Ficção papal: ‘Dois Papas’

Cena do filme 'Dois Papas'. | Foto: Reprodução/Netflix

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

09 Janeiro 2020

"Travessias gloriosas acontecem, realmente, apesar de todos os nossos erros. E, às vezes, a tradição e o progresso se encontram – e se abraçam. É essa a mensagem edificante de 'Dois Papas'. Quem dera pudesse acontecer na Roma da vida real".

O artigo é de Rita Ferrone, autora de vários livros sobre liturgia, incluindo “Liturgy: Sacrosanctum Concilium” (Paulist Press), publicada por Commonweal, 23-12-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis o artigo.

“Qualquer travessia, por mais gloriosa que seja, pode começar com um erro”. Eis a observação feita pelo Cardeal Jorge Mario Bergoglio na cena de abertura de “Dois Papas”, filme de Fernando Meirelles, ao pregar entre os pobres de uma favela de Buenos Aires. A frase aponta para os temas centrais do longa-metragem: transformação, reconciliação e esperança no futuro. A cena, filmada na Argentina, conta com a energia do povo e do lugar. Um caleidoscópio de cor e atividade em breve passa a um momento de quietude e atenção na medida em que Bergoglio fala. O arcebispo se põe de pé no meio de todas essas pessoas: não sobre elas, mas com elas. E elas o escutam.

Mas qual é o erro? A primeira resposta possível que o filme dá é que Bergoglio (interpretado por Jonathan Pryce) decide renunciar de seu posto à frente da Igreja de Buenos Aires. Ele sente-se cansado com a direção que a Igreja está tomando e deseja se retirar. Já que as suas repetidas cartas ao Papa Bento XVI permanecem sem resposta, planeja uma viagem a Roma para pressionar pessoalmente o pontífice a deixá-lo se aposentar.

Não sabe ele que, ao mesmo tempo, o Papa Bento está contemplando a sua própria renúncia. O que impede Bento de se aposentar, no entanto, é o medo de que Bergoglio possa sucedê-lo. No conclave de 2005, no qual Bento foi eleito, Bergoglio foi um forte concorrente. O público esqueceu este fato durante o conclave de 2013; muitos acham que Bergoglio veio do nada.

Mas a perspectiva de uma ascensão de Bergoglio não se perdera para Bento. Ele manteve o argentino sob sua observação. E não gostou do que viu: uma demasiada disposição a romper as regras e um respeito pequeno demais pela tradição. Bento passa a considerar Bergoglio um inimigo seu, alguém de quem ele discorda tão fundamentalmente que teme aquilo que poderia acontecer à Igreja caso o argentino assuma a Cátedra de Pedro. Bento (interpretado por Anthony Hopkins) decide encarar os seus medos. Assim que Bergoglio se prepara para ir a Roma, Bento o convoca para um encontro face a face, para finalidades dele próprio. “Finalmente ele deve ter recebido a carta que enviei”, diz Bergoglio para si, não percebendo que existe uma outra pauta em jogo.

Essa história é engraçada. E, na verdade, “Dois Papas” está cheio de partes bem-humoradas, desde choques entre opostos até expectativas frustradas e convergências inesperadas. (Um momento de fazer rir: a trilha sonora que acompanha a entrada solene dos cardeais à Capela Sistina para o conclave de 2005 de repente passa a tocar partes de “Dancing Queen”, da banda Abba. Alusão a Frédéric Martel?) Ela é também um tema sério: o encontro entre Bento e Bergoglio se transforma em um diálogo de três dias durante o qual o drama central do filme se desenrola.

O primeiro encontro entre os dois acontece em um jardim bem cuidado na residência papal de verão – em contraste com as ruas agitadas da Argentina que o espectador acabou de ver. E, claro, isso não é por acaso. Todos os clichês relacionados às diferenças entre os dois papas vêm à tona. Bento vive em isolamento real. É severo, e mesmo censurador. Bento se preocupa em proteger a Tradição e a Verdade, com iniciais maiúsculas. Lembrando que as indignidades da velhice estão sobre ele, o religioso recebe comandos de seu relógio para que “continue” toda vez que para em sua caminhada. No entanto, é um homem antiquado e sua vontade forte fica exposta. O papa idoso de Hopkins sabe que uma mudança está por vir, mas a resiste com cada fibra de seu ser.

O Bergoglio de Pryce é o contraste perfeito. Com inteligência e um ar cativante, e auxiliado por uma estranha semelhança com Francisco, Pryce rapidamente ajuda a criar o contraste entre o seu personagem e Bento. Bergoglio evita o luxo e vive de forma simples. Verdadeiro filho da Argentina, é apaixonado por futebol e sabe dançar tango. Gosta de sua comida. Acima de tudo, gosta de estar com o povo. (A certa altura, Bento aparece em uma cena e se surpreende ao ver que Bergoglio fez amizade com o jardineiro; juntos exaltam os méritos do orégano.) Em todo o filme, como é de se esperar, Bergoglio usa calçados pretos desajeitados e carrega a sua famosa maleta preta desgastada. Na maleta ele leva a sua carta de renúncia, a qual colocará na presença de Bento sempre que houver uma oportunidade – prática que fica mais engraçada sempre que se repete. Esta sua persistência obstinada em levar a cabo sua missão é um indicativo de sua própria força de vontade. Ele não desiste facilmente.

Também não há indícios de que Bento ficou particularmente preocupado com a ideia de o cardeal argentino assumir o seu posto em Roma.

Na medida em que o encontro dos dois avança, Bento passa a desafiar Bergoglio quanto ao seu passado, enquanto Bergoglio responde com uma defesa vívida de suas decisões e prioridades. A discussão que se segue é um resumo do princípio filosófico sobre o qual os dois papas discordam, ou pelo menos que os faz ter abordagens práticas distintamente diferentes. Isso, no entanto, é tratado de modo simplista. Em momento algum “Dois Papas” se torna um filme sobre ideias; não há a tentativa de traçar as matizes de seus respectivos pontos de vista. Meirelles contorna a fórmula já assentada pelo tempo de pôr, uma contra a outra, duas personalidades opostas.

No entanto, ao passarem o tempo juntos, o que falam entre si torna-se um pouco mais pessoal, mais íntimo e mais humano. Com flashbacks, aprendemos como o jovem Bergoglio decide ser padre jesuíta. Em um momento de decisão na vida, uma conversa por acaso com um inteligente padre, que ele nunca havia visto antes e quem aconteceu de estar morrendo de leucemia, ajuda-o a definir seu futuro. Será esta conversa inesperada com um estranho bondoso talvez o erro que se abre a uma travessia gloriosa?

Essa travessia, porém, não é tão gloriosa. Também com flashbacks, aprendemos sobre o jovem Bergoglio, interpretado pelo ator argentino Juan Minujín. Há cenas duras de ver, que retratam eventos ocorridos durante a ditadura. Bergoglio foi de fato influenciado por uma comunista, uma mulher diretora de um laboratório de química, figura que ele respeitava profundamente. A sua filha foi levada pelo regime, e ela mesma mais tarde seria presa e morta.

Vemos os erros que Bergoglio comete depois de ser nomeado provincial de sua ordem religiosa ainda em idade precoce para o cargo. O filme retrata a história verídica de como ele ordenou a saída de dois jesuítas do ministério que realizavam na linha de frente junto aos pobres durante a Guerra Suja, por temer a segurança deles, e a suspensão que emitiu ao vê-los se recusar. O que ele não previu foi que esta suspensão seria interpretada como uma suspensão da proteção dada pela Igreja; os dois religiosos foram levados, detidos e torturados.

Anos mais tarde, um destes padres o perdoou; o outro nunca o fez.

Aprendemos ainda sobre a luta de Bergoglio com a culpa por não ter feito mais para salvar aqueles que eram visados pelo regime. Vemos como ele carrega dentro de si a sua própria consciência do pecado e da indignidade ao se retirar em Córdoba, onde sua comunidade o enviou depois deste período tumultuoso e divisor.

A esta altura já consideravelmente desarmado, Bento escuta e tenta consolar Bergoglio. Confidencia a sua sensação de solidão espiritual e revela a decisão de renunciar ao papado. No final da cena, Bento é levado a confessar os seus pecados e pede absolvição sacramental, o que Bergoglio lhe dá apesar de ter ficado profundamente chocado com o que ouviu.

Os papéis agora estão invertidos. Bergoglio se esquece de pressionar Bento a aceitar seu pedido de renúncia do arcebispado e tenta, pelo contrário, dissuadir Bento de renunciar ao papado. Por quê? Porque a tradição o exige! O reformador não quer uma mudança tão grande assim afinal!

Enquanto isso, Bento perde a sua resistência à ideia de ter Bergoglio como seu sucessor. Talvez o líder de Buenos Aires é simplesmente aquele que a Igreja necessita como pontífice. O defensor da tradição se transforma no homem que rompe com a tradição! E assim entendemos que os dois olharam para dentro do coração, um do outro, com compaixão. Isso transforma tudo.

Tudo isso, evidentemente, é ficção. Apesar da resolução emocionalmente satisfatória do filme, precisamos lembrar que nada disso aconteceu de fato. Esse diálogo nunca ocorreu. A confissão e o perdão não foram dados nem buscados. Bento nunca usou de sua influência para apoiar Bergoglio no conclave de 2013 (segundo muitos jornalistas, ele apoiou Angelo Scola, de Milão, e Marc Ouellet, de Quebec), e em todo caso um papa emérito não escolhe o seu sucessor. Não há indícios também de que Bento se preocupou com a ideia de Bergoglio assumir o posto em Roma, ou que acabou mudando de ideia no fim. Embora Francisco tenha mostrado uma grande bondade e solicitude para com o seu antecessor, os dois nunca se tornaram aquilo que poderíamos chamar de melhores amigos.

A ideia ficcional mais preocupante, entretanto, é a confissão de Bento a Bergoglio. Meirelles abafa o diálogo, então não ouvimos realmente o que é dito. Mas somos levados a acreditar que Bento confessa ter transferido conscientemente padres predadores – algo não presente em sua biografia real. Essa admissão de culpa é prefaciada por uma referência vaga a Marcial Maciel, notório abusador sexual fundador dos Legionários de Cristo. No entanto, o papel de Ratzinger nesse caso foi bem diferente daquele que o filme sugere. Longe de facilitar o trabalho de Maciel, Ratzinger, na qualidade de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, esforçou-se para destituir aquele religioso do ministério; João Paulo II foi quem resistiu. Como papa, Bento finalmente se livrou de Maciel, sentenciando-o a uma “vida de oração e penitência”.

Será que Ratzinger transferiu padres predadores enquanto trabalhou como arcebispo de Munique? Tudo é possível, e certamente esse tipo de coisa aconteceu em muitas dioceses. Mas não é um fato conhecido que Bento assim o fez, e um tema como esse – de admissão de culpa – está longe de ser um embelezamento artístico inofensivo. Coisa assim é radioativa.

Obviamente, Meirelles quis dramatizar uma relação na qual dois homens reconhecem seus pecados e confidenciam um ao outro os seus sentimentos de indignidade pelo grande trabalho a que foram chamados a realizar. E muitos espectadores adoram ver antagonistas chegarem ao perdão e à reconciliação. A dinâmica imaginada entre os dois religiosos é o aspecto mais envolvente do filme, mais hilário e também o mais carregado de significado – e a cena da confissão faz parte desta dinâmica. Mesmo assim, sugerir cumplicidade com escândalos de abuso sexual sem uma âncora firmemente assentada complica, na verdade, desnecessariamente a coisas. Não havia algo para representar no filme sobre o qual Bento de fato sentiria remorso?

Travessias gloriosas acontecem, realmente, apesar de todos os nossos erros. E, às vezes, a tradição e o progresso se encontram – e se abraçam. É essa a mensagem edificante de “Dois Papas”. Quem dera pudesse acontecer na Roma da vida real.

 

Leia mais