20 Março 2019
Eles optam por partir juntos para se servirem de escudo, para se protegerem uns aos outros, porque, muitas vezes, durante a viagem, são roubados até mesmo do pouco que têm. A alternativa é se confiar aos traficantes, os coiotes, que pedem cerca de 7 a 8 mil dólares para chegar aos Estados Unidos, às vezes até mais. Um valor que pode ser juntado em décadas de trabalho e pelo qual muitas vezes se faz uma dívida com delinquentes aos quais se deverá durante a vida inteira.
A reportagem é de Roberto Saviano(1), publlicada por La Repubblica, 18-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De 2011 a 2014, San Pedro Sula foi a cidade mais violenta do mundo, até que Caracas, em 2015, tirou-lhe o primado. As organizações criminosas há vários anos reduziram o país a um estado de guerra, sem que ele seja oficialmente listado como tal. Em 2012, Honduras foi o país com a maior taxa de homicídios per capita: 90 pessoas mortas para cada 1.000 habitantes, mas, em San Pedro Sula, chegou-se a 169 assassinatos para cada 100.000 habitantes.
Honduras é o lugar onde foram gravadas muitas edições internacionais da “Ilha dos Famosos”. Durante anos, o país foi, no imaginário ocidental, apenas um paraíso natural de praias brancas, povoado por peixes e coqueiros generosos, onde o maior incômodo é provocado pelos mosquitos. Mas a história é bem diferente.
O Fórum Econômico Mundial, no seu Relatório de Competitividade Global anual, elenca o ranking dos países onde o crime organizado tem o maior impacto sobre a sociedade: no relatório publicado no fim de 2017, Honduras estava em segundo lugar, precedido apenas por El Salvador. No relatório de 2018, El Salvador continuava liderando a classificação, enquanto Honduras caiu para o quinto lugar. Junto com El Salvador e Guatemala, Honduras forma o chamado “Triângulo do Norte da América Central”, uma das áreas não em guerra mais perigosas do planeta.
O motivo que faz dessas terras um verdadeiro inferno na terra é o fato de se encontrarem geograficamente entre aqueles que produzem cocaína – Colômbia, Peru e Bolívia – e aqueles que a vendem – México. A caravana dos migrantes segue exatamente a rota por terra da cocaína que, todos os dias, entra nos Estados Unidos, os maiores consumidores do mundo dessa droga.
Ainda em 1975, Honduras foi utilizada como escala pelo Cartel de Cali dos Rodríguez Orejuela (os rivais de Pablo Escobar). Depois da sua prisão, eles revelaram às autoridades que a cocaína partia da Colômbia de avião e aterrissava justamente em San Pedro Sula, depois partia dali novamente para Miami. Na realidade, até os anos 1980, para transportar a coca para os Estados Unidos, os cartéis colombianos usavam principalmente o mar, passando pelo Caribe e desembarcando na Flórida, mas, quando a agência antidrogas dos Estados Unidos intensificou os controles naquele trecho de mar e começou a apreender cada vez mais cargas de drogas, a rota terrestre que chegava aos Estados Unidos a partir da América Central, passando pelo México, pareceu uma alternativa válida. E essa rota se tornou cada vez mais usada quando as guerras civis em El Salvador e na Guatemala terminaram (respectivamente em 1992 e 1996).
Mas o fim desses conflitos também deu outra chance aos cartéis. Durante as guerras civis, as mães, para salvar seus filhos de se tornarem ou guerrilheiros da Frente Farabundo Martí ou soldados do Exército regular enviados ao massacre, enviaram-nos aos Estados Unidos. Abandonados no seu destino a Los Angeles, marginalizados pela sociedade, esses rapazes criaram as famosas maras, ou seja, grupos de rua formadas por jovens imigrantes centro-americanos para se defenderem das gangues afro-americanas, asiáticas e mexicanas que já enfureciam a cidade californiana. Assim nasceram grupos muito violentos, muito coesos, como a Mara Salvatrucha (MS13) ou a Mara 18.
O governo dos Estados Unidos não via a hora de se livrar desse problema e, quando acabaram as guerras civis na América Central, “vomitou” milhares de jovens novamente para as suas terras de origem, os quais haviam partido meninos e retornaram mareros. Eles viram uma oportunidade no narcotráfico, e os cartéis viram uma oportunidade neles.
Enquanto isso, Honduras, o único país da região a permanecer alheio à guerra civil, além de ser explorado como plataforma de contrabando pelas organizações criminosas, tinha sido usado pelos Estados Unidos como base para fornecer apoio aos Contras, os paramilitares que lutavam contra o governo socialista da Nicarágua: eis, portanto, que, por Honduras, passava de tudo, de drogas a armas. Em 2010, os Estados Unidos definiram Honduras pela primeira vez como um dos principais países de trânsito de drogas:
Honduras e a América Central pagaram um preço muito alto pelas políticas dos Estados Unidos, mas Trump se limita a explorar o efeito da tragédia. Típico do populismo é nunca raciocinar sobre as causas, mas fazer uma leitura superficial e oportunista dos fenômenos: eis, portanto, que o presidente fala de “invasores”, de “criminosos frios e impiedosos”, que chegariam para ocupar e depredar. Nada disso.
Hoje, na América Central, as maras são os centros de emprego mais eficientes para os jovens desempregados: de acordo com um relatório do UNODC [Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime], em 2012, em Honduras, contavam-se 12 mil membros (mas um relatório do mesmo ano da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional os estimava em 35 mil). Essas gangues controlam o território de modo capilar e protegem o narcotráfico dos grandes cartéis.
As atividades comerciais são submetidas a extorsão, as ruas das cidades se transformam em palco dos confrontos entre grupos rivais que competem pelos pontos de tráfico, na selva são traçadas pistas clandestinas para aviões carregados de coca que vão e vêm. Os meninos, cada vez mais jovens, são recrutados pelas maras como soldados do narcotráfico, e recusar-se a entrar no grupo pode ser fatal. Quem critica o sistema e tenta mudá-lo é eliminado. De 2010 a 2016, mais de 120 ativistas ambientais e pelos direitos humanos foram mortos. Desde 2001, cerca de 70 jornalistas foram assassinados, e mais de 90% desses homicídios ficaram impunes. É dessa situação que se foge, a partir de um panorama que parece não oferecer futuro algum, a não ser matar ou ser morto.
De San Pedro Sula, em Tijuana, até a fronteira com os Estados Unidos, são mais de 4 mil quilômetros, e, quilômetro após quilômetro, a caravana se engrossa, até contar com cerca de 10 mil pessoas.
Desde meados de novembro, nos arredores da fronteira, foram criados grandes campos de refugiados, com milhares de pessoas amontoadas em tendas, à espera de que seu pedido de asilo seja examinado. Diante da perspectiva de permanecer semanas, talvez meses, naquele limbo de insegurança e precariedade, alguns deles tentaram atravessar ilegalmente a fronteira, outros pediram asilo no México, outros ainda desistiram e voltaram atrás. Em meados de janeiro, centenas de migrantes ainda permaneciam na fronteira.
Na caravana, também havia mães e pais que partiram para tratar seus filhos deficientes nos Estados Unidos, como Juan Alberto Matheu, que percorreu mais de 4.000 quilômetros com sua filha Lesley, em uma cadeira de rodas depois de um derrame que ela teve aos dois anos de idade.
Durante as etapas do percurso, Juan Alberto procurava bacias para poder dar banho na menina. Depois de passar três semanas em um campo de refugiados em Tijuana, Juan finalmente conseguiu entrar nos Estados Unidos e, depois de quatro dias sob custódia, foi libertado e finalmente pôde levar a sua filha a um hospital norte-americano.
Jakelin Caal Maquin, sete anos, por sua vez, estava saudável quando partiu com seu pai, Nery Gilberto, de Raxruhá, na Guatemala, a 3.200 quilômetros dos Estados Unidos. Na noite de 6 de dezembro, ambos foram presos por uma patrulha de fronteira no Novo México depois de atravessarem ilegalmente a fronteira. Poucas horas depois, enquanto estava sob custódia dos agentes norte-americanos, Jakelin começou a ter febre alta e convulsões: morreu no dia seguinte no hospital por septicemia e desidratação.
São esses os perigosos criminosos de que Trump fala? São essas as pessoas violentas contra as quais ele autorizou os soldados a usarem a força letal se necessário? Apesar das suas numerosas declarações, não há provas da presença de criminosos ou de narcotraficantes junto com a caravana. Os jornalistas que a acompanharam sempre testemunharam a presença de pessoas comuns, desesperadas, que não são criminosas, mas que, ao contrário, fogem dos criminosos. Fazer passar essas pessoas por perigosas, chegar a dizer que a caravana teria sido infiltrada por “desconhecidos do Oriente Médio”, no entanto, é útil para Trump, porque, dessa forma, ele poderá utilizar algum procedimento de emergência para impedi-los de entrar ou de permanecer nos Estados Unidos. Mas, acima de tudo, alimenta aquele clima de terror e de desconfiança em relação ao outro sobre o qual Trump construiu sua campanha e obteve sucessos eleitorais.
Se ele convencer os norte-americanos de que existe uma emergência na fronteira sul, também será mais fácil convencê-los de que é necessário um muro com o México. Não conseguir esse muro, que foi o mantra da sua campanha presidencial, significaria desapontar o seu eleitorado e se mostrar fraco, significaria fazer com que os democratas ganhem, e não só sobre esse ponto: sobre o muro, Trump está jogando a sua reeleição. Por isso, assim que soube da partida de uma nova caravana de Honduras, aproveitou-se dela no dia 15 de janeiro para tuitar que as políticas implementadas pelos democratas não bastarão para deter os migrantes e que só o muro funcionará.
Porém, apesar da política de fechamento implementada pelo governo dos Estados Unidos nos últimos meses, apesar dos tuítes ameaçadores de Trump, apesar das centenas de centro-americanos ainda parados no México à espera de encontrar asilo, apesar das prisões para quem ultrapassou ilegalmente a fronteira e apesar das repatriações de milhares de pessoas, o fato é que uma nova caravana de desesperados já partiu. Eles começaram a viagem mesmo sabendo que, após semanas de caminhada, entrar nos Estados Unidos não será um epílogo evidente. A política de Trump não pode fazer nada para impedir a sua fuga pela vida.
Roberto Saviano é autor do Gomorra, que documenta a atuação das máfias italianas e sua relação com as instituições do país. A obra se tornou um bestseller em todo o mundo. Saviano vive sob escolta permanente de cinco policiais, desde 13 de outubro de 2006. Ele muda constantemente de endereço, e não frequenta lugares públicos, em virtude de ameaças de morte feitas por mafiosos. Saviano deve consultar cada encontro, cada viagem com as autoridades de segurança e o ministério do interior do país. Hotéis e restaurantes, assim que ele aparecer, são evacuados e procurado por bombas. Em outubro de 2008, revelou-se que a Camorra tinha um plano para assassinar Saviano no natal daquele ano.
Saviano está no Brasil, neste momento, lançando a tradução brasileira do seu livro Meninos de Nápoles. O jornal O Globo, 17-03-2019, publica uma entrevista com o autor italiano em que perguntado "o que leva garotos de 10 a 19 anos a ingressar no tráfico?" ele responde:
"A vontade de ser como os outros. Poder comprar um par de sapatos, uma jaqueta de grife, poder reservar uma mesa na discoteca da moda onde só se entra se tiver dinheiro. A miséria e a consciência da impossibilidade de mudar sua condição pessoal levam a escolhas radicais".
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A caravana dos últimos em fuga de Honduras e o inferno dos narcotraficantes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU