04 Setembro 2019
"Entre a angústia e a esperança, o desânimo e a vontade de mudar, entre a descrença e a fé, entre a vida e a sobrevivência, entre a paralisação e o movimento, queremos sugerir alguns pontos de reflexão que consideramos fundamental se quisermos, de fato, ver no horizonte um sinal de outro mundo possível", escreve Celso Pinto Carias, doutor em Teologia pela PUC-Rio e assessor do setor CEBs da CNBB.
Estamos vivendo, em nossos dias, uma Guerra das Trincheiras, como ficou conhecida a Primeira Guerra Mundial. Cada grupo cava um longo buraco no chão (trincheiras) e se tenta avançar para lá e para cá. Ora se avança, ora se recua. No meio, entre as trincheiras, está a terra de ninguém. Sim, era assim que as tropas chamavam o território entre as linhas de trincheiras. Ali, na terra de ninguém, milhões de soldados morreram.
A crise civilizatória, na qual estamos mergulhados, dificulta tremendamente que se possa analisar a realidade com sabedoria suficiente para encontrar caminhos. Assim, por maior que seja a nossa capacidade intelectual e analítica, a visão pode ficar obscurecida a ponto de se ver apenas o que deseja ver. Os ouvidos podem ficar insensíveis a qualquer som que não tenha sido codificado antes como o único que possa ser ouvido. E quando uma grande crise se apresenta, é hora de construir o novo.
Quando participávamos na marcha em memória de Marielle Franco e Anderson Silva, alguns dias depois do brutal e covarde assassinato, com um grupo de amigos conversávamos se aquela marcha não deveria ser silenciosa, com velas nas mãos, como a querer escutar e ver exatamente para onde deveríamos continuar a caminhar na busca por um mundo justo, fraterno e solidário. Naquela marcha a terra de ninguém não se encontrava ali, como não tem se encontrado nas diversas marchas de todas as cores ideológicas. Marielle estava em uma trincheira, onde também se morre. Anderson na terra de ninguém. Eu, você que possivelmente lê este texto, estamos em uma trincheira, mas não estamos na terra de ninguém.
As favelas, os morros, os cortiços, as periferias geográficas e existenciais, os/as moradores/as de rua, as emergências dos hospitais públicos, as escolas sem carteiras, as prostitutas, os índios, os quilombolas, os LGBTs que vivem em guetos, as mulheres que sofrem violência doméstica e sequer conhecem a lei Maria da Penha, as pequenas igrejas evangélicas que sustentam o psicológico dos pobres, os devotos católicos passando de joelhos pela passarela da Basílica de Aparecida agradecendo um milagre, e todos e todas que culpamos por vender literalmente o seu voto por um bujão de gás, ou de votar naquele que o tráfico ou miliciano indica, não se encontram nas trincheiras, mas na terra de ninguém. Aqui é uma luta inglória pela sobrevivência, onde a lógica racionalista das análises ajuda bem pouco.
Sim, é hora de resistência. Porém, resistir sem saber para onde ir é completamente insuficiente. Pode ser um avanço pela terra de ninguém, domina-se a trincheira inimiga, mas que poderá, no próximo ataque, ser reconquistada pelo mesmo inimigo. Há quem diga ser necessário resistir primeiro, e depois conversar sobre projetos. O atual quadro da realidade planetária parece nos indicar que não temos tanto tempo para fazer uma coisa sem a outra. Novas decepções de governabilidade talvez não gerem mais apenas ultraconservadores, neofacistas, ódio ao pobre (aporofobia) e naturalização da morte na terra de ninguém, mas um absoluto caos. Resistência e Projeto devem caminhar juntos.
Entre a angústia e a esperança, o desânimo e a vontade de mudar, entre a descrença e a fé, entre a vida e a sobrevivência, entre a paralisação e o movimento, queremos sugerir alguns pontos de reflexão que consideramos fundamental se quisermos, de fato, ver no horizonte um sinal de outro mundo possível. Faremos em poucas páginas, sinteticamente, tentando entabular uma conversa nesta era digital, na qual poucas páginas podem ser muitas, e correndo o risco de deixar muitas lacunas ou fazer afirmações sem sentido.
O caso Brasil é bastante emblemático, embora esteja situado em uma movimentação planetária. Vamos abordar por proximidade. Podemos constatar, sem dados colhidos por pesquisas, de modo muito esquemático, que a população brasileira pode ser dividida em três grupos: 30% progressistas, 30% conservadores ou reacionários, como diz o prof. Roberto Romano salvando o conceito conservador, com quem concordamos. 40% flutuam entre as duas. Mas sem maniqueísmo, isto é, podem existir pessoas boas e más em todos os grupos. Os grupos simplesmente revelam uma tendência.
Observando o processo eleitoral para presidente depois da constituição cidadã de 1988, constata-se que Lula e Dilma, em nenhuma oportunidade, ganharam em primeiro turno. Conseguiram convencer parcela dos 40% que eram a melhor opção. Outra parcela dos 40% vota nulo ou não vota, entre eles pessoas bem pobres. Os mais pobres entre os pobres (miseráveis) não comparecem nas urnas.
Os 30% que perderam para Lula e Dilma, mantinham-se calados, mas não convencidos. Quem nunca ouviu pessoas dizendo que “no tempo da ditadura era melhor”, que “bandido bom é bandido morto”, que “esse pessoal dos direitos humanos é que atrapalham”? Embora podendo pertencer a famílias desastrosas, geralmente por violência doméstica, colocam a culpa da “destruição das famílias” nos gays.
As crises econômicas foram aparecendo. A crise ambiental foi se agravando. Bom, a solução seria uma partilha. Mas 1% da população planetária que detém 90% da riqueza não é simpática à ideia de partilha. Então, inicia-se um processo de desgaste da política como reguladora do Bem Comum, pois uma boa política poderia obrigar a repartição.
Em dado momento, governos progressistas conseguem chegar à estrutura de regulação do Bem Comum (Brasil, Equador, Bolívia, por exemplo). No entanto, embora tenham conseguindo diminuir índices de pobreza mantiveram mecanismos de governabilidade nos quais princípios éticos, antes defendidos com veemência, agora precisavam ser relativizados. Aparece um sentimento de traição para muitos dos 40%.
Em uma guerra de trincheiras não se consegue observar toda a realidade que envolve a vida de quem está lutando. Como diz José Saramago, para ver a ilha se faz necessário sair da ilha. Constituem-se bolhas impenetráveis, e dentro delas bolhas menores que não se deixam penetrar. O que se tem afirmado, tradicionalmente pela esquerda e pela direita, pode ser caracterizado como duas grandes bolhas.
É interessante a análise de Byung-Chul Han, coreano fixado na Alemanha, professor de filosofia na Universidade de Berlim. Estamos em uma sociedade do cansaço onde o desempenho conta mais que o dever. Nesta sociedade se constituiu uma dinâmica de auto exploração que possibilita um forte sentimento de liberdade. Mas acontece que o trabalhador se torna escravo de si mesmo com grande sensação de liberdade. Diz Han: Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos (Sociedade do Cansaço, 30). É uma sociedade depressiva, neuroral, como afirma o filósofo. Uma sociedade que insiste fazer das pessoas indivíduos superpoderosos, basta afirmar as palavras mágicas: eu posso, nós podemos, “we can” de Obama. Indivíduos que podem acabar mergulhados em patologias psíquicas ou até mesmo no suicídio. No universo religioso cristão seria como afirmar que Jesus Cristo ressuscitou sem passar pela cruz.
Quanto tempo vai ser necessário para entender que os 30% de reacionários conseguiram o espaço simbólico de suas convicções e contam, para facilitar suas escolhas, com a arrogância daqueles que se colocam como defensores do povo sem o povo? Entre os 30% de progressistas se encontram muitos insensíveis a autocrítica e assim deixam parcela considerável dos 40% assumirem a desesperança do caminho político oficial como alternativa.
O Eu avisei, não faço parte desta turma, povo burro, e o contra-ataque daqueles/as que não se deixaram penetrar pelo discurso maldoso das mentiras, não dialoga com pessoas boas entre os 40%. A psicologia já demonstrou que este discurso não funciona.
É interessante fazer o exercício de percorrer as mídias digitais em comentários sobre atrocidades de quem governa atualmente o Brasil. Nenhum argumento é capaz de fazer com que mudem de opinião. No futuro talvez seja necessário fazer o que um general americano fez com a população de uma pequena cidade alemã que tinha um campo de concentração ao lado e não acreditavam. Ele fez toda a cidade entrar no campo e dá de cara com o horror dos cadáveres amontoados.
Portanto, é preciso parar, olhar e escutar. E a tarefa se agiganta na medida em que se percebem as questões de fundo. Será preciso superar o mito messiânico de que lideranças por seu carisma e capacidade serão capazes de mudar as coisas sem um projeto que perceba a crise civilizatória e reoriente a direção. Pessoas, líderes, são importantes, mas urge superar o desejo de um rei salvador que irá reinar com justiça e retidão independente dos poderes que, de fato, controlam o mundo. Este é um arquétipo, como diria C. Jung, que parece estar profundamente enraizado no inconsciente.
Quando reis e rainhas disputavam riquezas e territórios era possível verificar a íntima relação entre poder e governo. Na modernidade e na atual crise civilizatória esta relação já não é tão próxima, embora, naturalmente, governos seja expressão de poder. Contudo, governos hoje podem estar alinhados com uma estrutura de poder que não se apresenta facilmente ao cidadão e à cidadã. Há governos que são verdadeiras marionetes. Na maioria das cidades, prefeitos podem ser meros gerentes dos investimentos das grandes corporações. Copa do Mundo de futebol, Olimpíadas, por exemplo, foram meros pretextos para tentar reorganizar a cidade do Rio de Janeiro a partir de setores econômicos. Sabe-se que nem em Barcelona, como alguns apregoam, o tal legado foi tão significativo para o conjunto da população. Fora os desvios, evidentemente.
Byung-Chul Han pode nos ajudar mais uma vez. No livro O que é poder ele diz: Quanto mais poderoso for o poder, mais silenciosamente ele atuará. Onde ele precise dar mostras de si, é porque já está enfraquecido (p.10). As análises, muitas vezes, não dão conta da complexidade do poder, de suas mediações simbólicas que procuram não uma obediência pela coerção, pela violência, mas pela capacidade de penetrar na existência humana como uma necessidade: o poderoso toma seu lugar na alma do outro. Sem mediações o poder pode chegar ao máximo da violência. É preciso criar uma sensação de liberdade, sem correntes e açoites. É preciso aprofundar tal reflexão se queremos outro mundo possível, pois se assim não fizermos continuaremos a não nos comunicar com os atingidos pela dominação.
Ora, estamos vivendo um momento no qual a estratégia do poder reacionário foi capaz de naturalizar situações outrora consideradas absurdas. E quem se opõe ao que foi naturalizado pode ser considerado réu de morte sem nenhum problema de consciência. E, mais uma vez, o caso Brasil, é bastante expressivo para explicar tal situação. Quantas vezes não se ouvem nos bairros periféricos: se morreu é porque estava devendo.
Ao estar diante do absurdo de pessoas em situação precária que defendem propostas de perda de direitos, pode-se ter uma sensação de absoluta incompreensão. Mas sair para o contra-ataque ofensivo não colabora para mudar substancialmente esta realidade. O pobre é predominantemente vítima. Vítima de um sistema que produz desejos inalcançáveis para ele, vítima de mecanismos que penetram com profundidade sua existência, vítimas de uma luta pela sobrevivência na terra de ninguém.
Símbolos como sinal de arminha, palavras grosseiras que são interpretadas como autenticidade, discursos que finalmente podem ser feitos em praça pública, sem censura intelectual, sem a vergonha de ser taxado de ignorante, pois há uma legitimação simbólica do poder, tornam-se natural. Chega de ser corrigido por um intelectual arrogante que vai me demonstrar com palavras difíceis que a terra não é plana e que problemas climáticos existem. Que o fogo na Amazônia foi ateado por ongs diabólicas. Agora eu posso voltar a dizer para “minha mulher” que o lugar dela é na cozinha, e a minha religião, predominantemente o cristianismo, voltará a justificar tal postura como vontade de Deus. É incrível como aprendemos pouco com Paulo Freire, isto é, concordamos com ele que existe uma educação bancária, mas fazemos formação bancária.
É hora do novo. O novo poderá demorar mais ou menos, depende de nossa capacidade de visualizar o Caminho. Quanto sofrimento tal construção custará? Impossível fazer previsão. Entretanto, podemos buscar com sinceridade, com simplicidade e sem arrogância, favorecer a construção do novo ou continuar a resistir dominando trincheiras para depois voltar ao mesmo lugar. Como fazer este Processo? Sim, é processo, não há receitas. Então, para não dizer que não falei de flores, vão aqui alguns elementos que consideramos essenciais para tal projeto.
a) Uma primeira etapa se faz necessária. Sem ela nenhum projeto será construído. Trata-se da luta para salvar a Democracia. Como tem dito com insistência o amigo e sociólogo Luiz Alberto Gomes de Souza, a constituição de uma Frente Ampla Democrática é fundamental. O discurso do poder reacionário insiste em afirmar que as instituições estão funcionando perfeitamente. Não estão. Setores progressistas continuam agindo como se estivessem. Continuam pensando em termos meramente eleitorais, por exemplo. Basta levar à presidência o grande líder e tudo será resolvido. Não será. Assim, todos e todas que acreditam na democracia precisam estar juntos neste primeiro momento, sem exceção. Na mídia digital quando alguém convida para trilhar este caminho, aparecem os dogmáticos de plantão: “Ciro não”, “Marina já era”. Muito maniqueísmo. Luiz Alberto gosta de lembrar, com razão, o papel do menestrel das alagoas, Teotônio Vilela, que vindo da Arena, partido da Ditadura Militar brasileira, tornou-se um dos protagonistas da democracia brasileira. O grande advogado das diretas já, Heráclito Fontoura Sobral Pinto, advogado de defesa do comunista Luiz Carlos Prestes, idoso subindo aos palanques para defender a democracia, um católico fervoroso nada identificado com a esquerda. É preciso constituir uma cidadania ativa e não uma cidadania consumista. Essa história de ninguém solta a mão de ninguém deve se tornar uma realidade e não um discurso bonito.
b) Conjuntamente, paralelamente, ao mesmo tempo, não se pode perder de vista para onde se quer ir. Aqui não será fácil construir consenso. O caminho será longo. Contudo, é imperativo se debruçar sobre qual mundo queremos. Nós, por exemplo, compartilhamos que dentro da atual lógica desenvolvimentista não há salvação. Como diz o economista francês Serge Latouche, Para onde vamos? De cara contra o muro. Estamos a bordo de um bólido sem piloto, sem marcha a ré e sem freio, que vai arrebentar contra os limites do planeta. (Pequeno tratado do decrescimento sereno, p. XII). É preciso avançar recuando. Não dá para acreditar, como diz Kenneth Bouling, em artigo de 1973, citado por Latouche, que um crescimento infinito é possível em um mundo finito, conclui ele, ou é louco ou é economista. (p.16).
Neste momento da história humana, compartilhamos os indicativos dados por companheiros e companheiras da nossa América Latina, como o equatoriano Alberto Acosta e o boliviano Pablo Solón, que bebem na fonte do sumak kawsay, expressão indígena de difícil tradução, mas cabe o que tem se chamado de Bem Viver. É preciso buscar alternativas sistêmicas, dialogando com todos e todas que buscam outro mundo possível: decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra, desglobalização, entre outros. Muitos dirão: utopia sem sentido. Sem sentido é um mundo extrativista que suga cada vez mais as condições de vida em completo desequilíbrio com a natureza. Mariana e Brumadinho são ponta de iceberg. Liberais e socialistas têm pautado suas propostas por um produtivismo que passa por cima de qualquer racionalidade. Por isso, precisam de mecanismos simbólicos que mantenham o desempenho dos indivíduos a todo custo, gerando muitas vezes depressivos e fracassados. Como diz Chun Han: Sua vida equipara-se à de mortos-vivos. Estão por demais vivos, para morrer, e por demais mortos para viver. (Sociedade do Cansaço, p. 109).
Evidentemente que não se pode abandonar a trincheira da resistência. Mas mesmo ela precisa de criatividade. Continuamos a responder perguntas novas com respostas velhas. Se gasta excessiva energia com iniciativas que já não produzem tanto resultado, como passeatas e greves. Também a resistência precisa ser redimensionada. O exemplo do vira voto nas últimas eleições foi extremamente significativo. A ocupação das escolas com os jovens estudantes também. Sim, precisamos aprender com a juventude. Com todos os limites das manifestações de 2013, ali estavam os jovens a querer nos dizer algo que muitos não quiseram ouvir. Ali vimos parcelas pequenas, mas presentes, da terra de ninguém.
Sim, é hora do novo. O novo pode demorar a nascer, mas nascerá. O tempo da demora vai depender da nossa humildade, da nossa resiliência, da nossa capacidade de integrar, pois como diz Francisco de Roma, tudo está interligado. Podemos insistir na nossa arrogância messiânica, e aí o novo virá com muito mais sofrimentos. Ou podemos aprender com os nossos ancestrais africanos: Ubuntu, eu sou porque nós somos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Resistir não basta – É preciso projeto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU