06 Janeiro 2020
"O filme é uma bela metáfora da condição humana, de dois modos diferentes de realizar a humanidade, que não se opõem mas se compõem e se completam, uma com a ternura e a outra com o rigor", escreve Leonardo Boff, teólogo, em artigo publicado em seu blog, 02-01-2019.
Acabei de assistir o filme do consagrado cineasta brasileiro Fernando Meirelles: Dois Papas.
Considero o filme técnica e esteticamente bem elaborado, feito nos próprios espaços grandiosos do Vaticano. Sua base é fundada em fatos históricos, evidentemente, com a criatividade que este tipo de arte permite, particularmente na construção dos diálogos. Mas neles se entrevê suas respectivas teologias e afirmações conhecidas.
O que digo é opinião estritamente pessoal. Tive o privilégio de conhecer a ambos os Papas pessoalmente e com os quais entretive e entretenho relações de certa proximidade e até amizade.
Com o Prof. Joseph Ratzinger tenho uma dívida de gratidão por ter apreciado minha tese doutoral sobre “A Igreja como Sacramento Fundamental no Mundo secularizado”, volumosa, mais de 500 páginas impressas. Ajudou-me financeiramente com uma soma considerável de marcos e encontrou um editora para sua publicação, pois ninguém queria assumir o risco de lançar um livro desta proporção. A acolhida na comunidade teológica internacional foi grande, considerada uma obra fundamental, especialmente pelo renomado especialista em Igreja Jean Yves Congar, dominicano francês.
O Prof. Ratzinger é uma pessoa finíssima no trato, extremamente inteligente e nunca o vi alçando a voz; mas é muito tímido e reservado.
Ao saber de sua eleição a Papa, logo pensei: “É um Papa que vai sofrer muito, pois talvez jamais tenha abraçado pessoas, mesmo uma mulher e se exposto às multidões”.
Nossa amizade se fortaleceu porque durante cinco anos, a partir de 1974, toda semana de Pentecostes (por volta de maio) cerca de 25 teólogos e teólogas progressistas, renomados do mundo inteiro, nos encontrávamos em Nimega na Holanda ou em outra cidade europeia. Durante uma semana discutíamos ecumenicamente, acompanhados por um pequeno grupo de cientistas, inclusive de Paulo Freire, sobre temas relevantes do mundo e da Igreja. Editávamos uma revista Concilium que se publicava em 7 línguas que ainda continua a ser publicada (no Brasil pela Editora Vozes). Aí colaboraram as melhores cabeças mundiais, nas várias áreas do conhecimento que vai da sexualidade, da Teologia da Libertação, à moderna cosmologia.
O Prof. Ratzinger sentava-se quase sempre ao meu lado. Depois do almoço, enquanto quase todos tiravam uma sesta, eu e ele passeávamos pelo jardim, discutindo temas de teologia, nossos preferidos, Santo Agostinho e São Boaventura, dos quais li praticamente toda obra.
Feito Cardeal e Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, teve a ingrata missão de me interrogar sobre o livro Igreja: carisma e poder em 1984. Ele cumpria institucionalmente sua função de interrogador e eu de defensor de minhas opiniões. Foi um diálogo firme, mas sempre elegante da parte dele, mesmo quando, após o interrogatório, tivemos um encontro já mais duro com ele e os Cardeais brasileiros Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Aloysio Lorscheider, que me acompanharam em Roma e testemunharam a meu favor. Éramos três contra um. Devo reconhecer que ele se sentia constrangido.
Depois de um ano, recebi a solução do processo doutrinário com a deposição da cátedra de teologia, de minhas funções na Editora Vozes e a imposição de um “silêncio obsequioso” que me impedia de falar, de ensinar, de dar entrevistas e de publicar qualquer coisa. A decisão final após o interrogatório foi feita por 13 cardeais (13 para desempatar). Soube mais tarde, através de um emissário de seu secretário particular que ele, Card. Ratzinger, votou a meu favor mas foi voto vencido. Cabe dizer que sempre que jornalistas perguntavam a ele sobre mim, respondia, com certo humor, que sou “ein frommer Theologe” ( um teólogo piedoso) que um dia vai aprofundar seu verdadeiro caminho teológico.
O filme não retrata a figura fina e elegante que o caracteriza. Em certa cena, levanta a voz e quase grita, o que, me parece, totalmente inverossímel e contra seu caráter.
Apesar de estarmos agora em situações diferentes, ele Papa e eu um teólogo promovido a leigo, nunca perdemos a amizade. Por seus 90 anos, ao ser organizado um Festschrift (um livro de homenagem), no qual muitos notáveis escreveram, a pedido dele solicitaram-me que escrevesse meu testemunho a seu respeito, o que fiz, prazerosamente. A amizade é mais forte que qualquer doutrina sempre humana.
Com referência ao Jorge Mario Bergoglio, agora Papa Francisco, diria o seguinte: conhecemo-nos em 1972 no Colégio Máximo de San Miguel em Buenos Aires, cada um discorrendo sobre a singularidade do caminho espiritual de Santo Inácio de Loyola (ele) e o caminho espiritual de São Francisco (eu). Aí discutimos a vertente da teologia da libertação de tipo argentino (do povo silenciado e da cultura oprimida) e a nossa brasileira e peruana (sobre a injustiça social e a opressão histórica sobre os pobres e afrodescendentes). Deste encontro há uma foto que ele, desde Roma, teve a gentileza de me mandar, onde aparecemos, todo um grupo de teólogos e teólogas, a maioria não mais entre nós, alguns perseguidos e torturados pela repressão bárbara dos militares argentinos ou chilenos. Depois nos perdemos de vista.
Ele é o terceiro da esquerda para a direita e eu o segundo da esquerda
Soube pelo seu professor de teologia, recentemente falecido, Juan Carlos Scannone, o representante maior da teologia da libertação argentina, que Bergoglio entrou para a Ordem Jesuíta como vocação adulta (era químico antes, como aparece no filme). Entusiasmou-se logo com a teologia da libertação e aí mesmo fez um voto que cumpriu sempre, mesmo como cardeal de Buenos Aires: toda semana passar uma tarde ou mesmo um dia numa favela (villa miseria), sempre sozinho, entrando nas casas e conversando com todo mundo.
Foi Superior Maior da Província dos Jesuítas da região de Buenos Aires. Era muito rigoroso. Aqui teve que enfrentar uma situação gravíssima que carregou no coração até os dias de hoje: dois jesuítas, o padre Jalics e o padre Yorio (que conheci pessoalmente em Quilmes) viviam numa favela, apoiando os pobres e marginalizados. Quem trabalhava com o povo, como no Brasil de 1964 (e talvez também hoje sob o novo governo) seriam considerados marxistas e subversivos. Eram vigiados pelos órgãos de segurança dos militares. Bergoglio soube que seriam sequestrados com as torturas que se seguiam. Tentou salvá-los até apelando ao voto de obediência, típico de sua Ordem, no sentido de abandonarem a favela para não serem vítimas da repressão.
Eles argumentaram de forma evangélica: “um pastor não abandona seu rebanho, seu povo; participa de seu destino; vale mais obedecer ao Deus dos pobres do que obedecer a um superior religioso”.
Efetivamente foram sequestrados e duramente torturados. Jalics se reconciliou com Bergoglio e vive na Alemanha, enquanto Yorio se sentiu abandonado e distanciou-se dele (morreu no Uruguai, anos atrás). Pude sentir sua amargura pessoal, ao mesmo tempo que procurava entender o impasse que uma autoridade religiosa, com responsabilidade, enfrenta em situações-limite. Mesmo assim, Bergoglio escondeu a muitos no Seminário Maior de San Miguel ou os levou até a fronteira de outro país para fugirem da morte certa.
Ao ser eleito Papa, voltamos a nos comunicar. Sabendo que havia me ocupado intensivamente com o tema da ecologia integral, envolvendo a Casa Comum, a Mãe Terra, solicitou-me subsídios, coisa que fiz com assiduidade. Mas logo me advertiu: “não mande os textos para o Vaticano, pois não me serão entregues (o famoso sottosedere da Cúria: sentar em cima e esquecer), mas envie-os diretamente ao embaixador argentino junto à Santa Sé, especialmente aquele que todos os dias, bem cedo, toma o chimarrão (el mate), comigo”. Assim fiz sempre, mesmo com textos sobre o Sínodo Pan-amazônico de 2019. Respondeu várias vezes agradecendo.
Ao escolher o nome de Francisco sob inspiração de seu amigo brasileiro, o Card. Dom Cláudio Hummes que lhe sussurrou logo fazer uma opção clara pelos pobres, ele se transformou. O rigor jesuítico se uniu com a ternura franciscana. Com os problemas internos da Cúria, a pedofilia, a corrupção financeira dentro do Banco do Vaticano é extremamente rigoroso. Contrariamenete, com o povo é visivelmente terno e fraterno.
Nenhum Papa anterior castigou tão duramente o sistema que perdeu a sensibilidade, a solidariedade com os milhões de pobres e famintos, a capacidade de chorar e que são adoradores do ídolo do dinheiro. Depredam a natureza e são anti-vida e anti-Mãe Terra. Não precisamos declarar a que sistema se refere. Sua opção pelos pobres é altissonante. Tornou-se por suas posturas corajosas face à emergência ecológica da Terra, ao aquecimento global e à desumanização das relações humanas, um líder religioso e político. Sua voz é ouvida e respeitada pelo mundo afora.
O propósito do filme é mostrar dois modelos de personagens religiosas e dois modelos de Igreja.
Primeiramente mostra como ambos, Ratzinger e Bergoglio, são humanos, profundamente humanos. Nesse sentido: ambos possuem seu lado luminoso e também seu lado sombrio. O Papa Bento XVI sua leniência com os pedófilos. Não devemos esquecer que escreveu a todos os bispos, sob sigilo pontifício que jamais deve ser quebrado, de não entregar os padres e os bispos pedófilos aos tribunais civis. Isso desmoralizaria a instituição Igreja. Deviam, sim, confessar-se do pecado e ser transferidos para outro lugar. O Papa não se deu conta suficientemente de que não tinha a ver apenas com um pecado perdoável pela confissão. Tratava-se de um crime contra inocentes que a justiça comum deve investigar e punir. Não se pensou nas vítimas, apenas na salvaguarda da imagem da instituição-Igreja.
O Papa Bento XVI colocou-se na esteira do João Paulo II que era moral e doutrinariamente conservador. Procurou relativizar o arggiornamento do Concílio Vaticano II (1962-1965). Via a Igreja como uma fortaleza sitiada por todos os lados por inimigos, vale dizer, pelos erros e desvios da modernidade. A solução que se propunha era a de voltar à grande disciplina anterior, vinda do Concílio de Trento (século XVI) e do Concílio Vaticano I (1870). A centralidade era a ortodoxia e a sã doutrina, como se fossem as prédicas que salvassem e não as práticas.
Nesta linha o Card. Joseph Ratzinger foi rigoroso: mais de 110 teólogos ou teólogas foram condenados, depostos de suas cátedras, silenciados (no Brasil Yvone Gebara e eu pessoalmente) ou de alguma forma punidos. Um deles, excelente teólogo, foi condenado sem receber nenhuma explicação. Ficou tão deprimido que pensou em suicidar-se. Só se curou quando foi à América Central trabalhar com as comunidades eclesiais de base. Viveu-se um inverno eclesial severo. Toda uma geração de padres foi formada nesse estilo doutrinário e com os olhos voltados ao passado, usando os símbolos do poder clerical. Igualmente, toda uma plêiade de bispos foram sagrados, mais autoridades eclesiásticas ortodoxas que pastores no meio de seu povo.
Outro modelo de personalidade religiosa é o Papa Francisco. Ele vem do fim do mundo, de fora da velha e quase agônica cristandade europeia. Ele trouxe uma primavera para a Igreja e para o mundo secularizado.
Primeiramente inovou os hábitos. Ao negar-se de vestir a “mozzeta” o pequeno manto branco, cheio de brocados que os papas carregam aos ombros, símbolo do absoluto poder dos imperadores romanos pagãos, diz o filme claramente : “acabou-se o carnaval”. Não aceita a cruz dourada, continua com sua cruz de ferro; rejeita o sapato vermelho (Prada) e continua com o seu velho sapato preto. Não se anuncia como Papa da Igreja, mas como bispo de Roma e somente a partir daí, Papa da Igreja universal. Animará a Igreja não com o direito canônico, mas com o amor e com a colegialidade (consultando a comunidade dos bispos). Em sua primeira fala pública diz “como gostaria uma Igreja pobre para os pobres”. Não mora no palácio papal, o que seria uma ofensa ao poverello de Assis, mas numa casa de hóspedes. Come na fila como os outros e comenta, com humor:”assim é mais difícil que me envenenem”.
Dispensa um carro especial e um corpo de proteção pessoal. Mistura-se no meio do povo, dá as mãos a quem as estende e beija as crianças. É pai e avô querido das multidões.
Seu modelo de Igreja é o de “um hospital de campanha” que atende a todos, sem perguntar de onde vem e qual é sua situação moral. É uma “Igreja em saída” para as periferias humanas e existenciais. Respeita os dogmas e doutrinas mas diz claramente que prefere colocar-se vivamente diante do Jesus histórico, opta pelo encontro direto com as pessoas e a pastoral da ternura. Insiste que Jesus veio para nos ensinar a viver o amor incondicional, a solidariedade e o perdão. Central para ele é a misericórdia infinita de Deus. Vai mais longe ao dizer : “Deus não conhece uma condenação eterna pois perderia para o mal. E Deus não pode perder. Sua misericórdia não conhece limites”. Por isso chama a todos, uma vez purificados de suas maldades, para a casa que o Pai e Mãe de bondade preparou para todos desde toda a eternidade. Morrer é sentir-se chamado por Deus e vai-se alegre para o Grande Encontro.
Eis outro tipo de pontificado, outro modelo de ser humano que reconhece que perdeu a paciência quando uma mulher o puxou e apertou longa e duramente sua mão. Irritado, bateu-lhe a mão por duas ou três vezes. Mas no dia seguinte pediu publicamente perdão.
O Papa Francisco abriu sua inteira humanidade, dando-se o direito à alegria de viver, de torcer pelo seu time de estimação o San Lorenzo, de apreciar a música dos beatles até conquistar o Papa Bento XVI a dançar um tango, impensável a um severo acadêmico alemão. Aqui aparece não o Papa mas o homem Bergoglio que desentranha humanidade recolhida do homem Ratzinger. Ambos são diferentes mas se integram na dança de um tango de pessoas anciãs.
O filme é uma bela metáfora da condição humana, de dois modos diferentes de realizar a humanidade, que não se opõem mas se compõem e se completam, uma com a ternura e a outra com o rigor. Vale ver o filme, pois nos faz pensar e nos oferece lições de mútua escuta, de verdades ditas sem rebuços e de uma amizade que vai crescendo na medida em que a relação se descontrai de encontro a encontro. O perdão que um dá ao outro e o abraço final, longo e carinhoso, engrandece o humano e o espiritual presentes em cada um de nós.
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Dois Papas: dois modelos de homem, dois modelos de Igreja. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU