14 Abril 2020
"Justamente a tomada de consciência da vulnerabilidade da pessoa humana e de seu estado de indigência nos levam a redescobrir o valor de cuidar como um princípio ético primário e fundamental. Quando reconheço o outro como pessoa e como pessoa necessitada, surge uma obrigação moral em mim de não o abandonar a si próprio, e minha pessoa se concebe cada vez mais como ontologicamente ligada aos outros por fortes laços de intersubjetividade que orientam o meu modo de agir para o cuidado", escreve Roberto Massaro, professor da Teologia Moral Sexual na Facoltà Teologica Pugliese, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 06-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Era um dia frio e ensolarado de abril e os relógios batiam treze horas”. Assim começa o famoso romance de George Orwell, 1984, no qual o escritor inglês tenta imaginar, apenas alguns anos após o final da Segunda Guerra Mundial, como a sociedade evoluirá em algumas décadas.
As fantasias do autor revelam um mundo dividido em três grandes blocos que continuam em guerra para manter o controle sobre a sociedade. Um desses poderes, a Oceania, é governado por um único partido cujo líder, Grande Irmão, espia e controla os habitantes através de enormes telas colocadas nas ruas, com regras estritas que também impedem as relações sexuais (a não ser dentro do casamento e com o único propósito de procriação).
Com um pouco de imaginação, também tentamos, nesses dias frios e ensolarados de começo de abril, imaginar um distante 2084, para vislumbrar, ainda que de maneira fictícia, as possíveis questões morais que nos afetarão no final da emergência pandêmica de Covid-19.
O Grande Irmão de Orwell impõe um regime rígido de espionagem. Não existe privacidade nem forma de liberdade individual. Graças à ajuda da polícia do pensamento e à constante e intensa propaganda, tenta-se manter a ordem na sociedade de Oceania.
A atual situação de pandemia está nos submetendo a enormes esforços, na tentativa de conter o contágio por meio de medidas rígidas de "quarentena". A autoridade política está exercendo seu poder executivo através da promulgação relativamente frequente de medidas provisórias, e o papel do Parlamento - tanto para evitar a aglomeração de deputados e senadores, quanto para eliminar a duração dos debates nos plenários- é cada vez mais redimensionado. De vários lugares chegam sugestões de controles de movimento através de tecnologias sofisticadas confiadas à geolocalização dos nossos smartphones ou carros.
É claro! Trata-se de uma emergência sanitária para a qual nenhum de nós, nem mesmo aqueles que nos governam, estavam preparados. No entanto, ressoam provocadoras as palavras de Ezio Mauro no editorial publicado no La Repubblica em 1º de abril: “A questão é o uso que o poder público pretende fazer deste ‘a mais’ que a pandemia está lhe transferindo em termos de poder. Deseja usá-lo a serviço da emergência, despendê-lo na crise ou, pelo contrário, pensa em usar a emergência por interesse privado, entrando em um espaço soberano que de outra forma lhe seria impedido?”.
Por mais grave que seja a emergência e possa realmente representar um risco para a saúde física de cada indivíduo, não se pode pensar que a melhor maneira de enfrentá-la seja pela limitação da liberdade ou da privacidade pessoal (que não seja estritamente normatizada e restringida ao longo do tempo, como preveem as constituições de outros países europeus como a Espanha, onde os poderes especiais do governo em estado de alerta sanitário estão sujeitos à aprovação e verificação do Parlamento).
A liberdade, de fato, não é apenas o exercício sem controle da própria autonomia e, muito menos, é uma faculdade que pode se expandir "até onde inicia a do outro". Não é um acessório, mas o que torna um homem plenamente tal. Portanto, não é possível a hipótese de uma sociedade futura com base na limitação sistemática de tal faculdade, mas sobre sua autêntica promoção.
Se, como o Papa Francisco nos disse no momento extraordinário da oração em 27 de março, "ninguém se salva sozinho", uma autêntica visão da liberdade humana exige a plena apreciação da inter-relação entre os indivíduos e a responsabilidade mútua de cuidar uns dos outros.
A sociedade de 1984 é devastada pelo ódio e pela suspeita. Winston, o protagonista principal da história, vive uma relação conjugal desastrosa. Ele se apaixona por Julia, mas, no começo, vive com a suspeita de que a garota seja uma espiã. Um amigo e colega dele, O'Brian, leva-o à ruína e à tortura. Mas Winston não desmorona e diz aos representantes do Partido: "Eu sei que no final serão derrotados".
Assim, também o tempo da pandemia parece nos deixar mais suspeitosos e desconfiados; terrivelmente cruel com os contaminadores; dramaticamente desconfiados com todos. No entanto, o papa ainda diz: “Caiu a maquilagem daqueles estereótipos com os quais mascarávamos nossos ‘egos’ sempre preocupados com a própria imagem; e mais uma vez ficou evidente aquele (abençoado) pertencimento comum, do qual não podemos escapar: o pertencimento como irmãos”.
A atual emergência sanitária enfatiza que o que todo ser humano tem em comum é sua constitutiva vulnerabilidade. Desde o nascimento, cada homem se apresenta ao mundo com sua bagagem de fraqueza e fragilidade e, no momento da velhice ou da doença, a fraqueza e a fragilidade retornam com toda a sua força.
Até aceitarmos essa dependência como a raiz de toda relação e motor de toda escolha ética e política, não teremos lançado as bases para uma sociedade mais justa e mais igual, e não seremos capazes de derrotar os males mais escondidos que afetam a nossa sociedade.
Justamente a tomada de consciência da vulnerabilidade da pessoa humana e de seu estado de indigência nos levam a redescobrir o valor de cuidar como um princípio ético primário e fundamental. Quando reconheço o outro como pessoa e como pessoa necessitada, surge uma obrigação moral em mim de não o abandonar a si próprio, e minha pessoa se concebe cada vez mais como ontologicamente ligada aos outros por fortes laços de intersubjetividade que orientam o meu modo de agir para o cuidado.
Tudo isso parece ainda mais verdadeiro, precisamente, olhando as histórias de muitos profissionais de saúde que, desamparados diante do avanço do vírus e sem vacinas ou terapias reconhecidas, prestam seus cuidados através de pequenos gestos de atenção e carinho para aliviar o sofrimento da solidão.
O mundo que Orwell descreve é dividido entre três grandes superpotências, Oceania, Eurásia e Lestásia. Três macro blocos em guerra constante para conquistar o domínio sobre a sociedade. Na Oceania, aqueles que aderem ao Socing (sigla para "Socialismo inglês") devem acreditar sem reservas no slogan: "Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força": um mecanismo de controle para poder garantir a submissão de todo cidadão ao poder estatal e fomentar o ódio contra os demais poderes que governam o planeta.
Esse certamente não é o cenário atual e - certamente - nem será após a pandemia. Contudo, não podemos deixar de notar como, diante da emergência sanitária, tenha faltado de imediato uma reação coordenada dos Estados envolvidos. Cada um agiu por conta própria, apressando-se imediatamente a fechar as fronteiras ou a rejeitar turistas italianos no próprio território, e a própria União Europeia, embora solidária em sua ajuda, é palco de confrontos muito acalorados que dizem respeito, principalmente, à gestão da crise econômica que se seguirá à emergência sanitária.
As ajudas de alguns países fora da UE ou, tradicionalmente, não entre os "amigos" da Itália apareceram inesperadamente. E as palavras do primeiro-ministro albanês Edi Rama, que enviou um pequeno contingente de médicos e enfermeiros para ajudar nossa nação tiveram um grande eco: "É verdade que todos estão trancados dentro de suas fronteiras e países muito ricos deram as costas a outros. Mas talvez seja porque não somos ricos e nem mesmo desprovidos de memória, não podemos nos permitir não demonstrar à Itália que a Albânia e os albaneses não a abandonam”.
Não podemos prever o impacto que esses eventos terão no quadro sociopolítico global. Podemos, no entanto, esperar que a situação atual leve os Estados a relações de maior solidariedade e colaboração profunda.
Em primeiro lugar aparece indispensável a implementação daquela ecologia cultural de que o Papa Francisco já falava na carta encíclica Laudato si': "É preciso assumir a perspectiva dos direitos dos povos e das culturas, dando assim provas de compreender que o desenvolvimento dum grupo social supõe um processo histórico no âmbito dum contexto cultural e requer constantemente o protagonismo dos atores sociais locais a partir da sua própria cultura. Nem mesmo a noção da qualidade de vida se pode impor, mas deve ser entendida dentro do mundo de símbolos e hábitos próprios de cada grupo humano." (LS 144).
Também será necessário refletir cuidadosamente sobre a alocação de recursos para a saúde e os investimentos econômicos no campo da educação e pesquisa, tanto na União Europeia quanto em nosso país. É evidente e palpável, por exemplo, o medo dos governadores e prefeitos do sul da Itália diante da possibilidade de propagação da pandemia no sul.
Se nosso sistema nacional de saúde se destaca por sua equidade social e por numerosos centros hospitalares de excelência, essa situação contingente mostrou as perigosas consequências de cortes não razoáveis e investimentos reduzidos no campo da saúde e da pesquisa.
Portanto, nem a política pode se eximir de viver a dimensão do cuidado, mediante o exercício consciente da solidariedade responsável e de uma distribuição correta e prudente de recursos.
A vida de Winston, após inúmeras vicissitudes, termina com a total adesão aos valores do Socing. Ele desistiu. Certamente seremos capazes de superar a emergência sanitária do coronavírus, mas haverá uma nova ética em 2084?
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2084 – a teologia moral após o vírus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU