18 Dezembro 2018
Há um bloco de projetos de exploração mineral que pretendem se instalar na metade sul do Rio Grande do Sul para explorar fosfato, chumbo, zinco, cobre, titânio e, talvez, ouro e prata também. As empresas responsáveis pelos mesmos garantem que os mesmos impulsionarão a economia da região, gerando emprego e renda, sem destruir o meio ambiente. As comunidades atingidas por esses empreendimentos, porém, olham com desconfiança para os mesmos, não só pelos riscos de contaminação ambiental como também pela ameaça de perder as terras onde vivem hoje e o seu modo de vida. “O que se anuncia aqui é um novo Carajás. Há um bloco de projetos de exploração mineral que pretendem se instalar nesta região, alterando de forma radical toda a identidade cultural, social e econômica destas comunidades”, diz Márcio Zonta, integrante da coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 17-12-2018.
Márcio Zonta | Foto: Adufpel/Divulgação
Zonta participou do I Encontro sobre Impactos da Mineração nos Pescadores Artesanais e do II Seminário Regional sobre os Impactos dos Projetos de Mineração, realizados de 13 a 15 dezembro em Rio Grande e em São José do Norte. Em entrevista ao Sul21, ele falou sobre os impactos ambientais e sociais desses projetos e alertou para a urgência que paira sobre a cabeça das comunidades que poderão ser atingidos por esses empreendimentos:
“O projeto que está vindo para essa região é um bloco, devendo atingir, por baixo, mais de 20 municípios, afetando toda a biodiversidade da região. Caso esse projeto seja implantado, teremos uma profunda regressão social do código civilizatório que norteia a vida dessas comunidades. Um pescador não se reinventa na cidade. Ele vai passar a ser um trabalhador precarizado que não se reconhece como sujeito que está acoplado a uma identidade cultural. Ele também não terá mais um território como forma de sustentação, seja por meio da pesca ou da agricultura como acontece em São José do Norte”.
A indústria mineradora, que já vinha expandindo suas atividades no país, nos últimos anos, alimenta grandes ambições com as promessas de desregulamentação de normas e leis ambientais anunciadas pelo governo Bolsonaro. Qual sua avaliação sobre o que vem por aí a partir do próximo dia 1o. de janeiro?
A vitória de Bolsonaro está estreitamente relacionada com esse tema da exploração dos recursos minerais. Pelas relações que Bolsonaro tem feito sobre mineração, terras indígenas, quilombolas e meio ambiente de modo geral, há uma tentativa de abrir uma era plena da mineração, em que podemos chegar a um patamar marcado pelo vale tudo. Será possível minerar em terras indígenas, terras quilombolas e em áreas de preservação ambiental. Ele promoverá um leque de mudanças e de aniquilação de legislações, tanto da legislação sobre a atividade mineradora que já existe quanto da legislação ambiental. Já se discute mineração em terras quilombolas e indígenas, como mencionei, mas também se discute a mineração em áreas de fronteira. Nós temos 27% do território brasileiro como áreas de fronteira.
Qual é o tamanho das áreas de fronteira?
É uma faixa de 150 quilômetros a partir das fronteiras do Brasil. Essa lei é de 1979, ainda no período militar portanto, e estabelece que a exploração de recursos minerais nestas áreas só pode ser exercida por empresas brasileiras, mediante autorização prévia do Conselho de Defesa Nacional. Essas áreas foram pensadas como um espaço de resguardo da soberania nacional. Agora, elas podem ser abertas também para a exploração do capital internacional. Bolsonaro deu uma entrevista ao Valor Econômico, onde ele diz que se encontrou com representantes do setor minerador brasileiro e internacional. Nesta conversa, as empresas teriam pedido 30 mil lotes de mineração que estão em poder do governo. Prontamente, ele atendeu o pedido e disse que iria mandar 20 mil dessas áreas à leilão.
Além disso, com a vitória de Bolsonaro há uma guinada nas relações do Brasil com os Estados Unidos que deve ser marcada por uma postura muito entreguista. Na mesma matéria do Valor Econômico, Bolsonaro disse que os Estados Unidos reclamaram da burocracia da legislação ambiental brasileira e da insegurança jurídica para “apostar no Brasil”. Em resposta a isso, ele disse que vai criar uma câmara direta de negociação, algo pior que um tratado de livre comércio. Se isso ocorrer, o que achávamos ruim na atual legislação ambiental se tornará ainda pior. Poderemos chegar à situação do México onde, em uma semana, pode-se obter uma licença ambiental para minerar. Teremos assim um avanço muito rápido do capital mineral sobre várias áreas do Brasil.
Isso tende a aumentar a conflitividade nos territórios que hoje são protegidos e passarão a ser cobiçados pelas empresas mineradoras…
Sim, deve aumentar muito. Se considerarmos que vamos ter 20 mil novas áreas de mineração, devemos ter em mente que estamos falando de um processo de lavra e também de um processo de escoamento da produção. Você não escoa a produção de minério por avião. É preciso um sistema logístico que é feito ou por meio de caminhões, ou por esteiras ou por trem até chegar ao porto de onde é transportado para seu destino final, geralmente um destino internacional. Com a soma das áreas da lavra e desse sistema logístico teremos uma gama de atingidos pela mineração que pode duplicar ou até triplicar. Há uma estimativa que, hoje, temos cerca de 5 milhões de pessoas atingidas pela mineração no Brasil. Poderemos chegar rapidamente a mais de 15 milhões de pessoas atingidas. Teríamos assim uma parcela considerável da população brasileira em conflito com a mineração.
Essas populações vão reagir, o que pode trazer outra problemática, porque o braço repressor pensado por esse novo governo tende a atacar a luta por direitos sociais com violência policial e estado de exceção jurídico. Então, creio que há uma perspectiva de muito conflito pela frente.
Com 47 mil quilômetros quadrados, entre o Pará e o Amapá, a Renca tem potencial para exploração de ouro e é cobiçada pelas mineradoras (Foto: Clube da Mineração/Reprodução)
Em sua fala no seminário sobre os impactos da mineração, você falou sobre uma nova guerra do ouro que estaria em curso, capitaneada por Estados Unidos e China. Quais são os principais interesses geopolíticos envolvidos neste movimento de expansão da mineração, especialmente na America Latina e na África?
Essa ofensiva vem ocorrendo desde 2006 pelo menos e, em 2010, ela teve um ápice. No contexto de crise do capitalismo internacional, as grandes corporações, principalmente chinesas e americanas, foram brigar por recursos naturais de outros países, em especial na África e na América Latina. Como os Estados Unidos controlam a emissão do dólar, os chineses passaram a apostar no ouro como moeda de acumulação internacional capaz de fazer frente ao dólar. Na America Latina hoje, quase metade dos pedidos de lavra e de pesquisa estão associados à exploração de ouro. A corrida pelo ouro no mundo voltou a ter uma relevância extremamente importante. No Brasil, os caso mais emblemáticos são os de Belo Sun, no Xingu, Paracatu, em Minas Gerais e, agora, a possibilidade de exploração na Renca, reserva na Amazônia que teria uma grande quantidade de ouro.
Além disso, nós temos uma revolução tecnológica em curso, que demanda minerais como o nióbio e as terras raras. China e Estados Unidos também saíram pelo mundo atrás desses minerais. Esses dois países disputam hoje áreas no Brasil, especialmente em Goiás, onde essa disputa é muito acirrada. Isso torna o nosso território cada vez mais vulnerável à possibilidade de uma grande empresas chegar e se instalar. Esse processo de instalação costuma ser extremamente violento. As mineradoras se utilizam de estratégias militares, trabalhando com uma mapa de dominação e de controle social das regiões. Fazem pesquisas de caráter psicológico, sociológico e econômico, procurando identificar as lideranças que já existem e iniciando um processo de cooptação das simbologias locais, comprando grandes festividades populares, ou de entrada nos currículos escolares e das universidades. Também começam a fazer um cerceamento dos espaços próximos à região da mineração. Pescadores passam a ser impedidos de pescar em determinadas áreas, por exemplo, gerando conflitos crescentes.
Pelo que estamos vendo do futuro governo Bolsonaro, creio que poderemos ter também, infelizmente, casos de aniquilação física, de assassinatos. Só neste período de transição para o novo governo, já tivemos quatro assassinatos por motivações políticas associadas ao discurso de Bolsonaro: o Mestre Moa, em Salvador, o rapaz que foi assassinado em um comício do PT no Ceará, e os dois sem terra mortos recentemente na Paraíba. Acredito que as mineradoras aproveitarão esta onda da vitória de Bolsonaro para aumentar ainda mais o seu nível de repressão contra as comunidades que resistirem aos seus projetos.
Por outro lado, estamos vendo que a população das comunidades atingidas tem assumido formas de organização de maneira criativa e um pouco mais sofisticada para resistir a esses processos das mineradoras. Não é a primeira vez que enfrentaremos esse boom da mineração. Em 2010, 2011, as coisas já estavam bem acirradas.
Qual a estratégia de ação que o MAM pretende adotar neste cenário? A tendência é que o movimento torne-se cada vez mais conhecido nacionalmente, considerando o aumento dos conflitos nesta área pelo país afora.
O MAM é um movimento que nasceu na Amazônia brasileira em meio às contradições do capital mineral da Vale, no projeto Carajás, que atingiu uma série de comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e camponeses. A população dessa região começou a caminhar para o conflito de maneira organizada. As populações ao redor da mina de Carajás passaram a bloquear a passagem do trem como uma forma de protesto, por exemplo. Foram criando pedagogias de luta popular contra a mineração. O bloqueio do trem é uma delas. Por meio dessa forma de protesto, você não para a produção, mas interrompe a circulação do capital da empresa. Se esse bloqueio se estender no tempo, acaba interrompendo a produção também, pois não há onde estocar. Tivemos vários casos deste tipo na Amazônia.
Quando começamos a organizar nosso movimento, percebemos que se ele tivesse um caráter regional, nasceria já morto porque a mineradora é um ente global que sequestrou os estados nacionais. Ela tem um poder que vem de fora para dentro que é gigantesco. Decidimos então ser um movimento nacional e nacionalizar as lutas nesta área, adotando o tripé básico dos movimentos sociais: organicidade, mobilização e formação contínua. Fizemos um exercício de sair pelo Brasil para incidir sobre diferentes conflitos minerários. Alem disso, também decidimos valorizar a relação internacional, pois o bloco minerador que ataca o Brasil hoje é o mesmo bloco que ataca a América Latina. Fizemos vários intercâmbios internacionais e chegamos a conclusão de que estávamos sendo atacados em bloco, o que exigiria que a nossa resistência também estivesse articulada internacionalmente.
Somos um movimento super recente. Estamos fazendo esse exercício de nacionalização de 2012 pra cá. Agora, pretendemos ingressar em um período de massificação. Nós podemos empreender lutas nacionais em vários sentidos, seja em torno da questão do Nióbio em Goiás, ou da questão do ouro em Minas Gerais, no Centro Oeste e na Amazônia. A pedagogia de saque e de violência do processo de mineração tem 500 anos de idade. Ela pode ter sofrido alterações, ter aperfeiçoado suas táticas, mas a essência permanece.
Projeto Retiro pretende extrair titânio e outros minerais em uma faixa de terra entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico (Foto: Divulgação/ Sul21)
Como avalia a situação dos projetos de mineração aqui no Rio Grande do Sul e a capacidade das comunidades atingidas resistir à implantação dos mesmos?
Pela reflexão que fizemos no primeiro dia do seminário aqui em Rio Grande, estamos entendendo que aqui se anuncia um novo Carajás. Há um bloco de projetos de exploração mineral que pretendem se instalar aqui nesta região, alterando de forma radical toda a identidade cultural, social e econômica destas comunidades. Esse grande pólo minerador pretende explorar fosfato, chumbo, titânio e, talvez, ouro e prata também.
É muito comum na estratégia das mineradoras ir trabalhando de comunidade em comunidade. Elas não anunciam o grande bloco minerador que está sendo pensado e articulado. Vão de comunidade em comunidade, fragmentando os processos de negociação. Infelizmente, as comunidades tendem a sucumbir a essa lógica. Na minha fala aqui em Rio Grande eu disse que estava vendo várias bandeiras de várias reivindicações, por localidades, que sofrerão o mesmo processo e o mesmo impacto. Essas organizações e grupos de reivindicação que vão surgindo precisam se unir e formar um grande bloco de resistência, buscando o apoio das diversas manifestações religiosas e culturais que existem nesta região do extremo sul.
O problema é que não podemos esperar muito para fazer isso. Às vezes a gente acha que determinado projeto está parado, que a concessão da licença ainda vai demorar cinco anos, quando ela já pode estar acordada e eles estão esperando apenas o melhor momento para vir e instalar o projeto. Por isso, as comunidades precisam ter um ritmo um pouco mais acelerado de organização, definindo uma pauta mínima que unifique todos os grupos que estão dispostos a travar essa luta. O projeto que está vindo para essa região é um bloco, devendo atingir, por baixo, mais de 20 municípios, afetando toda a biodiversidade da região, a Lagoa dos Patos e o próprio oceano.
Caso esse projeto seja implantado, teremos uma profunda regressão social do código civilizatório que norteia a vida dessas comunidades. Um pescador não se reinventa na cidade. Ele vai passar a ser um trabalhador precarizado que não se reconhece como sujeito que está acoplado a uma identidade cultural. Ele também não terá mais um território como forma de sustentação, seja por meio da pesca ou da agricultura como acontece em São José do Norte. Veremos em São José do Norte o que já existe em Rio Grande: um processo de favelização e proletarização do pescador. Ele vai se engalfinhar pelos serviços que forem oferecidos, já sob o regime da Reforma Trabalhista, ou seja, com a relação de trabalho totalmente precarizada. Ou então ele vai se favelizar, como já acontece em Rio Grande, sobretudo depois que o pólo naval ficou praticamente paralisado.
O estágio seguinte é o da degradação social. Se você tem uma juventude que não tem perspectiva nem de estudo nem de trabalho, ela vai se perder das mais diversas formas, entre elas via o crack, uma droga de controle social que deixa de fora uma parte da população que não vai entrar no mercado de trabalho. Caso esse bloco minerador se instale na região, cidades como Rio Grande, São José do Norte, Caçapava do Sul e Bagé estão ameaçadas de sofrer um processo de degradação cultural, ambiental, econômica e social de difícil reversão no curto prazo.
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“É preciso criar rápido bloco de resistência no RS. O que se anuncia aqui é um novo Carajás” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU