30 Março 2019
O que parece ter acontecido no caso da demissão do conselho editorial do caderno “Donne Chiesa Mondo” (Mulheres Igreja Mundo), do jornal L’Osservatore Romano, “é que Scaraffia se deparou com um novo editor geral que não a considerava como o único árbitro e ponto de referência para todas as coisas relativas às mulheres. Ela preferiu renunciar ao invés de cooperar com ele dentro de um quadro maior de colegialidade”.
O artigo é de Rita Ferrone, autora de vários livros sobre liturgia, incluindo “Liturgy: Sacrosanctum Concilium” (Paulist Press), publicado por Commonweal, 28-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu nunca fui muito apaixonada pela ideia de um “suplemento das mulheres” no L’Osservatore Romano. O que isso diz sobre a publicação principal? Que ele é um jornal de homens – e pretende permanecer assim?
Em 2012, por desejo de promover as mulheres, o Papa Bento XVI pediu ao então editor do jornal, Giovanni Maria Vian, abrisse espaço para que Lucetta Scaraffia, uma historiadora e autointitulada feminista, escrevesse sobre questões femininas no L’Osservatore Romano.
Com a bênção de Vian, ela passou a desenvolver o suplemento mensal “Donne Chiesa Mondo”, que agora é distribuído em italiano, espanhol e francês (inglês somente online) e tem uma tiragem de cerca de 12.000 edições impressas.
Scaraffia e todo o seu conselho editorial renunciaram no dia 27 em protesto por terem sido submetidos a um “controle masculino” na forma de um novo editor que entrou a bordo em dezembro para substituir Vian, outro experiente jornalista chamado Andrea Monda. As tensões surgiram ainda em janeiro, quando Monda teve a temeridade de comparecer a uma das reuniões editoriais do “Donne Chiesa Mondo” e fazer algumas sugestões. Imediatamente, elas ameaçaram sair.
Monda recuou, e todos ficaram em seu lugar. Mas, depois, ele publicou alguns artigos de e sobre as mulheres no jornal principal, o L’Osservatore Romano – artigos que Scaraffia não havia lido antecipadamente nem endossado. Eu li alguns deles; eram bem escritos e não mostravam nenhuma abordagem marcadamente diferente daqueles encontrados no “Donne Chiesa Mondo”. Mas talvez tenha sido por isso que eles foram percebidos como uma ameaça.
Tendo lançado o desafio diante do novo editor, Scaraffia e seu conselho estavam sendo desafiadas com sucesso por outras mulheres que estavam produzindo um excelente jornalismo, mas não na sua equipe; elas não eram mais a única presença feminina no L’Osservatore Romano. A gota d’água veio quando Scaraffia e companhia descobriram que a publicação principal estava planejando promover uma conferência sobre as mulheres. Nesse ponto, elas “jogaram a toalha”.
Quando surgiu a notícia da renúncia dessas sete mulheres – anunciada em uma carta aberta ao Papa Francisco e em um editorial no “Donne Chiesa Mondo” – é claro que a imprensa fez a cobertura. A história foi contada por todas as principais agências de notícias, com a interpretação sombria de que o sexismo da Igreja Católica mais uma vez estava em ação no incidente. A instituição patriarcal expulsou a brava feminista que violou as barricadas! Tudo era descrito como uma luta das mulheres contra uma instituição totalmente masculina.
As mulheres que Monda havia contratado por conta própria para escrever sobre questões femininas eram tidas como marionetes, enquanto a única entidade feminina “independente” era a de Scaraffia e do seu conselho editorial. O próprio Monda foi reduzido a um simples dado no incidente, uma “figura do controle masculino” em vez de um indivíduo com ideias e aspirações dignas de consideração. Ele nem sequer é padre, mas várias publicações alertaram ameaçadoramente contra o “controle clerical”.
O momento da renúncia também aumentou a sua qualidade explosiva. O “Donne Chiesa Mondo” recentemente gerou grande repercussão ao publicar uma história sobre freiras que são abusadas por padres que foram encobertos em todo o mundo. Foi talvez o maior momento de atenção pública. Isso levou até à admissão por parte do Papa Francisco de que tais abusos ocorrem e devem ser erradicados.
A divulgação do escândalo foi um triunfo, mas o momento das renúncias subsequentes, então, se entregou facilmente a uma falácia post hoc ergo propter hoc. A história das renúncias tornou-se não só o conto da feminista solitária no Vaticano recusando-se a se submeter aos homens; também se tornou uma história das bravas informantes sobre o abuso de freiras sendo punidas por dizerem a verdade. Na realidade, o conflito já estava fervendo em janeiro, bem antes de a história sobre as freiras ter sido publicada no início de março.
Ao longo de seus sete anos como editora do “Donne Chiesa Mondo”, Scaraffia ganhou um reconhecimento e uma influência consideráveis. A revista em si também recebeu elogios. Ela e seu conselho editorial apenas de mulheres escolhidas a dedo operavam autonomamente em relação ao restante do L’Osservatore Romano. Até dezembro passado, ela também atuou como consultora editorial do L’Osservatore Romano. Ela se tornou uma pessoa procurada para entrevistas e amplamente citada na imprensa secular.
As opiniões de Scaraffia não são facilmente classificáveis. Ela é a favor do aborto legalizado, mas contra o controle de natalidade artificial. Ela se opõe ao casamento gay e à ordenação de mulheres, mas favorece as mulheres cardeais. Em uma entrevista recente, ela criticou a cúpula sobre os abusos convocada pelo Papa Francisco por planejar emitir diretrizes para os bispos para lidar com a crise dos abusos (para que eles precisam de diretrizes? Eles devem saber que o abuso está errado). Quando Marie Collins renunciou em protesto da comissão vaticana para a proteção dos menores, Scaraffia, surpreendentemente, não saiu em sua defesa. Ao contrário, ela escreveu um artigo denunciando a imprensa por cobrir o abuso sexual na Igreja, embora negligenciando-o em instituições civis. A maior parte do seu mandato ocorreu sob o Papa Francisco, mas ela relata que está mais frequentemente em contato com o Papa Emérito Bento XVI.
Então, o que devemos fazer diante dessas dramáticas renúncias? Como devemos ler o conflito que as precipitou? A ideia de que as mulheres da publicação estão sendo marginalizadas agora me parece bastante fora de lugar. Elas não estão sendo marginalizadas. Há mais mulheres escrevendo do que nunca, e há mais questões femininas sendo escritas sobre o assunto do que nunca. O financiamento para o “Donne Chiesa Mondo” não foi cortado, mesmo que cortes tenham sido feitos no orçamento do jornal diário.
O que parece ter acontecido é que Scaraffia se deparou com um novo editor geral que não a considerava como o único árbitro e ponto de referência para todas as coisas relativas às mulheres. Ela preferiu renunciar ao invés de cooperar com ele dentro de um quadro maior de colegialidade.
É o seu direito e privilégio. Colocar a questão como uma luta titânica contra o “controle masculino” e em prol da “independência” feminina, no entanto, parece-me errado. Há mulheres de espírito independente em ambos os lados dessa história. O objetivo – ou assim pensava eu – era a robusta inclusão de mulheres nesse venerável, embora um pouco abafado, jornal vaticano. Parece-me que esse objetivo está sendo perseguido pelo atual editor. Ironicamente, a queixa sobre o “controle masculino” parece estar focada em proteger um feudo separado para as mulheres, em vez de promover as mulheres como iguais em todos os níveis.
Isso me traz de volta à ideia de um “suplemento das mulheres”. Monda disse que ele continuará, e isso pode funcionar bem. Mas eu me pergunto se uma iniciativa segregada é realmente uma boa ideia em longo prazo. Eu preferiria ver as preocupações, a experiência e a consideração que estão presentes no suplemento espalhadas pela publicação principal, e preferiria que as questões femininas se estabelecessem como parte das suas reportagens habituais, em vez de serem sequestradas em uma publicação separada. O fato de ter uma questão feminina “ao lado” não é apenas outro modo de dizer que os homens não precisam prestar atenção?
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Não culpem o patriarcado. Scaraffia e a saída do L'Osservatore Romano. Artigo de Rita Ferrone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU