29 Março 2019
Inesperada e interrompida, a demolição dos antigos armazéns preocupa movimentos urbanos e reacende o debate sobre o direito à cidade.
A reportagem é de Thais Reis Oliveira, publicada por CartaCapital, 29-03-2019.
Depois de sete anos, a disputa pelo destino do cais José Estelita ganhou novos capítulos. Na última segunda-feira 25, houve a autorização para a demolição de galpões no local, sob autorização da Prefeitura do Recife. A pedidos do Ministério Público, entretanto, o ranger das escavadeiras foi suspenso no dia seguinte. O canteiro de obras está parado, pelo menos por enquanto. E história está longe de acabar.
Cenário de um antigo pátio ferroviário e vários armazéns de açúcar, o Estelita estava abandonado havia décadas quando a União decidiu se desfazer dele, em 2008. Acabou arrematado por um grupo de empreiteiras em um leilão acusado de irregularidades. O plano? Um megacondomínio batizado de Novo Recife.
A pretensão do consórcio é erguer treze torres de até 38 andares, e vagas para 5.000 carros. Os apartamentos já estão à venda e, nas versões mais luxuosas, chegam a custar 1,8 milhão de reais.
Não faltam razões para o interesse do mercado imobiliário. O Estelita fica em um enorme terreno na beira d’água que liga o centro de Recife aos bairros mais caros da cidade, além de ser um cartão-postal conhecidíssimo. Em meio a esse choque, virou o símbolo de duas visões antagônicas.
De um lado, é vendido como o colosso de um Recife novo e moderno. Do outro, é acusado de aprofundar as velhas desigualdades da capital pernambucana em nome dos interesses políticos e econômicos. “É um processo comum no Recife. Abandonar lugares até que sejam inutilizados e, então, inseridos na especulação imobiliária”, critica o jornalista Chico Ludermir, ativista do Ocupe Estelita.
Ao longo da semana, uma fila quilométrica de mulheres e homens desempregados também ocupou o Estelita. A Moura Dubeaux, responsável pela construção dos imóveis, anunciou vagas de emprego mesmo com as obras paradas. Uma tentativa, na visão dos ativistas, de fortalecer a narrativa de “Novo Recife ou nada”.
Croqui do Projeto Novo Recife: Apartamentos de até 1,8 milhão de reais
(Foto: Reprodução | Moura Dubeaux)
O movimento considera que, desde o início, o Novo Recife jamais levou em conta a participação popular, além de desrespeitar o patrimônio histórico e o meio ambiente. “Esse terreno tão grande poderia ter vários usos. Parques, praças, um memorial ferroviário. E, em paralelo, destinar 30% para moradias populares, no modelo do Minha Casa Minha Vida. O nosso projeto também gera empregos”, diz Ludermir.
A questão é igualmente arquitetônica. O terreno fica em frente ao bairro histórico de São José e é cercado por favelas, entre elas a Brasília Teimosa, famosa pela história de resistência contra o poder político e econômico. Para o professor Tomás Lapa, professor da pós em Desenvolvimento Urbano da UFPE, o projeto arquitetônico do Novo Recife não se preocupa em dialogar com esses bairros vizinhos.
“Em primeiro lugar, nenhuma construção naquela região deveria ser mais alta que a torre das Igrejas. É evidente a intenção de formar ali um gueto de luxo, porque ignoram quem está atrás, quem está ao lado e vedam o acesso ao espelho d’água.”
O consórcio é réu em pelo menos doze processos, que tramitam em várias instâncias judiciais. Uma delas questiona justamente o plano especial que a Prefeitura aprovou, em 2015, para acolher o Novo Recife. Para se adequar, o consórcio topou remodelar o projeto.
Em 2017, um novo pacote urbanístico estendeu a licença de todos os imóveis já protocolados, dando sobrevida ao projeto. “Legislativamente, já não temos mais o que fazer. A Prefeitura sempre teve maioria na Câmara”, diz o vereador Ivan Moraes (PSOL), ativista do movimento.
Entre outras mudanças, abriu mão dos muros e destinou 65% da área total para uso público. Mas ainda não é suficiente: “Falam em moradias populares, mas não dizem quem vai fazer, como vai ser, se é ou não do Minha Casa Minha Vida. É apenas uma carta de intenções e, dessa forma, não temos sequer como cobrar”, critica Ivan.
O Ministério Público de Pernambuco considera o plano ilegal — exigem que o zoneamento estabelecido no plano anterior, de 2008, seja respeitado. Na ação mais recente, que resultou nas interrupções das demolições, o MP-PE pede também que a Justiça proíba o município de aprovar licenças de construção baseadas no Plano Específico do Cais José Estelita, Santa Rita e Cabanga. Caso a lei seja declarada ilegal, o MP-PE pede que o registro do loteamento seja anulado.
O processo de leilão também está em xeque, e chegou até a ser alvo de uma operação da Polícia Federal. Segundo a investigação, o consórcio Novo Recife foi único concorrente, pagou barato e arrematou o local rápido demais — o processo durou treze dias em vez dos trinta previstos e saiu por 10 milhões abaixo do valor de mercado. A negociata chegou a ser anulada pela Justiça em 2015, também a pedidos do MP, mas a segunda instância reverteu a decisão.
Ativistas e políticos concordam que um novo leilão seria o caminho mais seguro para revogar definitivamente o Novo Recife. “Não houve sequer discussão com a Prefeitura e governo estadual para saber se eles gostariam de adquirir o terreno”, diz Ludermir. “A obra poderia até ser tocada por uma empresa privada, não somos contra. Mas é preciso respeitar as normas e o Plano Diretor”, completa Ivan.
Cinco dias antes da autorização para a demolição, o Iphan havia concluído um levantamento arqueológico no cais, abrindo caminho para a ação das construtoras. Surpreendidos pela possibilidade de derruba dos galpões, os ativistas refundaram às pressas o acampamento que impediu a primeira tentativa de demolir o local, em 2014.
A rotina de assembleias e eventos culturais também foi retomada, mas ainda sem a efervescência que marcou as lutas passadas. Durante os 28 dias da ocupação anterior, mais de 10 mil pessoas passaram pelo cais, que ganhou projeção nacional. Nos eventos mais recentes, chegam a receber 250 pessoas.
Ativismo do Ocupe Estelita (Foto: Marcelo Soares)
Dezenas de pessoas estão dormindo próximo às paredes dos armazéns que restaram. O lugar foi escolhido por uma razão simbólica: caso a demolição recomece, os escombros cairão sobre a cabeça dos ativistas. Ludermir explica: “Diante da iminência da demolição, tivemos que colocar o nosso corpo para salvaguardar o cais.”
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Disputa pelo cais Estelita ganha novo capítulo, mas está longe do fim - Instituto Humanitas Unisinos - IHU