15 Agosto 2019
Ismael Moreno Coto, mais conhecido como padre Melo, foi amigo íntimo da líder ambiental Berta Cáceres e de seu marido, Salvador Zúñiga, por mais de duas décadas.
Berta Cáceres tinha as chaves da casa do padre Melo. Se ele passasse pela cidade de Progreso, ele ficaria em um dos cômodos vazios da casa do padre.
"Quem vai primeiro, Melo, você ou eu?", perguntou Cáceres, ainda sorrindo enquanto tiravam uma foto depois de uma manifestação de protesto contra uma usina hidrelétrica em Río Blanco, em 2013. O padre não respondeu. Cáceres temia por sua vida e também pela do jesuíta. Sua premonição se tornou realidade em 3 de março de 2016, quando ela foi [morta] em sua casa.
O artigo é de Emiliano Ruíz Parra, publicado por The New York Times, 26-03-2017. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Berta Cáceres tinha as chaves da casa do padre Melo. Se ele passasse pela cidade de Progreso, ele ficaria em um dos cômodos vazios da casa do padre.
Ismael Moreno Coto, mais conhecido como padre Melo, foi amigo íntimo da líder ambiental e de seu marido, Salvador Zúñiga, por mais de duas décadas. Esse casal fundou em 1993 o [Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas (Copihn)]. Durante 25 anos de casamento, Berta e Salvador passaram por várias separações e reconciliações, e Moreno foi amigo e conselheiro de ambos.
"Quem vai primeiro, Melo, você ou eu?", perguntou Cáceres, ainda sorrindo enquanto tiravam uma foto depois de uma manifestação de protesto contra uma usina hidrelétrica em Río Blanco, em 2013. O padre não respondeu. Cáceres temia por sua vida e também pela do jesuíta. Sua premonição se tornou realidade em 3 de março de 2016, quando ela foi [morta] em sua casa.
Ismael Moreno Coto, mais conhecido como "Padre Melo", em uma das manifestações do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas (Copihn). Foto: Rádio Progreso
Moreno é um padre jesuíta que se tornou um dos principais líderes da oposição de Honduras, o país mais violento da América Central. Ele é jornalista em um dos países mais perigosos para exercer essa ocupação: desde o golpe de Estado de 2009, 26 repórteres foram mortos, de acordo com a ONG [Committee for Free Expression (C-Free)].
Nesse contexto, o padre Melo se tornou uma figura antagônica do presidente Juan Orlando Hernández.
Do assassinato de Cáceres, ocorrido em 3 de março de 2016, o padre aprendeu uma lição. Ele diz que em Honduras a "lei da morte" se aplica à carta: uma condenação contra oponentes do modelo "extrativista". Aqueles que não se deixam comprar por empresas ou partidos políticos são condenados.
"Quando os atiradores acertaram seus tiros no corpo de Berta Cáceres, eles já tinham a condenado à morte há muitos anos", disse Melo. Segundo ele, antes das balas há um processo de morte civil e política para os adversários: eles são denegridos ou invisibilizados. A mídia corporativa costumava ignorar Cáceres ou chamá-la de Bochinchera, como se ela fosse uma pessoa problemática.
Moreno Coto também se sentiu condenado. Ele não acha que eles vão matá-lo como Cáceres, mas ele já assumiu que ele estava condenado a denigração e invisibilidade.
Sua vida foi marcada pela violência. Aos 16 anos sofreu coma morte de seu pai, Pedro José Moreno, que ocorreu em 17 de agosto de 1974. Oficialmente, foi um assalto com violência, mas Ismael Moreno nunca se satisfez com essa versão porque seu pai era um líder camponês que participava em desapropriações de terras.
Alguns anos mais tarde, recém ordenado sacerdote, ele seria tocado por um dos mais famosos massacres da história da Companhia de Jesus: o assassinato de seis jesuítas e dois funcionários da Universidade Centro-Americana (UCA) de San Salvador. Em 16 de novembro de 1989, um comando de elite do exército de El Salvador invadiu a universidade à noite e assassinou os padres Ignacio Ellacuría, Amando López, Ignacio Martín- Baró, Joaquín López, Segundo Montes, Juan Ramón Moreno, bem como Elba e Celina Ramos, funcionárias da instituição.
Moreno estava perto das vítimas porque seu diretor de tese de mestrado era Amando López, e o reitor da universidade, o famoso teólogo Ignacio Ellacuría, tinha sido seu professor. Mas sua amizade mais profunda foi com Elba Ramos, a cozinheira da comunidade, e com sua filha, Celina. Na verdade, ele os convidou para passar o Natal de 1989 com sua família em Progreso, então no dia 22 de dezembro ele iria buscá-los na fronteira para levá-los à casa de sua mãe, mas o massacre estava em seus planos.
O mais recente dos seus mortos é chamado Carlos Mejía Orellana, que tinha 35 anos e foi assassinado em sua casa na noite de 11 de abril de 2014. Ele estava encarregado de vender os espaços publicitários da Rádio Progreso.
Mejía era homossexual e é por isso que as autoridades se apressaram em dizer que era um crime passional, embora ele fosse um dos 16 trabalhadores da Rádio Progreso, protegido por medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelas ameaças que recebeu.
Melo, de 59 anos, é o diretor da Rádio Progreso, um dos poucos meios de comunicação críticos do governo, que completou seis décadas em dezembro de 2016. Ele também é o chefe da Equipe de Reflexão, Pesquisa e Comunicação (ERIC) da Compañía de Jesús, grupo que tem influência política nos movimentos sociais que se opõem à mineração, ao turismo e aos megaprojetos hidrelétricos.
Na noite de 15 de dezembro de 2016, Moreno organizou um jantar em sua casa. O cardápio era simples: frango frito, costelinha de porco ao molho barbecue e mandioca frita. Era o fast food de um restaurante do bairro. "A menos que algo extraordinário aconteça, o próximo presidente será chamado Juan Orlando Hernández", disse o padre.
Nessa e em outras ocasiões, o padre não deixou de criticar Hernández: indicou-o como o principal protetor dos violadores de direitos humanos. Ele também disse que Honduras está passando por uma “democracia autoritária que avançará para uma proposta ditatorial e personalista”.
Os convocados para jantar eram doze pessoas, entre jesuítas, ex-jesuitas, acadêmicos, músicos e repórteres. A conversa foi sobre o cenário político de Honduras. Ele atualizou os estrangeiros: Hernández tinha um aliado e protetor nos Estados Unidos: general John Kelly, ex-chefe do Comando Sul e atual secretário de Segurança Interna de Donald Trump.
A Constituição hondurenha proíbe a reeleição. No entanto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) limpou o caminho de Hernández para concorrer novamente às eleições. Desde abril de 2015, o Supremo Tribunal Federal declarou que proibir a reeleição era contrário aos direitos humanos e tratados internacionais. Em outubro de 2016, os membros do TSE ratificaram esta decisão por unanimidade.
E em 14 de dezembro, um dia antes desse jantar, Juan Orlando Hernández disse que sim, ele concorreria a outro mandato. Por ter as mesmas ambições, o presidente Manuel Zelaya foi derrubado em 2009.
Melo pediu opiniões sobre como ter um impacto maior sobre a realidade de Honduras "para a maior glória de Deus". "O que tu necessita é de uma universidade", sugeriu um dos presentes, o acadêmico Tony Payan, diretor do Centro México da Universidade de Rice, em Houston.
Melo respondeu com uma anedota: há alguns anos, um ex-ministro se aproximou dele para oferecer-lhe 10 milhões de lempiras (pouco menos de meio milhão de dólares à taxa de câmbio atual), a fim de fundar uma universidade. Melo recusou a oferta. A função dos jesuítas, justificava Payán, era a de ser a articulação entre os ricos de cima e os pobres de baixo. Outros apoiaram a proposta, mas o padre não respondeu.
No dia seguinte, sexta-feira, 16 de dezembro, em um fórum na Rádio Progreso, Moreno disse: “Em nenhuma circunstância voltaremos atrás e dizer: 'Vamos chegar a acordos com a elite política hondurenha'. Ou diga: 'Vamos fazer compromissos com um setor privado ou vamos procurar o cardeal (Óscar Rodríguez Maradiaga)'”.
O sacerdote prosseguiu: “Só a aliança com os setores com os quais concordamos na construção de propostas alternativas ao sistema capitalista é o que nos protegerá. Não temos outro caminho, bendito seja Deus, mas para fortalecer a identidade de muitos anos atrás e nisso temos que fazer avançar o compromisso”.
Temos que nos preparar para o futuro próximo: a democracia autoritária avançará para uma proposta ditatorial", disse Moreno Coto em uma reunião de líderes comunitários hondurenhos em 17 de dezembro de 2016. Foto: Rádio Progreso
Moreno Coto tem sido uma figura recorrente nas reuniões de líderes comunitários. Em 17 de dezembro, em comemoração ao aniversário da Rádio Progreso, ele realizou uma reunião no auditório ERIC, em Progreso, com ativistas que viajaram de cidades tão distantes como São Francisco de Opalacas, Santa Rosa del Aguán e Tegucigalpa para ouvir sua mensagem.
Muitos fizeram até dois dias de viagem em ônibus desorganizados, carregados com sacos de milho, tubérculos e frutas de várias cores para cerimônias indígenas e afromestiças de gratidão e fertilidade. Alguns gastaram uma parte importante de seu salário de jornaleiros, pescadores e pequenos produtores de café para sua peregrinação àquela sala onde 170 pessoas estavam sentadas e outras cem ficaram de pé.
Honduras, disse o padre, viveu sob um regime de "democracia autoritária", no qual foram cumpridas formalidades como a divisão de poderes e um aparente exercício de liberdades constitucionais, mas que só foi sustentado com doses muito altas de força, repressão e autoritarismo.
Segundo o padre, o governo do presidente Hernández conta com várias colunas. A primeira é uma aliança da oligarquia nacional com empresas transnacionais, muito perceptível nos investimentos em telecomunicações, mineração, turismo, geração de eletricidade e a palma africana.
A militarização foi o segundo recurso. Em Honduras, disse ele, as instituições de justiça entraram em colapso e o exército participava cada vez mais de áreas de discussão política. "Em um país instável, não há como obter os lucros de 25 anos sem militarizar a sociedade", disse ele.
Em seguida, ele falou sobre “assistência proselitista”, que ele definiu como o desperdício de dinheiro público através dos 72 programas sociais dirigidos a partir da Casa Presidencial e a cooptação da mídia.
E finalmente, ele se referiu ao "sustento divino". Em cada ato oficial celebrava-se uma liturgia. A iniciativa privada e o governo disseram que eram apoiados por Deus. Para isso, obtiveram o apoio de um setor da hierarquia católica e pastores evangélicos através do Programa de Construção dos Templos, um instrumento do governo hondurenho para canalizar fundos para as igrejas.
"Temos que nos preparar para o futuro próximo: a democracia autoritária avançará para uma proposta ditatorial e personalista". Os participantes confirmaram suas hipóteses. Se alguém parasse para falar com Magdaleno Gómez, um pequeno produtor de café de San Francisco de Opalacas, ele confirmou que em sua cidade não "permitiriam barragens, ou mineração a céu aberto".
Ou com Aurelia Arzú, da Organização Fraternal Negra de Honduras (OFRANH), que acusou o governo de promover megaprojetos de turismo em praias como a baía de Tela, que têm sido o sustento dos garífunas.
Moreno pediu que os líderes não se desviassem para lutas eleitorais, não desistissem das batalhas locais carentes de perspectiva nacional e não se consumissem em protagonismos. Foi o discurso de um líder político. Em mais de meia hora de discurso, ele nunca invocou Jesus Cristo ou a Virgem Maria.
Mas pouco antes de terminar, ele lembrou que era padre e deveria ir celebrar a missa fúnebre de um companheiro falecido, desistiu do microfone e saiu rapidamente.
Era uma pequena sala de menos de dez metros quadrados com uma cama de solteiro, uma escrivaninha com livros, papéis e um laptop. Observei a modesta bagunça de alguém que está sempre com pressa: uma camisa amassada por aí, pó de alguns dias sobre as superfícies, a cama desarrumada.
Padre Melo está sempre atrasado para o seu próximo encontro. Naquela manhã de domingo, 18 de dezembro, preparei alguns ovos com cebolas e tomates e feijão quente com coentro, enquanto um jovem jesuíta americano, Matthew, servia café.
Sentado em sua cadeira de balanço, o padre contou sua vida. Em Progreso havia duas escolas: a dos pobres e a dos ricos. Uma vez que o governo municipal concedeu duas bolsas de estudo para os melhores alunos e ele ganhou o primeiro lugar, então ele foi premiado com a escola de San José de la Compañía de Jesús. Ele era então um mulato magro, com um penteado afro e um chapéu que estudava com as crianças da burguesia das bananas. Lá ele decidiu ser um jesuíta.
Quando jovem, morou na Cidade do México, onde estudou Filosofia e depois em San Salvador, onde estudou Teologia. Desde 1995, ele se dedica ao jornalismo. Nesse ano fundou em Honduras o jornal de oposição A Mecate Short e em 2001 formou a ERIC.
Moreno nasceu em 1 de janeiro de 1958. Ele tem 59 anos e se tornou um homem com rosto redondo, cabelo cortado, bigode cinza, olheiras e uma proeminente barriga de comedores de carne, frango frito, fatias de banana madura e baleadas (uma quesadilla de trigo, feijão e queijo).
Em novembro de 2017, Honduras passará por eleições controversas. O presidente Juan Orlando Hernández pode solicitar a reeleição e, talvez, Manuel Zelaya Rosales, ex-presidente derrubado em 2009, também possa concorrer.
Padre Melo não olha para 2017, mas sim 2021, quando Honduras celebrará o bicentenário de sua independência. Promove a criação de um programa nacional denominado Soberania 2021, uma agenda de luta para enfrentar o que define como a potencial “ditadura personalista” do presidente Hernández.
Moreno diz que continuará seu trabalho em sua posição como padre. Ou seja, sem buscar uma posição no governo. Segundo ele, momentos de repressão e autoritarismo como aquele em que Honduras vive atualmente podem se transformar em oportunidades para o movimento social.
Ele diz que vai apostar nos próximos quatro anos de sua vida.
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O padre que enfrenta o presidente de Honduras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU