17 Junho 2019
"Acreditar é um risco. Fé e religião não são sinônimos, embora estejam conectados. A fé é uma experiência existencial, uma escolha radical. A religião é a manifestação exterior. Agitar o Evangelho, ostentar o rosário, beijar o crucifixo não te tornam necessariamente um crente".
A frase é do cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em entrevista concedida a Aldo Cazzullo, publicada por Corriere della Sera, 16-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Cardeal Ravasi, o senhor nasceu em 1942. O que lembra sobre a guerra?
Luzes avermelhadas na noite: os bombardeios em Milão.
Sua família é da região de Brianza.
Eu nasci em Merate, mas com minha mãe fugimos para Santa Maria Hoè. Passei o primeiro ano da minha vida chorando: eu manifestava uma natureza pessimista, diferente daquela de hoje. Papai era um antifascista. Ele foi enviado para lutar na Sicília na linha de frente. Desertou, com muitos outros. Voltou para casa a pé, levou um ano e meio. Quando ele chegou, tive dificuldade em me familiarizar com ele. O companheiro da minha infância era um pato de madeira: quando chovia, a trilha virava um riacho, e era onde eu o levava para nadar. Eu não invejo as crianças de agora com seus videogames.
A fé na Brianza dos anos 40 era natural.
Se alguém a tivesse sobrevoado de helicóptero na manhã de domingo, teria visto os camponeses e trabalhadores confluir de todos os cantos para as igrejas.
Quando o senhor descobriu a fé?
A primeira intuição, aos quatro anos. Com meu avô materno Giovanni, a quem eu era muito apegado, assistíamos ao pôr do sol de uma colina com vista para o vale. Ouvimos o trem apitar. Era o Milão-Lecco. Eu senti a percepção do fim das coisas. A melancolia. A ideia que a realidade é instável. O sentido da morte. Daí o desejo de algo eterno.
Já teve dúvidas sobre a vida após a morte, sobre a imortalidade da alma?
Eu sempre concebi a fé como entrelaçada com as trevas, a escuridão, a pergunta, a dúvida. Os modelos são Abraão e Jó. Penso na ascensão de Abraão ao Monte Moria, ao lado de Isaque, o filho a ser sacrificado: por três dias Deus não fala mais, desaparece, e os dois falam entre si, "meu pai", "meu filho"; o único conforto é a solidariedade humana, o vínculo da carne.
E Jó?
Jó diz a Deus: "Mesmo que você me matasse, eu continuaria acreditando em você". Em sua fé há um elemento paradoxal. O itinerário de sua crença pode incluir até a blasfêmia. Jó compara Deus a um arqueiro sádico que lança flechas nele, a um leopardo que aguça os olhos sobre ele, ao general triunfante que afunda o crânio.
O que deduz disso?
Que acreditar é um risco. Fé e religião não são sinônimos, embora estejam conectados. A fé é uma experiência existencial, uma escolha radical. A religião é a manifestação exterior. Agitar o Evangelho, ostentar o rosário, beijar o crucifixo não te tornam necessariamente um crente.
Então Salvini está errado?
São sinais que em si não representam a autenticidade da crença. Cristo condena aqueles que tomam os primeiros lugares na sinagoga, aqueles que esticam os filactérios, os pergaminhos com os versículos da Torá. Cristo perdoa todos os pecados, mas não suporta as hipocrisias. Não existe a autossalvação. Ninguém se salva por manifestações exteriores, mas por uma profunda adesão às escolhas morais e existenciais. Não é o gesto ritual que salva. O sacramento é "opus operatum", ato objetivo marcado pela presença divina, mas também "opus operantis", ato subjetivo, uma escolha vital e moral. Caso contrário, é um ritual mágico. Magia.
Os católicos na política hoje contam pouco.
É difícil reconstruir uma estrutura, uma presença católica explícita. No entanto, é possível e necessário ser um espinho no sapato da sociedade. Não ter medo de ir contracorrente.
Com sua defesa dos migrantes, o papa não perdeu parte de sua sintonia com a opinião pública?
O Papa fala como cristão, sua voz nos lembra os nossos valores. Como o padre Turoldo dizia, não devemos buscar o consenso, nem o dissenso como um fim em si mesmo; devemos buscar o senso.
A Itália está em crise de fé?
Sim. Todos os grandes estudiosos afirmam o retorno do sagrado. Porém o sagrado pode ser só algo ritual, externo, convencional. Temo que o acreditar profundamente esteja em crise. Os verdadeiros crentes são uma minoria. Não devemos e não podemos esperar ser uma maioria, gerenciar a sociedade como acontecia no passado. Podemos e devemos ser, repito, um espinho no sapato, isto é, testemunho vivo. Como os cristãos das origens, que se refugiavam nas catacumbas, mas nem por isso desistiam de se comprometer em público. Nós hoje podemos e devemos provocar. Dizer inclusive o contrário do que é dominante. Além disso, Cristo estava em má companhia: prostitutas, pecadores, apóstolos que o traíam ...
E morreu na cruz.
A morte do sedicioso, o terrorista, do escravo. Estou convencido de que a escolha de Cristo e, portanto, a escolha da Igreja, não é adaptar-se ao contexto, mas ser uma força de provocação, que em primeiro lugar grita as verdades últimas - vida e morte, bem e mal - mas também as verdades penúltimas: solidariedade, justiça, ética sexual, luta contra o crime ... O autêntico Evangelho não é algo que se acolhe como uma mensagem tranquila. E o cristianismo não é apenas uma religião transcendente como o islamismo; é uma religião encarnada. Sempre teve uma dimensão social e "política", no sentido originário do termo.
Mas hoje no mundo existem teocracias islâmicas.
Sim, mas para o islamismo Deus é o sol e você é uma poça d’água. Às vezes a poça pode refletir o sol; mas continua sendo uma poça. Para nós, cristãos, o Deus transcendente decidiu compartilhar nossa condição. Não para consolar o homem, nem para dominá-lo; decidiu atravessá-lo. Deus se tornou homem e compartilhou conosco o que nos torna humanos: a dor e a morte. Surpreendente é a releitura da Encarnação feita por Jung: o homem Jó contesta Deus sobre a objetividade da ética, duvida sobre o que seja bem e o que seja mal; Deus fica curioso e decide enviar seu filho, torná-lo humano, ombro a ombro com Jó.
O que quer dizer?
Cristo compartilha a pergunta de Jó: por que a dor? Por que o mal? Por que a morte? E eis que a morte para nós não é mais a mesma de antes, se foi atravessada por Deus.
Como lembra os seus Papas? Pio XII?
Eu tinha oito anos, eu o vi em Roma no Jubileu de 1950, na sedia gestatória [trono portátil]. Uma teofania do sagrado.
João XXIII?
Encontrei-me com ele brevemente uma vez: falamos de Bergamo, da Brianza, da província branca da Lombardia. Eu tinha estado na Praça de São Pedro na noite da abertura do Concílio: o discurso da lua. Ele nos encantou. Eu acabara de chegar a Roma com uma bolsa de estudos que o arcebispo de Milão tinha me conseguido.
Giovanni Battista Montini, que se tornaria Paulo VI no ano seguinte. Para Milão, o senhor retornaria como prefeito da Ambrosiana, chamado por Martini. Qual sua lembrança?
Martini era frio no trato, caloroso e criativo no diálogo com a cultura contemporânea. Foi meu professor de crítica textual, um assunto muito técnico, que consiste em identificar entre os vários códigos e papiros o texto mais autêntico da Bíblia. Ele ainda se lembrava do exame que eu havia feito com ele, de uma frase do segundo livro dos Macabeus, baseada em dois verbos diferentes, de acordo com os diferentes códigos ...
Como eram realmente as relações entre Martini e Wojtyla?
Eles tinham algumas visões diferentes. Eu não acredito no concordismo absoluto. Exceto a verdade da fé, existem diferentes perspectivas na Igreja. O papa Bento XVI sabia disso, mesmo assim me confiou o Pontifício Conselho para a Cultura. Eu organizei o Pátio dos Gentios de uma maneira um pouco diferente do que ele pensava, ainda assim ele me deu permissão e me apoiou. Lembro-me bem de suas palavras no telefone quando ele me chamou para Roma: "Eu tenho que lhe pedir um favor, sei que para você é um sacrifício sair do Milão ... se quiser pensar sobre isso por alguns dias...".
O que o senhor respondeu?
Sim, imediatamente. Embora eu tenha realmente sentido muito sair de Milão.
Como é Milão?
Uma cidade extraordinária, pela sociabilidade e generosidade. A recuperação da Ambrosiana valia 47 bilhões de liras: mas para a Igreja não custou um centavo, tudo foi pago pelos milaneses, da Fundação Cariplo até as pessoas simples, como aqueles pais que me pediram para dar a um código restaurado o nome de seu filho morto por drogas. Em Roma, para salvar os afrescos das catacumbas dos santos Marcelino e Pedro, tive que pedir ajuda ao Azerbaijão. No Centro San Fedele, tive por 22 anos pelo menos mil pessoas, todos os sábados do Advento e da Quaresma, para ler a Bíblia. Em Roma eu teria cinquenta.
O senhor acredita que Bergoglio foi além do que os cardeais que o elegeram esperavam, o senhor incluído?
Francisco foi uma surpresa. Quando entramos no Conclave, poucos esperavam que depois de Bento fosse escolhido - e em poucas rodadas de votação, não mais do que o Conclave anterior - um tipo diferente de Papa, com uma visão tão inovadora. Tenha em mente que entre nós no Conclave se fala bem pouco...
Como assim?
O ritual é extremamente longo. Cada um é chamado pelo nome, deve levar a cédula na mão, colocá-la em uma bandeja de prata, passar sob o olhar severo do Cristo de Michelangelo, recitar uma fórmula latina de "auto maldição", na qual se invoca o juízo divino caso a escolha não seja feita de acordo com a consciência e pelo bem da Igreja. Não sobra muito tempo para conversar uns com os outros. Poucos dias depois da eleição de Francisco, encontrei na rua um homem que me disse: "Continuo ateu, mas começo a acreditar no Espírito Santo".
Mas o senhor acabou de dizer que a Itália está em crise de fé.
É necessária uma profunda revisão da pastoral e da linguagem, levando em conta o novo contexto; vamos pensar, por exemplo, na cultura digital. Nós não fazemos o bastante para os fiéis. É mais fácil fornecer uma tese à qual aderir e impor um ritual. Mas a fé implica formação, reflexão, partilha e compreensão.
O senhor costuma citar Agostino: "Tudo o que crê, pensa; crendo pensa e pensando crê. A Fé, se não for pensada, nada é".
Também gosto muito de Spinoza, que em seu Tractatus politicus escrevia: Sedulo curavi actiones humanas non ridere, non lugere, neque detestari; sed solum intelligere.
Eu tentei assiduamente a aprender a não rir das ações humanas, a não chorar, a não as odiar; apenas entendê-las.
“Intus legere: ler por dentro, conhecer. Nós não conhecemos apenas com razão ou com os sentidos ou com a experiência estética. Quando alguém se apaixona, não se apaixona apenas pela beleza: inclusive um rosto imperfeito se torna expressão de significados que não podem ser percebidos apenas com a razão. Eu fui amigo de Mário Luzi, vi como era difícil, de quantas tentativas nascia cada um de seus versos: o poeta diz coisas que você não consegue elaborar apenas com a racionalidade. Assim é a fé: outro canal de conhecimento que, no entanto, não exclui justamente a razão, o pensamento”.
Como biblista, como imagina a vida após a morte?
A imortalidade da alma na Bíblia quase não existe. Há a recriação de todo o ser: a visão de Ezequiel.
Os esqueletos que voltam à vida.
No cristianismo, a ressurreição da carne é central. Eu não tenho corpo; eu sou um corpo.
Jesus ressuscita Lázaro, se torna muito popular, entra triunfalmente em Jerusalém, e o Sinédrio o sentencia à morte.
Mas a ressurreição de Jesus não é a mesma que Lázaro, que renasce para a vida para depois morrer novamente.
Ressurgir não é reanimar um cadáver. A Bíblia usa três verbos gregos: egheirein, que significa despertar; anistemi, o que significa ficar de pé; e hypsoun, que indica a ascensão ao eterno e ao infinito.
Rilke pensava na morte como a outra face da vida, comparada com aquela virada para o nosso lado. A filosofia moderna de modo algum exclui a possibilidade de superar as fronteiras do tempo e do espaço e entrar no eterno e no infinito.
Mas Jesus também diz que na vida após a morte não haverá esposa nem marido, nem irmão nem irmã.
Ele fala isso para confundir os saduceus, que queriam fazê-lo cair em uma armadilha, perguntando-lhe de quem seria esposa uma viúva na vida após a morte que tivesse se casado com os seis irmãos de seu marido. Mas nós, uma vez ressuscitados, encontraremos nossos entes queridos dentro de uma nova criação, confiada ao Deus dos vivos e não dos mortos, como fala Jesus. Uma frase que Pascal sempre carregava com ele em um lenço costurado em sua roupa, com um breve comentário intitulado Fogo.
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Acenar o crucifixo? Ritual Mágico. Entrevista com Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU