30 Novembro 2018
"Multidões cansadas e abatidas: gente sem raiz, sem pátria e sem destino, com o futuro incerto e inseguro. Multidões que erram pelas estradas do êxodo, do deserto, do exílio e da diáspora. Não como o Povo de Israel no Antigo Testamento, que ao menos nutria-se na travessia com o sonho da Terra Prometida; tampouco como as primeiras comunidades cristãs, que no caminho podiam-se alimentar com a utopia do Reino de Deus, anunciado pelo Mestre. Não, nada disso!", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais.
Lê-se no Evangelho de Mateus que “Jesus percorria todas as cidades e aldeias, ensinando nas sinagogas, proclamando a Boa Nova do Reino e curando toda sorte de enfermidade e doença” (Mt 9, 35-38). Do ponto de vista da Pastoral da Mobilidade Humana, uma profunda reflexão, meditação e oração sobre o verbo “percorrer” daria farto material de inspiração para um inteiro retiro. Ao invés de esperar que as pessoas viessem a Ele, na sinagoga ou no templo, o Mestre se colocava a caminho. Era ali que se dispunha a encontrar os doentes e indefesos, os pobres e marginalizados, os pecadores e excluídos. Seu ministério público desenvolve uma determinada pedagogia que consiste, justamente, em provocar encontros abertos a todos e sempre dialógicos. Pelas estradas, multiplicam-se tais encontros. E destes emerge uma nova prática, a qual pode ser descrita como “evangelização de mão dupla”.
A expressão indica que, nesse vaivém pelas estradas da Galileia e da Judeia, ao mesmo tempo que oferece o anúncio da Boa Nova do Reino de Deus, Jesus também se deixa evangelizar, no sentido de que é capaz de parar e escutar as pessoas pelo caminho, como também nos longos momentos de intimidade com o Pai no deserto, na montanha ou em um lugar à parte. É o que se transparece, por exemplo, do episódio em que o Nazareno se depara com uma estrangeira, cananeia, e esta grita pela cura da filha enferma. A narração encontra-se nos evangelistas Marcos e Mateus. Este último escreve que ao ouvir o Mestre dizer que vinha “somente para as ovelhas perdidas da casa de Israel”, e que por isso “não era bom pegar o pão dos filhos e jogá-lo aos cachorrinhos”, a mulher respondeu: “Mas também os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus senhores”. E Jesus, surpreendido com a fé daquela mulher simples, acabou por responder positivamente ao seu pedido (Mt 15, 21-28). De resto, numerosas são as vezes que Jesus se mostra como que estupefato diante da fé popular, e de modo particular dos estrangeiros. Disso resulta uma resposta que, nos Evangelhos, aparece como um verdadeiro refrão. Tua fé te salvou, vai em paz!
Retomando a primeira citação, onde o evangelista faz uma espécie de resumo das atividades do Nazareno, Mateus prossegue: “Vendo as multidões, Jesus teve compaixão, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor”. De início, cabe uma pergunta: quem seriam hoje em dia essas “multidões cansadas e abatidas” que despertam a compaixão divina? De forma quase de todo natural tropeçamos novamente com a questão migratória. E nossos olhos, igualmente compassivos mas impotentes, se voltam para as centenas de milhares de refugiados rohingyas no Bangledesh, cujas crianças estão morrendo de subnutrição. Ou para os milhões de sirianos acolhidos precariamente nos campos de refugiados da Turquia, e espalhados por todo mundo. E também para as dezenas de milhares de prófugos provenientes da África, Ásia e Oriente Médio que, escapando da pobreza e da violência, atravessam terras e mares para tentar melhor sorte no velho continente europeu. Ou ainda para a caravana de migrantes hondurenhos, salvadorenhos e gualtemaltecos, os quais, após milhares de quilômetros percorridos, batem desesperadamente às portas dos Estados Unidos onde pensam retomar uma nova vida.
Multidões cansadas e abatidas: gente sem raiz, sem pátria e sem destino, com o futuro incerto e inseguro. Multidões que erram pelas estradas do êxodo, do deserto, do exílio e da diáspora. Não como o Povo de Israel no Antigo Testamento, que ao menos nutria-se na travessia com o sonho da Terra Prometida; tampouco como as primeiras comunidades cristãs, que no caminho podiam-se alimentar com a utopia do Reino de Deus, anunciado pelo Mestre. Não, nada disso! Certo que não falta a esperança, não falta o sonho, não falta a utopia. Sequer falta a compaixão, mas esta raramente é seguida de uma ação eficaz ou de uma acolhida solidária. A esperança, o sonho e a utopia debilitam-se como imagens fragmentadas, despedaçadas, diante de tanta fome, tensões e conflitos; diante de tantas adversidades, tantas portas fechadas, tantas fronteiras reforçadas; diante de tantas leis rígidas e cada vez mais restritivas e de tantas políticas governativas opressivas e nacionalistas. Nacionalismo que absolutiza os “nossos” ou os “de dentro”, em detrimento dos “outros” ou “os de fora”. Tudo e todos, com a máscara da indiferença, da intolerância e da xenofobia, parecem entricheirados contra o direito de migrar. Até que a força e a teimosia dos caminhantes, somados à energia da marcha, consigam abrir espaço para uma cidadania inclusiva, plural e universal.
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Multidões cansadas e abatidas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU