03 Março 2020
Uma investigação independente encomendada pela Arca revela o passado de seu fundador: ele não apenas estava ciente dos abusos cometidos por seu pai espiritual, Thomas Philippe, como ele próprio agrediu sexualmente mulheres em acompanhamento espiritual, até 2005.
A reportagem é de Jean-Pierre Denis, publicada por La Vie, 26-02-2020. A tradução é de André Langer.
“Nós somos como anões sentados nos ombros de gigantes”, escreveu Umberto Eco, retomando a bela fórmula atribuída a um francês do século XII, Bernardo de Chartres. Cristãos em um mundo secularizado, em uma Igreja enfraquecida e presa a males abjetos, corrupção, abusos de poder, clericalismo, ideologia, nos sentimos bem pequenos na escala de uma história povoada de Blandine e Geneviève, Martinho de Tours e Vicente de Paulo, Joana d'Arc e Jeanne Jugan, Pierre Claverie e padre Hamel... Então sentimos a necessidade de subir a um plano acima de nós. “Santo súbito!”, clamava a multidão antes que João Paulo II fosse apressadamente canonizado. Quase tivemos que gritar “São Jean Vanier”.
Grande? Santo? Muitos de nós conhecemos melhor através dele a bondade do homem e através de sua obra o Reino de Deus. Até um agnóstico como Emmanuel Carrère escreveu isso! Quando encontrávamos Jean Vanier, víamos bondade. Mas a corrupção do melhor engendra o pior. Por abusos desse mesmo carisma, várias mulheres sofreram os efeitos de uma heresia místico-sexual, diabólica e grotesca, simbolicamente incestuosa, pois evocava a união de Maria e de Jesus. Esses atos, a justiça talvez os chamasse hoje de estupro. De qualquer forma, pessoas confiantes foram abusadas, contaminadas física e espiritualmente.
Certamente, ao contrário de outros, Jean Vanier deu poucas lições de moral, nem quebrou os votos. Ele não comandou as plataformas e as redes para impor seu ponto de vista nos debates da sociedade. Mas se Jean Vanier testemunhou o Evangelho e fez muito bem a tantas pessoas, Jean Vanier mentiu seriamente, mantendo um sistema de corrupção, protegendo até o fim seu guru. Este homem lúcido, a ponto de renunciar ao seu papel de liderança na Arca, foi obscurecido por abusar de sua impressionante estatura. Essas duas realidades provocam uma dissonância cognitiva. Temos problemas para conciliá-los. No entanto, será necessário.
Nossa época tem a solução: corta e joga sem detalhes, em um grande escárnio niilista e maniqueísta ao mesmo tempo, cínico e puritano simultaneamente. Não acreditamos mais no bem e na moral, mas queremos estar do lado certo. Em fevereiro de 1942, escrevendo as últimas linhas de sua obra-prima, Autobiografia: o mundo de ontem (Zahar, 2014), Stefan Zweig escreveu o seguinte: “Toda sombra é, em última análise, também filha da luz. E só quem conheceu a claridade e as trevas, a guerra e a paz, a ascensão e a decadência viveu de fato”. Como podemos distinguir entre a luz e a sombra, o trigo e o joio, a obra de Deus e a parte do diabo? Devemos separá-los? Podemos? Devemos reler a parábola do trigo e do joio, no Evangelho Segundo Mateus. O mestre dissuade os servos de arrancar a má semente que o inimigo semeou durante a noite entre a boa semente. “Pode acontecer que, arrancando o joio, vocês arranquem também o trigo”.
Nós, além disso, somos trigo ou joio? “Não importa como compartilhamos a vida das pessoas pobres e destruídas, somos chamados a tocar nossa própria pobreza”. Reli esta frase de Jean Vanier e digo a mim mesmo que ele estava falando sobre si e nós. As revelações apavorantes dão um significado mais justo à obra: não há, de um lado, os deficientes do corpo ou da alma e, de outro, os saudáveis, assim como não há, de um lado, os gênios e, de outro, os pobres diabos. Em todos os lugares e sempre, há humanos feridos e aqueles que ferem, formidáveis, mas miseráveis. É preciso nunca ter vivido ou lido Freud para pensar que a libido é uma coisa racional, que o sexo pode ser enquadrado em um contrato esclarecido. É preciso nunca ter aberto um Bernanos para acreditar que sempre podemos nos proteger do sol de Satanás. Nos seres humanos, nem a grandeza nem a santidade são a perfeição, mas um reflexo da graça que ilumina nossas misérias. Só Deus é santo, pois só Deus é grande.
Os gigantes, portanto, podem tropeçar. E quando isso acontece, nós, que estamos sentados nos seus ombros, choramos de indignação. O que? O que está acontecendo conosco? Com que direito eles nos jogaram por terra? O que eles fizeram com seu dever de exemplaridade? Literalmente, caímos de cima. “Não é isso, não ele...”. Queda dolorosa, mas progresso espiritual prometido. O batismo não é um certificado de garantia. Ele não oferece virtude, prestígio ou segurança. Se somos cristãos, não somos melhores. A única diferença é que nos sabemos feridos. A única esperança da qual não podemos nos privar é Jesus.
Por todas essas razões, os líderes da Arca fizeram bem em exercer seu direito de inventariar a herança de Jean Vanier. Sua coragem é bem-vinda, seu trabalho continua, isso dará frutos no longo prazo e para toda a Igreja Católica. Na verdade, a exigência agora é dupla. Por um lado, não mandar tudo à merda, não jogar os pobres com a água desse banho sujo. Por outro lado, amar cada dia mais a verdade que liberta. Nossa geração tem o dever de fazer o trabalho triste e a obrigação de realizar essa tarefa nojenta com honestidade, humildade e senso crítico, como um serviço ingrato, mas também como uma forma mais completa de testemunho cristão. Se o caso Vanier nos ensina tudo isso, viva a crise...
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos, a ser realizado nos dias 14 e 15 de setembro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos
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Jean Vanier, superar o choque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU