13 Outubro 2018
"Oscar Romero e Paulo VI compartilharam um martírio que construiu a ponte que sustenta uma única trajetória, inspirada pelo Espírito Santo, que renovará a Igreja e revelará novamente o mistério de Jesus como o motor da história", afirma o editorial de National Catholic Reporter, 12-10-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
(Foto: Montagem feita por Julie Lonneman /NCR)
O significado da canonização do arcebispo Oscar Romero não pode ser subestimado, assim como não pode ser subestimada a ponte que o Papa Francisco precisa para levar uma Igreja universal presa ao passado em direção a um futuro que irá purificá-la e alinhá-la com os pobres do mundo. E a canonização conjunta de Romero e do Papa Paulo VI não é um engano ou uma jogada de relações públicas para equilibrar um radical com um tradicionalista. Notavelmente, esses dois santos compartilharam um martírio que construiu a ponte que sustenta uma única trajetória, inspirada pelo Espírito Santo, que renovará a Igreja e revelará novamente o mistério de Jesus como o motor da história. É uma história emocionante, e algumas figuras-chave contribuíram para que acontecesse.
Quando Romero foi assassinado em 1980, o padre jesuíta americano James Brockman viu a necessidade urgente de uma biografia precisa do arcebispo morto de El Salvador. Brockman, ex-editor da revista America, sabia que Romero tinha sido foco de intensa controvérsia durante seu breve tempo como arcebispo. Ele também sabia que, apesar da aclamação quase unânime em toda a América Latina de que Romero fosse santo, os revisionistas já estavam trabalhando para conter seu impacto. Seus críticos argumentaram que esse bispo conservador piedoso havia sido enganado por radicais de esquerda durante uma perigosa tendência ao marxismo que varreu a América Latina. Seu assassinato foi o resultado trágico, mas previsível de sua intromissão na política e a abdicação de seu papel espiritual primeiro enquanto bispo.
Em 1982, para combater essas mentiras, Brockman publicou a primeira versão de uma biografia definitiva documentando os três anos de Romero como arcebispo. Ele foi auxiliado pela meticulosa trilha de papeis do próprio Romero preservando todas as declarações oficiais, homilias, cartas pastorais, as atas de cada reunião que ele participou, e sua correspondência com funcionários do governo, com seus colegas bispos e com o Vaticano.
Atualizado em 1989, o livro foi complementado por diários pessoais em que Romero se mostrou angustiado com a crescente violência em El Salvador por forças de segurança estatais, esquadrões da morte e grupos de oposição que tiraram centenas de vidas inocentes pouco antes da brutal guerra civil do país que durou 12 anos (1980-92).
Romero sofreu constante difamação na mídia e subversão por quatro dos bispos do país alinhados com o governo e com as elites ricas salvadorenhas. O núncio papal enviou um fluxo constante de relatórios negativos a seus superiores em Roma, acusando Romero de promover a chamada “teologia da libertação” e apoiar a revolução violenta.
Romero defendeu sua liderança pastoral citando o Concílio Vaticano II e a aplicação de seus princípios à realidade vivida na América Latina por seus bispos, que se encontraram com o Papa Paulo VI em Medellín, Colômbia, em 1968, onde proclamaram a “opção de Deus pelos pobres” e desafiaram as arraigadas injustiças estruturais que estavam causando pobreza e violência generalizadas na região.
Romero encontrou apoio adicional na exortação de Paulo VI sobre a evangelização, Evangelii Nuntiandi, de 1975, que afirmava enfaticamente que a libertação da opressão era parte integrante da missão da Igreja. Apesar das ameaças de morte, da pressão de Roma e do fluxo de armas dos Estados Unidos para apoiar as forças armadas contra uma insurgência comunista, Romero permaneceu um fiel pastor de seu rebanho até a sua morte em 24 de março de 1980, enquanto celebrava a missa em uma capela de hospital em San Salvador.
Nove anos depois, seis membros do corpo docente da Universidade Centro-Americana de San Salvador, sua governanta e a filha dela foram assassinados por soldados de elite salvadorenhos treinados nos EUA. Um alvo central dos assassinos era o padre jesuíta Ignacio Ellacuría, um brilhante defensor do martirizado Romero como um bom pastor de sua Igreja, mesmo à custa de sua própria vida.
Estava ausente do campus durante as execuções, por acaso, o padre jesuíta Jon Sobrino, que assumiu a tarefa de estender a lógica do testemunho de Romero e Ellacuría a uma Igreja profundamente relutante em reconhecer o momento decisivo (kairós) revelado por esses mártires.
Outra testemunha crucial chegou a San Salvador em 1990, depois dos assassinatos no campus. O padre jesuíta americano Dean Brackley permaneceu no corpo docente da Universidade Centro-Americana pelo resto de sua vida, recebendo milhares de peregrinos e universitários norte-americanos, ousando lembrá-los da responsabilidade dos EUA por grande parte da violência na América Central, bem como pelo surto desesperado de refugiados fugindo para o norte.
Antes de morrer de câncer no pâncreas em 2010, Brackley, em entrevista ao NCR, avaliou profeticamente a importância da então engavetada canonização de Romero:
É preciso suspeitar que, se Romero não fosse um bispo, poderia ter um caminho mais fácil para a canonização, porque nem todos na hierarquia católica se sentem à vontade para apresentá-lo como um bispo a ser imitado.
Romero modelou a “Igreja dos pobres” que João XXIII pediu no início do Concílio Vaticano II. As conferências de Medellín e Puebla detalharam qual a forma que essa Igreja deveria ter na América Latina. Romero seguiu esse exemplo.
A mensagem, no entanto, é universalmente válida: a Igreja só será portadora de esperança credível para a humanidade se estiver com os pobres, com todos os que são vítimas do pecado, da injustiça e da violência. Se andarmos com eles, como fez Romero, incorporaremos as boas novas pelas quais o mundo tanto anseia. Não precisamos de uma Igreja que nos convide a nos esconder dos horrores da atualidade, a escapar dos problemas deste mundo, mas a suportar seus fardos.
Foi isso que Romero fez, inspirando inúmeros outros a colaborar com ele. Isso irá atrair a perseguição e incompreensão, mas essa é uma marca da verdadeira Igreja. Romero não procurou o que era melhor para a instituição como tal, mas o que era melhor para o povo. A longo prazo, isso é o que é melhor para a Igreja também. A instituição que se esforça para salvar a si mesma se perderá. Se ela se perder em serviço amoroso, se salvará.
Como os 75.000 mártires da guerra civil em El Salvador, Brockman, Ellacuría e Brackley não viveram para ver nosso Papa latino-americano. Mas nas primeiras horas após sua eleição, Francisco invocou o sonho do Papa João XXIII de uma “Igreja dos pobres”, dizendo que gostaria de “uma Igreja que seja pobre e que seja para os pobres”. Agora é sua vez de sonhar com tal Igreja, pastoreada por bispos que cheiram como suas ovelhas, pastores servos e paróquias vibrantes cheias de discípulos que compartilham “as alegrias e as esperanças, as aflições e as ansiedades” do mundo moderno, especialmente jovens ansiosos para viver uma vida autêntica.
Mas tudo isso seria apenas uma ideia se Romero não a tivesse vivido e se um cauteloso Paulo VI não tivesse sofrido seu próprio martírio de difamação, tanto de progressistas como de tradicionalistas, por insistir que a unidade da Igreja era mais importante do que os vencedores e os perdedores depois do Concílio.
A canonização mantém vivos os heróis da fé que nos confrontam com o que o teólogo Johann Baptist Metz chamou de “memória perigosa” do Cristo crucificado e ressuscitado, que interrompe a história em todas as gerações para convocar discípulos para ouvir a Palavra de Deus e para mantê-la viva. Santo Oscar Romero e São Paulo VI fizeram isso em seu tempo e seu testemunho nos convida a segui-los.
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Oscar Romero e Paulo VI. Santos ousados para tempos de desespero. Editorial de National Catholic Reporter - Instituto Humanitas Unisinos - IHU