05 Dezembro 2019
Em setembro, ao falar sobre o escândalo dos abusos sexuais na Igreja em um congresso sobre “Imaginação Católica” na Loyola University, em Chicago, nos EUA, o ensaísta Richard Rodriguez disse uma coisa muito corajosa.
O comentário é de Paul Baumann, publicado por Commonweal, 04-12-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“O que sabemos sobre esses padres? Não sabemos nada sobre o fardo desses padres decaídos”, disse Rodriguez, de acordo com reportagens do National Catholic Reporter. “Não conhecemos as suas histórias. O que eles pensavam que estavam fazendo? Não temos nenhuma ideia de quem eles eram ou do que sofriam. A nossa imaginação ficou inerte.”
Evidentemente, os comentários de Rodriguez foram motivados, em certa medida, pela morte em 2016 do seu amigo, o teólogo da Notre Dame Virgilio Elizondo. Elizondo havia sido acusado de abusar de um menor e parece ter cometido suicídio. Ele negava as acusações.
Rodriguez foi criticado por alguns por mostrar preocupação e até mesmo simpatia pelos padres que a maioria das pessoas consideram como monstros que não merecem nada além de condenação e esquecimento social.
Tais padres e os bispos que ocultaram seus crimes continuam sendo a peça-chave no caso contra uma instituição corrupta, desesperadamente patriarcal e arrogante. Quem, afinal, quer ser visto expressando interesse por tais pessoas, sem falar em lhes oferecer conforto? Isso simplesmente não traumatiza as vítimas de novo?
Os desejos, o bem-estar e a confidencialidade das vítimas precisam ser postos em primeiro lugar. Mas isso significa que não temos nada a aprender com os padres agressores sobre as causas e as consequências da crise? As críticas de Rodriguez me parecem equivocadas. Foi preciso muita coragem para Jason Berry irromper com a história dos abusos sexuais na Louisiana em 1985.
Desde cedo, Thomas Doyle, OP, mostrou a mesma destemida determinação ao exigir que a hierarquia parasse de fechar os olhos às vítimas e à crise. Em 2002, o Boston Globe assumiu riscos ao expor o grotesco fracasso do cardeal Bernard Law e da Arquidiocese de Boston.
Mas, nesta altura do campeonato, simplesmente condenar a Igreja é fácil demais, especialmente à luz dos passos bem documentados que a Igreja deu para proteger as crianças.
Rodriguez levanta um ponto importante. É possível entender o abuso sexual se as histórias dos padres abusadores forem consideradas intocáveis e irrelevantes? Tal ignorância nos ajudará a evitar abusos futuros? Os jornalistas não têm a obrigação de buscar tais histórias, por mais não palatáveis que sejam?
O que Rodriguez parece estar exigindo em um nível de imaginação não é nada diferente do que Truman Capote realizou ao escrever “A sangue frio”. A fim de dar um sentido aos assassinatos brutais e aparentemente sem motivação da família Clutter, Capote teve que mostrar quem eram os assassinos.
Ele não diminuiu a culpa deles ou o horror do crime; ele retratou uma imagem mais ampla e profunda da trágica colisão entre dois lados diferentes da vida americana dos anos 1950, cada um deles em grande parte e tragicamente ignorante um do outro.
Andrew O’Hagan faz algo semelhante em “Be Near Me”, um romance sobre um padre que viola as fronteiras sexuais com um adolescente. O’Hagan complexifica, mas não absolve as ações de seu protagonista. Como Hilary Mantel escreveu em sua resenha no The Guardian, “Be Near Me” é “um tratamento nuançado, intenso e complexo de uma história triste e simples. Leia-o duas vezes”.
No início deste ano, eu recebi um e-mail de um padre que há muito tempo foi confinado ao ministério restrito por ter abusado sexualmente de um menor. Ele e alguns colegas padres têm tentado lançar um projeto que complexificaria aquilo que ele chama de “narrativa dominante” sobre a história do abuso clerical.
Eu disse a ele que, no clima atual, ele não teria muita sorte nesse ponto. Alguns aspectos do que ele estava propondo pareciam moralmente evasivos – por exemplo, descrever a pedofilia como um “problema de saúde pública”.
Mas ele está certo ao insistir em que as ações dos padres católicos não podem ser entendidas sem se levar em conta o problema social muito maior do abuso sexual.
Nenhuma instituição que lida com adolescentes e crianças está imune, e há poucas evidências de que a Igreja Católica seja pior do que outras organizações nesse sentido. Infelizmente, também não há evidências de que seja melhor.
A proposta do meu correspondente de e-mail se baseava nos relatórios muitas vezes negligenciados do instituto John Jay, encomendados pelos bispos. “O que os relatórios nos dizem sobre os estados psicológicos dos clérigos agressores, da sua formação no seminário, do seu entendimento sobre as suas ofensas e das causas contextuais das suas agressões?”, escreve ele. “As agressões resultaram mais de ignorância e fraqueza ou de poder e arrogância clericais? O que precisamos aprender ouvindo os próprios agressores?”
A pesquisa sobre os danos causados às vítimas, observa ele, só começou no fim dos anos 1970. A maioria dos agressores entendeu o dano que estavam causando? Parafraseando os relatórios do John Jay, ele escreve: “Os clérigos abusivos eram, de várias maneiras, eles mesmos, adolescentes, e a maioria das suas agressões consistia em esforços desastrosos de intimidade”.
A maioria dos agressores não eram predadores em série: mais da metade deles foram acusados de ter uma vítima.
Como Peter Steinfels escreveu, os relatórios do John Jay levantam sérias interrogações sobre aquilo que meu correspondente chamou de “narrativa dominante”, que classifica o agressor típico como um estuprador em série que agiu por poder e arrogância.
Eu tenho algum conhecimento pessoal de dois padres acusados de abuso sexual. Um deles era meu amigo de pós-graduação.
Acusado, ele prontamente confessou ter abusado de um adolescente e acabou sendo laicizado. O que ele achou que estava fazendo? As minhas poucas tentativas de contatá-lo nos últimos 17 anos foram inúteis.
Embora ele estivesse na casa dos 20 anos quando o abuso ocorreu, minha sensação é de que, de muitas maneiras, ele mesmo era um adolescente, psicologicamente imaturo e sexualmente confuso.
Parece possível que ele tenha agido por fraqueza, ignorância e afeto deslocado. Mas isso é especulação da minha parte. Seria útil ouvir a história dele.
O outro caso diz respeito a um padre já falecido, que provavelmente era motivado por poder e arrogância. Mas eu não tenho certeza disso.
Como Richard Rodriguez urge, seria bom saber mais sobre ambas as histórias, contanto, é claro, que a privacidade das vítimas seja protegida. Se permitirmos que a repulsa nos impeça de ouvir tais histórias, não estaremos protegendo ninguém além de nós mesmos.
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Padres decaídos: devemos ouvir suas histórias? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU