25 Junho 2019
O encontro com o grande historiador francês é na Escola Normal Superior de Paris, em uma área universitária que mistura elegância com a monumentalidade dos claustros. François Hartog, especialista em história intelectual das sociedades da Grécia antiga e na concepção da alteridade em Heródoto, trabalhou em particular no modo como cada sociedade articula presente, passado e futuro e concebe a temporalidade. É um dos principais nomes para a “Noite da Filosofia”. Chega a Buenos Aires convidado pela Embaixada da França, o Centro Franco-Argentino e a Fundação Medifé.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 21-06-2019. A tradução é do Cepat.
Grande parte de seu trabalho como pesquisador parece confluir no conceito de presentismo. Em que consiste?
Passamos de um tempo em que o futuro era a categoria principal, que é o que chamo de regime moderno da historicidade. Nos tempos de progresso, no século XIX, dominava a ideia de futuro, eram os tempos do progresso, e uma grande parte do século XX, onde pensávamos que a humanidade avançava de progresso em progresso, e que podia haver progressos materiais, mas também da humanidade.
Essa relação com o tempo é o regime moderno da historicidade, que é futurista, no sentido em que o futuro é a principal categoria e é o que domina. O futuro ilumina o presente e o passado. Atua-se em função dele, para ir até ele o mais rápido possível, ao que se somam as temáticas da aceleração do tempo para assim conseguir o que no vocabulário marxista chamávamos um futuro radiante. Este vínculo com o tempo perdeu sua força, a capacidade de arrastar as pessoas, na Europa, nos anos 1960, 1970 e 1980.
E o que aconteceu, então?
O que substituiu este vínculo com o tempo foi o crescimento da categoria do presente, como se o presente tivesse se tornado a categoria dominante, e no fundo a única. Por isso, propus chamar este momento de “presentismo”: passamos do futurismo ao presentismo. O horizonte se limita ao presente. O presente foi revalorizado.
É claro, todas as transformações tecnológicas, com a revolução da informação, os computadores e depois a Internet, influenciaram nesta mudança. Não há instrumentos mais presentistas que a Internet e, hoje, as redes sociais. Tudo se faz no instante. Nada é esquecido pela Internet, de certa forma tudo fica presente para sempre e, ao mesmo tempo, tudo é instantaneamente esquecido. É ao mesmo tempo uma espécie de hipermnesia e de amnesia perpétua.
O presentismo pode explicar a história?
O presentismo não explica a história. O presentismo é um diagnóstico do momento contemporâneo. Não explica. Busca definir a singularidade deste momento e podemos defini-la fazendo uma distinção com os tempos precedentes, quando o futuro era o horizonte. O que acontece quando o futuro não é mais o horizonte, quando se limita ao presente, e que consequências tem sobre os estilos de vida, mas também sobre a economia, a história... [?] como podemos escrever história em um mundo presentista [?]. Que conceito de história poderia dar conta desta situação presente, contemporânea [?].
Talvez o presentismo surja da impossibilidade de imaginar o futuro?
Há várias respostas possíveis a essa pergunta. Em certo sentido, sim, não é possível imaginar o futuro. Na Europa, nos anos 1980, antes da queda do Muro de Berlim, houve um sentimento muito forte de que o futuro se fechava, que não havia mais essa espécie de clareza, que também coincidiu com a crise do petróleo dos anos 1970-1973, quando de repente o Ocidente descobriu que dependia de um abastecimento que não necessariamente controlava e a economia teve uma grande crise.
Há toda uma série de fatores que acompanham esta tomada de consciência, primeiro na Europa e nos ocidentais. O futuro deixou de parecer previsível, e tudo o que havia sido elaborado em torno a noções de planificação, uma ideia muito poderosa no mundo comunista, a previsão, foi desaparecendo aos poucos. Mudou por uma resposta imediata ao imediato, a ideia de que no fundo a atitude que haveria que ter era, por exemplo, na produção industrial, não ter mais estoque, mas valorizar o que chamamos “just in time”, responder à demanda.
É uma mudança de atitude em relação ao futuro. A economia informatizada é a resposta imediata, é a dos mercados financeiros, onde é necessário comprar e vender algumas frações de segundo antes dos outros. Já nem se trata de uma decisão humana, decidem os algoritmos. É uma espécie de realização quase perfeita da supressão, a abolição do tempo.
Nos últimos dez anos, o futuro é percebido como uma ameaça. Durante muito tempo, existiu a ameaça nuclear, hoje é a ameaça climática. Temos um futuro que ainda não chegou e que, no entanto, quase já foi jogado com antecedência, que é o problema da irreversibilidade de nossas ações. Esta é a dimensão totalmente nova da qual se fala muito hoje, em todo o mundo (exceto no do senhor Trump), e que não sabemos enfrentar.
Costuma-se citar uma frase que diz: “A Iugoslávia produz mais história do que a que pode consumir”. Acredita que esta época produz muita história?
A partir da guerra, ou as guerras da Iugoslávia, se escreveu muito. E, como regra geral, parece que os momentos de crise ou de catástrofes fazem com que se escreva mais. Não surpreende que Iugoslávia tenha produzido todos esses textos de história, o que não significa, no entanto, que vejamos as coisas de forma mais clara. Penso, ao contrário, que hoje escrevemos muita história, quando digo escrever, penso isso no sentido mais amplo: a televisão, os filmes, a ópera, a abertura dos jogos olímpicos, todas são formas de escrever a história... Escrevemos muita história, mas cada vez a vemos menos clara.
Você destaca o papel das testemunhas na forma como hoje se faz História. Como você caracteriza o papel que desempenham hoje?
Sim, há uma era das testemunhas que é outra manifestação deste momento e se relaciona com a memória, o presentismo. Antes, os historiadores desconfiavam da testemunha porque pode se equivocar, pensa que viu, escutou, está segura que sua memória é fiel, mas também pode ser falsa. A importância que os depoimentos ganharam está relacionada com este momento, estes anos, onde se começou a levar em conta a palavra das testemunhas nos crimes do nazismo.
A primeira aparição pública da testemunha em um tribunal foi nos processos de Eichmann, em Jerusalém, em 1961. O procurador pediu testemunhas, sobreviventes, que foram prestar depoimentos, evidentemente, não sobre Eichmann, porque não o tinham visto, eram testemunhas que podiam contar o que haviam sofrido. Estavam lá para contar o que haviam sofrido pela política de Eichmann. Desde então, a testemunha assumiu um lugar importante como vítima.
Para o historiador, que atributo a voz da testemunha adquire?
A voz da testemunha é evidentemente importante se pensamos, por exemplo, em todas as testemunhas dos processos por crimes contra a humanidade... Era importante, nesse espaço, poder contar o que tinham sofrido. Nesse sentido, a voz da testemunha é insubstituível. Depois, há todos os problemas da crítica da testemunha, que faz parte do trabalho do historiador, mas é outro registro. Paul Ricoeur disse que do lado da memória temos a lealdade, e do lado da história temos a verdade, ou ao menos a busca da verdade. Não se pode sobrepor as duas coisas, não podem se juntar. Cada uma tem sua própria legitimidade. Não se deve pedir à história o que não pode dar, e não se deve exigir da história o que não tem que dar.
O que você acredita que a sociedade espera dos historiadores?
Agora, pouca coisa. Acredito que os historiadores, a partir desta transformação da relação com o tempo, já não sabem muito bem o que é escrever história. Quando o futuro estava aí, se sabia, porque se sabia para onde ir, e era possível medir o caminho a ser percorrido. Era possível, por exemplo, algo que foi feito em todos os países e em especial na América Latina, em fins do século XIX e inícios do século XX, escrever história nacionais. Era o caminho para a Nação.
Quando esse horizonte desaparece, não se sabe muito bem o que fazer. Já não fica claro o que é necessário reter do passado e o que se pode deixar de lado. Diante disto, está a memória, que pode ser amparada em tudo, em todo momento, em todo evento, sempre que exista alguma testemunha.
Na história, também houve uma espécie de fuga para frente. É possível escrever uma história sobre tudo, do telefone, das telas do computador, tudo pode ser objeto de estudo da história. A história se torna uma espécie de prática cultural. Fica muito mais encarregada por uma função de distração, que não é desprezível, é instrutivo, aprendemos coisas, mas não há realmente um propósito.
Também, outra coisa, a história pode se colocar a serviço da memória. Muitas vezes, são memórias que não temos, ou seja, o descendente de alguém, de segunda ou terceira geração, de um desaparecido ou um deportado, não tem uma memória, porque não pôde haver uma transmissão. Mas, deseja ter essa memória. Como fazer para ter essa memória? Recorrendo a procedimentos que são muito mais próximos da história, fazendo pesquisas, buscando arquivos, fazendo perguntas. Toda esta construção crítica que o historiador faz. É uma das formas que a história assumiu.
Outro caminho foi o que irá se tornar a história global. A ideia de que a história deve ser encarada de um ponto de vista global, e justamente sair das histórias nacionais, das histórias coloniais. É necessário buscar apresentar um ponto de vista global. Isso responde ao movimento da globalização, que ocorreu nos últimos 30, 40 anos, mas não responde à pergunta sobre o sentido da história.
Como historiador, acredita que esta época é interessante?
Não tenho opção, não posso escolher outra. Não imaginava que o mundo em que comecei a viver e refletir, nos anos 1960, 1970, iria se transformar tão rapidamente e de forma tão radical. É desconcertante, preocupante, mas também muito estimulante.
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“Já não é possível prever o futuro”. Entrevista com François Hartog - Instituto Humanitas Unisinos - IHU