24 Abril 2019
Há formas de pensar não diferentes, mas em dissidência, de não repetir a esgotadora mensagem do diagnóstico do mal e, ao mesmo tempo, de descobrir as possibilidades infinitas da ação humana. O filósofo francês Jacques Rancière pertence a esta dinastia dos rebeldes com magia e argumentos. Aquele que se aproximar de sua abundante obra, sairá com suas convicções transtornadas. Discípulo de Louis Althusser, Rancière, no entanto, fugiu dos vícios de uma tradição marxista fossilizada, confrontando seu pensamento com as lutas concretas dos operários e os dominados.
La palavra obrera, A noite dos operários e La filosofía de los pobres foram os primeiros livros que publicou, a partir dos anos 1970. Acompanhou-lhe um corpo de obra monumental, cujo centro sempre foi a emancipação humana, a luta de classes e a igualdade. Rancière é um insurgente inspirado que, nos últimos anos e a partir de obras como O ódio à democracia, O espectador emancipado, Los tiempos modernos, Arte, tiempo, política e En qué mundos vivimos?, atraiu um público jovem e comprometido, cansado do pensamento que se consome como um prato congelado, cozido em um micro-ondas.
É um pensador realista quando escreve: “não estamos frente ao capitalismo, ao contrário, vivemos em seu mundo”. Cinema, teatro, literatura, exploração dos laços entre política e estética são também temáticas que integram sua obra, em uma busca constante de compreender a multiplicidade dos tempos em que vivemos. Para o filósofo francês nascido na Argélia, em 1940, a ideia de que existe uma espécie de modernidade única, um tempo universal e linear é uma construção artificiosa. Não há uma linha do tempo, mas, sim, várias, nas quais se desdobram nossas realidades e rebeldias. Essa pluralidade do tempo é, segundo expressa nesta entrevista ao Página|12, realizada em Paris, uma das possibilidades mais ricas para se reconstruir uma ação coletiva e efetiva.
Em suma, uma semente para derrotar o sistema. Adepto das lacunas, ilhas e instantes de rebeldia, Rancière defende a ideia de que os movimentos de protestos só têm êxito quando conseguem deter o curso do tempo e instaurar, por um momento, outro, fora das agendas do sistema. São sementes de autonomia que produzem bosques de transformação. Revoluções, movimentos de protestos, possibilidades de ação contra o liberalismo, extremas direitas e ocaso das esquerdas centradas e extremas são alguns dos temas que o filósofo francês aborda nesta entrevista, onde o essencial é a possibilidade humana da emancipação diante de um sistema de opressão voraz.
A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada por Página|12, 21-04-2019. A tradução é do Cepat.
O sistema liberal mundial fechou com cadeado todas as possibilidades de uma transformação fria, ou seja, sem violência, mediante o consenso e a negociação. Você, em sua abundante obra, postula um modo de ação espacial e temporal quase como única legitimidade de ação coletiva para confrontar o sistema.
Busquei demonstrar que já não há mais um poder central concebido como uma fortaleza e a possibilidade de um assalto contra essa fortaleza. O capitalismo está em todas as partes da vida social, não estamos frente a ele, ao contrário, vivemos em seu mundo. No entanto, o capitalismo também é frágil. Sua lei colide em todas as partes com resistências locais e pontuais. Em todas as partes, ocorreu uma série de revoltas protagonizadas por comunidades específicas contra a extensão do poder capitalista e o poder do Estado.
Acredito que em uma situação como esta é importante que se desenvolvam comunidades que tenham suas próprias agendas políticas, sem estar submetidas às agendas parlamentares, porque estas se tornaram de alguma maneira agendas do Estado. Em quase todos os nossos países, os sistemas representativos passaram a ser agentes do Estado, deixaram de ser uma parte do poder popular. Uma política efetiva e alternativa ao sistema capitalista e ao poder do Estado, que está cada vez mais integrado ao poder capitalista, só pode existir de forma autônoma, ou seja, com pessoas capazes de criar suas formas de organização, suas agendas e seus próprios meios de ação. Trata-se de desenvolver movimentos com a máxima autonomia possível. Podem ser formas de autonomia políticas separadas das agendas parlamentares, pode ser uma autonomia econômica através da criação de uma rede alternativa de produção, de consumo e de intercâmbios, ou formas de autonomia ideológica e inclusive militares, como no México por exemplo.
De qualquer maneira, isto não tem nada a ver com as ideias que existiam antes a respeito da insurreição. Deixamos de estar nessa situação em que se acreditava que o capitalismo produz seu próprio desaparecimento. A lógica marxista enunciava que o capitalismo criava um modelo de produção que o faria explodir. Está claro que não é assim. Inclusive, pensou-se que o capitalismo alimentava a si mesmo com o trabalho, mas já sabemos que o capitalismo destrói o trabalho para se perpetuar. Não há nenhuma expectativa de que o capitalismo produza o socialismo, nem tampouco de que o povo armado se rebele, porque os operários, assim como as armas, desapareceram. Não há nem horizonte definido, nem forças identificáveis. O que vemos é a criação pontual de autonomias locais específicas, onde o sistema de dominação é frágil e pode ser atacado, e a partir das quais podem ser constituídas forças alternativas. Depois, essas zonas de autonomia estendem seu poder o tanto que podem.
Em sua filosofia, a ideia do tempo e do papel que este desempenha, tanto nos sistemas hegemônicos como nas tentativas de transformá-los, é fundamental. A esse respeito, você escreve que “uma política de emancipação existe sob a forma de uma interrupção do tempo”.
Sempre se tem a ideia segundo a qual, por um lado, existem os movimentos efêmeros e, por outro, as estratégias de longo prazo. Contudo, a história do mundo é bastante diferente. Quando se criam alternativas ao sistema de dominação, sempre ocorrem durante momentos singulares. As revoluções foram momentos singulares que duraram dias, semanas, meses ou anos. Isto equivale a dizer que a ordem normal das coisas foi interrompida, que, em certos momentos, as regras normais desaparecem, que o tempo fica suspenso e ao mesmo tempo se acelera, porque os movimentos geram altas velocidades. Um exemplo disso é o que aconteceu na França, em Maio de 1968: a ordem normal do governo e da economia de repente é interrompida, o tempo para, fica bloqueado. E quando o tempo se detém, as pessoas começam a refletir sobre a sociedade e lançam iniciativas que têm efeitos muito rápidos. Estamos, então, em uma situação que o sistema não previu.
O movimento dos coletes amarelos na França responde, por acaso, a essa lógica?
Trata-se de um movimento interessante porque, inicialmente, foi protagonizado por uma categoria de pessoas que nunca protestam. E é interessante também porque é um movimento de pessoas relativamente maduras, de pessoas que não são oriundas de uma tradição da esquerda, mas que acabam adotando formas pertencentes à esquerda internacional. Ocuparam as rotatórias assim como os jovens indignados ocuparam as praças em Madri. Pronunciaram-se em favor de uma democracia horizontal, que corresponde ao anarquismo da juventude intelectual. Acredito que foi efetivamente um momento de suspensão, que começou como protesto contra um imposto ecológico e acabou colocando em julgamento todo o sistema.
Em seguida, os coletes amarelos foram um movimento que se viu paralisado porque não sabia exatamente o que queria para além de suas reivindicações iniciais. Não havia um horizonte final, mas não é culpa deles, porque é assim: não há horizonte final e ninguém sabe para onde olhar. Os coletes amarelos refletiram a situação global dos movimentos de protesto dos últimos anos, em que foram vistas formas de interrupção do tempo e, ao final, ficaram travadas, porque tiveram um tempo autônomo que não sabia para onde se dirigia. Ocorre, então, que esses movimentos ou se esgotam ou os governos os transformam em enfrentamentos. Desse modo, perde-se a originalidade política da situação.
Isto equivale a pensar que é impossível constituir o que você chama de “uma comunidade de luta contra o inimigo”.
Foram criadas essas comunidades de luta e muitas obtiveram vitórias. Foram vitórias pontuais, locais. Mas, na realidade, na história da emancipação sempre foi assim: há momentos de emancipação coletiva. Esses momentos podem ser pensados como etapas dentro de uma temporalidade extensa e, ao mesmo tempo, como momentos em que as pessoas viveram com liberdade e em igualdade. Seriam como os momentos dos movimentos: viver certo tempo em plena liberdade coletiva. São criados espaços, lacunas, oásis, e se busca desenvolvê-los, mas não é evidente. Por isso, gosto da ideia da ocupação das praças, dos espaços, porque indica que quando se ocupam os espaços, se cria outra forma de temporalidade.
Como permanecer para além desses momentos?
Houve tentativas de criar movimentos que vão além do protesto para se prolongar no tempo, até se tornar movimentos capazes de organizar formas de vida alternativa. A história nos demonstra, no entanto, que foram esses movimentos autônomos os que conseguiram vitórias, inclusive parciais, contra o capital e o Estado. Hoje, vemos claramente que nem os partidos revolucionários, nem os sindicalizados chegaram a ganhar algo. Não. Quando há medidas que vão contra o trabalho, o mais eficaz não é a ação dos sindicatos, mas, sim, a dos movimentos autônomos como os indignados, a noite de pé ou os coletes amarelos. As estratégias dos partidos ou dos sindicatos já não valem nada. As forças da esquerda foram integradas ao Estado e realizam uma política semelhante à das forças da direita. É paradoxal porque ao mesmo tempo que não sabemos para onde esses movimentos se dirigem, são, de fato, os únicos movimentos reais que impugnam o poder.
Na França, a esquerda tradicional não existe mais. Fica por aí este suposto populismo de esquerda que tenta recuperar o que há e se dotar de uma força parlamentar: Syriza, na Grécia, Podemos, na Espanha e França Insubmissa, aqui. Contudo, esses partidos não organizaram nenhuma luta vitoriosa contra o inimigo. Ao contrário, movimentos como os indignados, sim, fizeram isso. Na Grécia, por exemplo, o Syriza mudou de lado. Ao final, temos movimentos que não sabemos para onde vão, mas são os únicos que existem.
Essas três esquerdas europeias, a da Grécia, França e Espanha, ao final, não chegaram a nada. Estão em uma situação de ocaso lento.
Chamou-me a atenção o fato de que, na Espanha, a primeira ação do Podemos, quando se constituiu, foi apresentar uma lista para as eleições europeias, em vez de atuar lá onde sua ação tinha um sentido. Acredito, não obstante, que, como a esquerda adotou em todas as partes o perfil da direita, há um lugar para a esquerda da esquerda. No entanto, até agora, essa esquerda da esquerda não foi capaz de organizar nenhuma ação autônoma.
O que deveríamos reformular? Fazer um inventário de toda a herança da esquerda revolucionária e o da transformação e, a parti daí, pensar em outra coisa?
A única herança real com a qual contamos hoje é a herança que nos deixaram os movimentos momentâneos. Não há herança dos partidos de esquerda, nem tampouco dos partidos revolucionários, que apenas conseguem escassas porcentagens nas eleições. Não estou dizendo que se deva rejeitar os partidos da esquerda. Trata-se de constatar a verdade. Na França, a resistência ao liberalismo foi talvez mais forte que em outros lugares, mas graças à herança de maio de 68 e não aos partidos da esquerda que, ao contrário, o que fizeram foi confiscar essa herança.
O efêmero é, então, o que se sobressai.
O efêmero é o que rompe o curso do tempo da dominação e o que deixa uma herança. Não é só uma herança sentimental, mas são fatos. Na França, as vitórias obtidas contra a reforma da aposentadoria (1995) e contra uma lei de reforma trabalhista, em 2006, foram conquistadas pela herança de maio de 68 e não pela ação dos partidos da esquerda.
As extremas direitas são a grande figura renascida no panorama mundial. Foram crescendo proporcionalmente ao ocaso da social-democracia. Para você, esse retorno é um momento efêmero ou veremos um enraizamento temporal mais consistente?
Para mim, o maior fenômeno não é o de uma extrema direita que retorne após ter permanecido escondida. Não. O essencial é como a direita tradicional foi para os extremos. Na medida em que a esquerda implementa a mesma política econômica e social que a direita, a direita teve que buscar uma figura específica para existir. É por isso que a direita precisa se radicalizar e apelar para toda uma série de instintos e paixões que há 30 anos não necessitava. Antes, a direita se apresentava como uma força de centro, meio liberal, meio modernista. Agora, isso acabou. Para existir no parlamento, devem se radicalizar. Por isso, não penso que a extrema direita seja uma expressão das classes populares. Essa é a análise oficial. O auge da extrema direita se deve à radicalização da direita. Desconfio da ideia acerca de um suposto enraizamento popular da extrema direita. A ideia de um povo francês racista, que enfrenta os imigrados, foi construída por todo um sistema de propaganda.
Faço uma escala em um de seus mais belos livros: Los tiempos modernos. Em geral, fala-se de “modernidade” e não de tempos modernos. Qual é a diferença entre a modernidade e os tempos modernos?
Para mim, a ideia da modernidade é totalmente falsa, tanto como o enunciado de que a modernidade funcionou como uma declaração da autonomia da arte. Sempre tratei de demonstrar que era o contrário, ou seja, que se existia uma modernidade artística, esta consistia na vontade de unir a arte com a vida e não de fazer com que a arte fosse autônoma. Com esse livro, quis demonstrar que não existe uma temporalidade da modernidade, mas que há várias maneiras de construir a modernidade. Tempos Modernos porque são vários e várias: há a modernidade econômica e a modernidade industrial e ambas não correspondem à modernidade política e espiritual. Não há um só tempo moderno. Uma história com um grande H e um tempo homogêneo não existe. Há, sim, temporalidades diferentes.
Também se cunhou a falsa ideia de que a modernidade é um processo contínuo dentro de um tempo único e similar. Não, não há tempo, mas, sim, tempos. A arte e os artistas criam em certo momento um tipo de tempo moderno que não é em nada homogêneo. É uma espécie de paradigma da modernidade, uma maneira de ligar o tempo, o movimento, a comunidade, o presente, o futuro.
Hoje, vivemos dentro de vários tempos ditados pela tecnologia e dentro da noção de “pós”: pós-modernidade, pós-verdade. Evoca-se, assim, o fim de tudo, mas tudo segue...
O termo pós, na realidade, corresponde um pouco ao discurso do intelectual cansado que diz: “tudo está acabado”. Já se começou a dizer que tudo estava acabado nos anos 1820... Naquela época, já se falava da literatura industrial e se afirmava que a literatura e a cultura haviam acabado, que só importava o mercado. Há dois séculos que se afirma isto. Este discurso convém para todo mundo: tanto para aqueles que se apresentam como os últimos defensores da civilização, como para os que se acreditam inovadores de um novo tempo e porta-vozes desse tempo.
São noções sem interesse porque depois, bom, tudo segue, continua, não estamos nem no ‘pós’, nem no fim da civilização. É uma falsa construção, ainda que seja intelectualmente muito útil para os filósofos crepusculares, assim como para os que se consideram vanguardistas. É um jogo duplo onde, no que concerne à verdade, se decreta que a verdade acabou, que os fatos carecem de importância e que o importante é a análise e a interpretação, porque estamos para além de tudo, em um ‘pós’ infinito. Aqui, vemos claramente que estamos diante de uma forma de administrar a opinião onde os fatos deixaram de ser necessários e onde o importante é integrá-los em um sistema de explicação preexistente e, por conseguinte, não é necessário que os fatos sejam verdade.
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“O efêmero é o que rompe o curso do tempo da dominação”. Entrevista com Jacques Rancière - Instituto Humanitas Unisinos - IHU