23 Março 2019
Desafia a deputada Joênia Wapichana (Rede/RR), que não se intimida com o número de parlamentares na base do governo do capitão Bolsonaro.
A reportagem é de Erika Morhy, publicada por Carta Maior, 21-03-2019.
São 301 os deputados e deputadas federais que integram o bloco parlamentar de apoio ao esdrúxulo governo de Jair Bolsonaro (PSL) na Presidência da República. Numericamente, é o maior dos três blocos formalizados na Secretaria-Geral da Mesa da Câmara para esta 56ª Legislatura do Congresso Nacional, considerando os 513 membros da casa. “Não são a maioria, não. A maioria é a população brasileira, que deve ficar atenta a qualquer atrocidade, retrocesso à nossa Constituição”, desafia Joênia Wapichana, a primeira mulher indígena eleita deputada federal ao longo da centenária história republicana. A Rede, legenda que integra pelo estado de Roraima, está no bloco de oposição, formado por 97 parlamentares.
Advogada, formada pela Universidade Federal de Roraima, e mestre em Direito, pela Universidade do Arizona (USA), Joênia esteve em Belém (PA), nesta segunda-feira (18), para ministrar aula magna aos calouros do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA). Entre alunos, professores, autoridades, juristas, antropólogos, ela percorre o ambiente com a segurança de quem esbanja uma potente trajetória em defesa dos povos originários e atuou diretamente em casos caros aos seus parentes. Com a voz embargada, menciona o assassinato do líder Macuxi Aldo da Silva Mota, em janeiro de 2003. Era um momento crucial na violenta disputa pela Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ratificada como reserva há exatos dez anos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), conforme homologação decretada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005.
Nascida em 1974, a deputada já quebrou inúmeros paradigmas e alcançou reconhecimento internacional, o mais recente deles foi a condecoração pela Organização das Nações Unidas (ONU) com o Prêmio de Direitos Humanos 2018. A honraria é concedida a cada cinco anos desde 1968 e, entre os distinguidos, já estiveram Martin Luther King, Nelson Mandela, Eleanor Roosevelt, Jimmy Carter e Malala Yousafzai. Em sua nova frente de batalha, desta vez no Poder Legislativo, Joênia reafirma seu território de disputa e ocupa o gabinete 231 em Brasília, numa alusão direta ao artigo da Carta Magna que é basilar para as garantias dos direitos coletivos dos povos indígenas. E de lá faz questão de estabelecer alianças com outros segmentos eleitos alvo pelo regime autoritário que se estabelece no Brasil, a exemplo da comunidade acadêmica, notoriamente a instituição pública de ensino superior.
Titular da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, a Wapichana revela ferramentas adotadas para enfrentar a acintosa Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019, assinada pelo capitão Bolsonaro e que o próprio Ministério Público Federal denuncia como inconstitucional. A exposição jurídica desenhada em Nota Técnica pelo subprocurador-geral da república, Antonio Carlos Alpino Bigonha, demonstra a afronta ao estatuto constitucional indígena; a ausência de consulta prévia aos povos indígenas determinada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); a convergência de interesses indígenas e preservação ambiental; o conflito entre interesses indígenas e política agrícola da União; e o conflito entre os interesses indígenas e o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
A ativista argumenta que a espinha dorsal da luta indígena é a mesma há cinco séculos, apesar das conquistas no marco da democracia e do ineditismo na atual frente de batalha – entre os indígenas, apenas o cacique Xavante Mário Juruna já havia ocupado o cargo de deputado federal, tendo sido eleito em 1982, pelo PDT do Rio de Janeiro. A sobrevivência desses povos está intrinsecamente relacionada ao direito ao seu território, um direito que não foi concedido, mas reconhecido há 30 anos. É na defesa de seus territórios que esses povos tombam, reitera Joênia, denunciando homicídios brutais e convenientemente silenciados, como os recentes casos em Roraima, São Paulo, Amazonas e Pernambuco.
Esperançosa, a deputada prevê para a primeira semana de abril a instalação da Frente Parlamentar Mista de Defesa dos Povos Indígenas, com uma composição de mais de 200 parlamentares. “Eu acredito muito que existam pessoas, até mesmo dentro da base do governo, pessoas que estão entrando pela primeira vez, iguais a mim, e que têm a mente aberta aos direitos sociais, progressistas”, justifica.
A aula imponente de Joênia Wapichana reafirma o compromisso da ciência com a produção de conhecimentos no limiar de questões urgentes vividas pela sociedade, alicerçados em princípios constitucionais, em tratados internacionais e na convicção de que os grupos em situação de vulnerabilidade precisam contar com instituições democráticas fortes.
Saudações Indígenas a todos os presentes, em especial às mulheres, pois, neste mês, mais do que nos outros, estamos em destaque.
Quero agradecer ao Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, por promover o evento e pelo convite. Agradecer os esforços do doutor Emmanuel Tourinho, do doutor Antonio Maués, da doutora Jane Beltrão e da doutora Eliane Moreira, que, onde a encontro, tem levado ao conhecimento de todos a importância do instituto e o trabalho que vem desenvolvendo junto aos povos indígenas, em especial aqui no Pará. São passos importantes para descolonizar os espaços de produção de conhecimentos e profusão de ideias.
Quando anunciavam meu nome e minha trajetória, observei que minha trajetória está fazendo parte da história de conquista dos povos indígenas no Brasil. Para nós, nunca foi fácil ser indígena. Você já nasce com desafios em sua vida.
Nasci num estado, como os demais na Amazônia, ricamente indígena. Nós, Wapichana, Macuxi, Patamona, Ingarikó, Wai Wai, Waimiri Atroari, Ye´kwana, Taurepang, Yanomami, ocupamos hoje quase metade do território de Roraima. Enfrentamos vários processos de colonização, fomos dizimados, pois alguns povos não sobreviveram, mas nós resistimos. Nós conquistamos a demarcação de mais de trinta Terras Indígenas, participamos da construção de sistemas de saúde e de educação diferenciados e temos novas frentes de atuação.
Esta luta e estas vitórias têm um preço. Muitas vezes pago com a própria vida, como vocês aqui no Pará conhecem bem. Roraima, por ser um estado tão indígena, tem se destacado em casos de violência institucionalizada, como a implantação de duas sedes municipais dentro de Terras Indígenas – a Uiramutã e a Pacaraima – em 1995. Atualmente, com a nomeação de uma pessoa indígena para assumir a Secretaria do Índio, criada em 2000.
Durante o processo de demarcação das Terras Indígenas, houve acentuados conflitos, com destruição de casas, currais e outros bens indígenas. Houve também muitas ameaças, atentados e mortes.
O assassinato, em 2003, da liderança Macuxi Aldo da Silva Mota, entre vários que houve, traz esta triste marca da violência institucionalizada. Aldo foi assassinado no auge da disputa sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Foi alvejado, teve seu corpo jogado e enterrado numa cova rasa, dentro de uma área considerada, naquele tempo, não indígena (uma fazenda), onde se proibia indígenas de entrar, por força de uma decisão judicial liminar, pois ainda se aguardava a homologação da terra.
Foi julgado como mandante e inocentado um então vereador do município de Uiramutã, que ocupava o local onde o corpo foi encontrado. A Polícia Civil inicialmente se negou a investigar o caso. Demorou para o corpo ser encontrado. Depois de encontrado, o IML de Roraima expediu laudo: a morte tinha sido de causa natural. O corpo foi removido, a pedido da organização indígena, para o IML de Brasília, que localizou projéteis de bala no seu corpo. Em 2012, nove anos depois de assassinado, o julgamento absolveu o mandante e os dois pistoleiros contratados que executaram Aldo Mota. Quem tiver interesse no caso, depois posso contar, porque daria uma longa conversa.
É dentro deste contexto que atuei por mais de 20 anos como advogada até ser eleita como deputada federal. E é no Congresso Nacional que estamos enfrentando as ações para minar todas as nossas conquistas obtidas na Constituição Federal de 1988 e a partir dela.
Nós obtivemos muitas vitórias no campo do reconhecimento dos povos indígenas como direitos humanos, participando da construção e aprovação de vários instrumentos internacionais, como a Convenção 169 da OIT e a Declaração dos Povos Indígenas, e utilizando os sistemas de proteção dos direitos humanos da ONU e da OEA. Este ano é o Ano Internacional das Línguas Indígenas e o Fórum Permanente dos Povos Indígenas – que acontece em maio, em Nova Iorque – tratará dos conhecimentos tradicionais.
Mas nós estamos enfrentando hoje o maior ataque aos nossos direitos e às nossas conquistas. Um dos primeiros atos do atual presidente foi editar a Medida Provisória 870, que retira da Funai a competência para demarcar terras indígenas e retira o órgão do Ministério da Justiça, passando-o para o Ministério da Agricultura. O que é um insulto! Inserir a condução da política indigenista na seara da política agrícola do país, como se não fossemos povos originários, detentores de direitos políticos específicos, que devem estar na pasta do Ministério da Justiça. A Medida Provisória comete várias outras violações, como retirar o licenciamento ambiental do Ministério do Meio Ambiente, extinguir o zoneamento ecológico econômico, reduzir a área da Amazônia – ao extinguir a Amazônia Legal, retirando dela os estados do Maranhão e Tocantins. A Medida Provisória extingue o Consea, afetando políticas públicas para a soberania alimentar. E ainda viola o direito de associação ao criar um instrumento de policiamento das organizações não governamentais. Na primeira semana, eu apresentei oito emendas à Medida Provisória visando restaurar a situação anterior. A Medida Provisória é válida por sessenta dias e ainda vai ser votada no Congresso.
Eu tenho recebido lideranças da área de saúde, relatando a intenção do governo em municipalizar a saúde indígena, pondo fim ao subsistema de saúde indígena. Nós não podemos permitir isto.
O posicionamento durante a campanha de que vivemos como animais em zoológicos e a volta da visão de sermos um empecilho ao desenvolvimento – que passa, inevitavelmente, pela exploração dos recursos naturais que existem em terras indígenas – têm novamente exposto pessoas indígenas comuns a um grau de violência inaceitável. Em Roraima, houve uma tentativa de duplo assassinato de dois jovens agentes indígenas de saúde Macuxi, um morreu e outro ficou gravemente atingido. Em São Paulo, torturaram um Pareci que perdeu um braço em razão do que sofreu. Em Pernambuco, queimaram um jovem Funi-ô vivo. Em Manaus, assassinaram um senhor Tukano na frente da família. E seguem as situações de vulnerabilidade dos índios Pataxó, Tupinambá, Guarani Kaiowá e outros.
No campo do Judiciário, nós estamos enfrentando debates e entendimentos que julgávamos superados. Amanhã, dia 19, completam 10 anos do julgamento da validade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Apesar de reconhecer que a demarcação foi feita de acordo com a Constituição, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu 19 condicionantes, algumas repetem o que já existia em previsão legal, mas outras foram criadas para a diminuir a autonomia dos povos indígenas, principalmente em relação ao uso dos recursos naturais existentes em suas terras. É o caso das previsões que tratam do direito de consulta prévia. Recentemente o Conselho de Defesa Nacional se reuniu e recomendou ao presidente da República que considere a construção da linha de transmissão de energia de Tucuruí de Manaus até Boa Vista, uma obra de cunho estratégico, visando evitar a conclusão do processo de consulta já iniciado com os Wamiri Atroari. Em reunião da bancada de parlamentares do Estado com o presidente eu ressaltei a necessidade de a consulta ser realizada. Amanhã, em Brasília, estarei reunida com representantes Waimiri Atroari para tratarmos deste direito deles.
Ainda no Congresso Nacional devemos enfrentar a reforma da previdência. Me preocupa que, para os trabalhadores rurais e para os indígenas, que a eles haja equiparação para efeitos previdenciários, que haja proposta para a contribuição mínima de 20 anos e que seja aumentada a idade para que possam se aposentar, sendo 60 anos para homens e mulheres. Isto afeta principalmente as mulheres, que podiam se aposentar mais cedo.
Bem, tem ainda a questão do armamento, das autorizações e licenciamentos de uso de agrotóxicos banidos em outros países, mas eu vou deixar um pouco do tempo para que a gente possa também conversar.
Eu fico muito feliz de estar aqui e saber que somamos forças com aliados e que enfrentaremos este momento difícil da nossa história com passos concretos rumo à igualdade no tratamento, com a participação cada vez maior dos povos indígenas na academia e agora no gabinete 231 no Congresso Nacional.
Muito obrigada!
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“‘Maioria’ é a população brasileira que deve ficar atenta a qualquer retrocesso à Constituição” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU