acompanha o desdobramento do destino da civilização ocidental. Por conseguinte, é importante lembrar que técnica é nosso passado. Claro, não é um passado já passado, mas sim um passado presente e que tem, por certo, um longo futuro pela frente. Não o sabemos até quando o nosso futuro ainda será dominado por este passado; as previsões são impossíveis, sobretudo, no atual momento. Desse modo, é um ingênuo futurismo pensar que a técnica será o nosso futuro no sentido da promessa de uma nova civilização. Nesta acepção utópica, que esconde que a técnica é nosso passado e a responsabiliza por um promissor futuro marcado pelo lazer, pelo entretenimento, pelo o tempo livre e criativo, pelas facilidades de uma vida automatizada, ela é também uma ideologia neoliberal do progresso. Mas também, de certo modo, carece de rigor a postura crítico-denunciatória que afirma a técnica como sendo a distopia que está bem na nossa frente, isto é, em um futuro próximo, quando não já no nosso presente. Na verdade, ela rege é o nosso passado. De acordo com a temporalidade mais originária, porém, o passado está sempre na nossa frente.
7. Diante da crise pandêmica atual, já não é possível nenhuma previsão e nenhuma vanguarda intelectual. Ao contrário, pede-se de nós uma atitude serena diante da técnica. Serenidade diz, aqui, recolhimento no pensamento, meditação do inabitual e desconcertante que é o tempo presente; recusa paciente em manejar todas as categorias analíticas disponíveis como se jogasse um jogo fácil em discernir o verdadeiro do falso ( que na época digital tem a aparência do fake, que não são só as news), o correto do incorreto. Ora, de um lado, a técnica e as tecnologias digitais tem sido usadas no combate nos efeitos desastrosos que a COVID-19 acarreta para a vida humana, sobretudo, para aqueles grupos mais susceptíveis (idosos, trabalhadores informais, trabalhadores de rua, habitantes de campos de refugiados, presidiários, moradores de periferias pobres e favelas, desabrigados e população de rua, populações de sedentos e famintos etc). Este nobre uso, pois, suscita um discurso em prol da ciência, da afirmação da pesquisa científica, atesta a necessidade de revalorização desta atividade que, sobretudo, nos países em desenvolvimento, frequentemente se encontra em total descrédito.
No cenário brasileiro, viu-se a emergência deste debate, em que se digladiam, de um lado, um negacionismo pseudo religioso e neoliberal no conhecimento científico, de outro, uma reta fé na ciência e no bem estar social e sanitário da população. Este debate, além de situar exclusivamente no horizonte epidemiológico de pandemia (primeiro significado), é movido pelos motivos das artimanhas político-partidárias e escopos midiáticos. Importa, porém, ressaltar algo ainda impensado: o debate gera uma luta ideológica e dicotômica entre bem em mal, vida e morte, sem contar que no lado positivo desta luta (da vida e do bem) pode estar uma crassa e midiática supervalorização da técnica.
Esta última apenas fortalece nossa crença na falsa segurança de sistemas, instituições e estruturas de coexistência mantidas em operação pelas tecnologias. Deste modo, de outro lado, sem muito pensar, a técnica nos mobiliza a aderir às causas da crise e exaltar os motivos mais profundos da desolação atual; a considerar exclusivamente só as possibilidade de saneamento da pandemia, mas nos fazendo cegos à necessidade de cura do projeto de humanização. Nisto, reside um grande perigo, que urge a serenidade do pensamento. Pois, quando a crise é de sentido, de fundamento, facilmente se aposta no habitual, no familiar, sem perceber que é no silencioso e ordinário que medram os grandes riscos.
Então, a pandemia nos convida a uma passagem para um lugar mais fundamental e, talvez, para um pensar pachorrento, não apressado, sem o afã dos diversos messianismos seculares e vanguardismos intelectuais. Convida-nos a ver se o que é decisivo, no tempo presente, não é somente erradicar uma pandemia (no sentido técnico-científico), mas sim perceber que o que sana também pode ser uma pandemia, no sentido elementar: aquela de outro modo comum de existir, coexistir e habitar conjuntamente, como seres finitos, esta terra de recursos finitos. Convida-nos, então, a um salto para a finitude, para um lugar de cura do fundamental. O convite, porém, é a solicitação de uma ausência que se faz sentir em toda a parte, a qual deve ainda ser experimentada, percebida a fundo e pensada profundamente. Pois a pandemia do novo Coronavírus nos fala da ausência de uma genuína solidariedade em um modo finito de ser. Enfim, para o saneamento da pandemia no primeiro sentido, a técnica e a tecnologia poderão em muito contribuir. Para aquela cura em sentido fundamental, talvez não. Uma serenidade do pensar, então, é-nos exigida.
[1] Comunicação realizada em 21/04/2019, segundo do dia do I Ciclo Internacional de Debates. Utopias e Distopias: o mundo pós COVID-19. Realização: Núcleo de Pesquisa e Extensão em Filosofia (NUPEF), do Curso de Licenciatura em Filosofia, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Disponível aqui.
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Técnica e finitude do ser em tempos de pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU