09 Outubro 2018
Um manual para enfrentar as próximas três semanas e transformar luto em verbo.
O artigo é de Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, publicada por El País, 09-10-2018.
Cubro eleições como jornalista desde que elas voltaram a existir no Brasil. Minha estreia como repórter, junto com o Brasil que recém havia emergido do longo e tenebroso inverno da ditadura, foi em 1988, nas eleições para prefeito. A primeira eleição presidencial foi em 1989. Fernando Collor de Mello, segundo a capa da revista Veja, “o caçador de marajás”, foi eleito. O filho do coronelismo de Alagoas proclamava que Lula, o filho do sertão nordestino, tinha um aparelho de som maior que o dele em casa. As pessoas acreditavam que Lula era mais rico que Collor, porque muita gente gosta mesmo é de acreditar, em qualquer coisa que lhe convém. Na época, Edir Macedo, o poderoso dono da Igreja Universal do Reino de Deus, já se chamava de bispo e era o feliz proprietário de um império religioso. Mas bem mais modesto do que hoje, quando seu império tornou-se religioso-político-midiático. Naquela época Edir já conversava diretamente com o Estado Maior do Céu e anunciou aos fiéis que o próprio Espírito Santo havia lhe informado que Collor era o cara. Ou Edir foi enganado pelo Espírito Santo, os mais estudados em temas bíblicos podem nos dizer se isso é possível, ou ele ouviu sussurros mais terrenos e se confundiu. Ou então ele simplesmente mentiu. Entre a possibilidade de o Espírito Santo ter mentido ou Edir Macedo ter mentido usando o nome do Espírito Santo, me parece mais prudente apostar na idoneidade do Espírito Santo. Mas as pessoas evangélicas, as realmente evangélicas, que me digam se meu pensamento tem lógica ou não. Nesta eleição, Edir declarou que Jair Bolsonaro (PSL) é o cara. É acompanhado na preferência por outros coronéis da religião, como Silas Malafaia, que me chamou de “vagabunda” em 2011, em entrevista ao The New York Times. Um exemplo do tratamento destinado às mulheres por esses homens que dizem falar em nome de Deus enquanto contam o dinheiro suado dos fiéis. E uma perfeita identificação com seu candidato a presidente, que afirmou não estuprar uma deputada porque ela não mereceria por ser “muito feia”, assim como afirmou que as mulheres são produto de uma “fraquejada” do macho no ato sexual.
Me dou a licença deste primeiro parágrafo porque completo, neste primeiro turno de 2018, 30 anos cobrindo eleições. Acompanhei todas as campanhas eleitorais da redemocratização do Brasil, do que se convencionou chamar de Nova República. E nunca, em 30 anos, vi o que vi nesta eleição de 2018.
Vi as pessoas adoecendo, estranguladas por uma espécie de pânico paralisante. Vi amigos combativos, acostumados à dureza da luta, prostrados pelo sentimento de impotência diante da possibilidade de um homem como Jair Bolsonaro, um homem que diz o que ele é capaz de dizer, vencer. Vi pessoas chorando dia após dia. Recebi centenas de mensagens no WhatsApp com as mesmas quatro frases, a maioria delas vindas de mulheres.
“Estou em pânico.”
“Estou assustada.”
“Estou com medo.”
“Estou apavorada.”
1) Na eleição determinada pelo fenômeno da autoverdade, a melancolia adoece o corpo
Jair Bolsonaro, aquele que é chamado de “coiso” nas redes sociais, ganhou esta eleição mesmo antes da votação no primeiro turno. O Brasil está mergulhado numa crise ampla, complexa, que é muito mais do que uma crise econômica e política. É uma crise também de identidade e de palavra, como tantas vezes já escrevi aqui nos últimos anos. A pobreza está aumentando, a mortalidade infantil voltou a crescer, doenças que estavam erradicadas são novamente ameaças, por falta de cobertura vacinal eficiente. A malária retornou com toda a força na região amazônica. E a febre amarela ressurgiu no Sudeste do país. A violência no campo aumentou, e a Amazônia e o Cerrado estão ainda mais ameaçados pelo desmatamento. O Brasil tem ainda 13 milhões de desempregados e um número crescente de pessoas que parou de procurar uma vaga porque sequer tem esperança de voltar a ter trabalho.
Jair Bolsonaro venceu mesmo antes deste domingo, 7 de outubro, porque, num cenário tão grave, sua candidatura conseguiu impedir qualquer debate sério. Sua candidatura interditou a discussão das ideias, a criação de um projeto para o Brasil. A campanha eleitoral ficou reduzida a uma batalha de memes e a ameaças “bíblicas” pelo WhatsApp, onde cheguei a receber uma mensagem que dizia o seguinte: “Já está encomendado daqui de Novo Hamburgo-RS, 100 touros para serem sacrificados para Satanás em favor do babuê Luiz Inácio Lula da Silva, bruxo, pela perturbação das eleições, e para favorecê-lo. Crianças também serão sacrificadas no altar de Belzebu”. E as pessoas do grupo de evangélicos, ligado à Assembleia de Deus, pareciam acreditar seriamente nisso. Várias pessoas deste grupo têm dificuldades para escrever, mas o português deste post era corretíssimo. Em áudios e vídeos amplamente disseminados pelo WhatsApp, líderes religiosos desenhavam o apocalipse caso Bolsonaro fosse derrotado —ou caso o PT vencesse. Sem serem incomodados pelas instituições que têm a obrigação de preservar a lisura das eleições.
Jair Bolsonaro venceu porque em vez de usarmos o momento da campanha para debatermos projetos, o tempo foi gasto em explicar o autoexplicável: explicar por que razão não é aceitável votar num candidato que diz que negros de quilombos não servem nem para a procriação, que é melhor ter um filho morto num acidente de trânsito do que namorando “um bigodudo” (certamente ele nunca perdeu um filho para dizer algo assim), que seus filhos jamais vão namorar uma negra porque “são muito bem educados”, que as mulheres têm que ganhar menos porque engravidam, que é a favor da tortura e que a ditadura civil-militar deveria ter matado pelo menos uns 30 mil e que se morrerem inocentes tudo bem (desde, claro, que não sejam da sua família). Alguém que é vítima de um ataque à faca e, em vez de convocar o país para a paz, como cabe a um líder responsável em momentos de gravidade, faz sinal de atirar da cama de hospital como se tivesse cinco anos de idade. Alguém que diz uma coisa e depois disse que não disse o que está gravado em áudio e vídeo que disse. Alguém que os apoiadores têm que começar o discurso dizendo: “Ele não é o mais inteligente... nem o mais preparado, mas...”.
Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ser o mais votado no primeiro turno porque, mesmo defendendo a barbárie, foi o escolhido de quase 50 milhões de brasileiros. E, quando é preciso explicar por que não é possível escolher um candidato que faça essas declarações e acredite nelas, esta batalha já está perdida. Explicar que uma mulher não nasce de uma fraquejada de um homem nem deve ganhar menos porque engravida? Explicar que não é melhor ter um filho morto em acidente do que gay? Explicar que não é possível falar que um negro nem para procriar serve? Explicar que não é possível matar e torturar? Não faz sentido ter que explicar isso. Nenhum sentido.
Por não fazer nenhum sentido, também não faz nenhuma diferença explicar. Vivemos o que tenho definido como “autoverdade”: o conteúdo não importa, importa o ato de dizer. Assim, checar os fatos também não importa, porque os fatos não importam. O ato de dizer é confundido com “autenticidade”, com “sinceridade”, com “verdade”. Não importa o que seja dito. A estética foi colocada no lugar da ética. A “verdade” tornou-se uma escolha pessoal. É o indivíduo levado à radicalidade. Se, nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump foi marcada pela pós-verdade, a eleição do Brasil, liderada por Jair Bolsonaro, é a eleição da autoverdade. E, tanto quanto a pós-verdade, ela ecoa a lógica das redes sociais na internet e suas bolhas.
A democracia pode ser uma grande festa em que cabem todas as diferenças. A democracia só é democracia, aliás, quando cabem todas as diferenças. Projetos que não acolham as diferenças, que querem eliminar —e inclusive exterminar— as diferenças e executar aqueles que encarnam as diferenças, estes não cabem na democracia. Porque defender a eliminação dos diferentes, dizendo que não deveriam existir ou que valem menos que os outros, não é uma opinião, mas um crime. Um crime previsto pela legislação brasileira, mas curiosamente este crime persistente nesta campanha não tem sido identificado como crime e punido pelas instituições responsáveis.
Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ficar em primeiro lugar no primeiro turno da eleição porque todos os debates importantes para o Brasil foram suspensos, todas as discussões em andamento se perderam, e o cotidiano foi reduzido a espasmos. Ele não apenas ampliou o ódio, ele também sequestrou o debate. Este tempo já foi perdido por quem aposta na democracia. Mas o tempo não foi perdido para os que apostam no caos, porque o ódio foi ampliado e os muros ficaram ainda maiores e mais difíceis de serem atravessados por qualquer diálogo.
Jair Bolsonaro vem ganhando há muito tempo porque nem mesmo precisou explicar como seu guru econômico e futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, o ultraliberal que é desprezado pelos liberais moderados, propõe uma mudança que cobrará mais impostos dos pobres e menos dos ricos. Ou como seu vice, Hamilton Mourão, chama o décimo-terceiro salário do trabalhador de “jabuticaba”. Nem isso ele precisou explicar, até porque o médico teria desaconselhado debates na Globo mas permitido entrevistas no mesmo horário para a Record.
Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ter ganhado um número expressivo de votos no primeiro turno porque conseguiu mergulhar uma parte das pessoas numa paralisia amedrontada, como se estivessem estragadas por dentro. Jamais se esqueçam que a primeira vitória da opressão é sobre a subjetividade. É o que faz uma mulher cotidianamente espancada ficar calada. Ou uma mulher estuprada não denunciar o estuprador. Há algo que a amarra por dentro. É como se perdesse a voz mesmo tendo voz, perdesse a força mesmo tendo força. Esse é o efeito de ser violentada ou violentado. Vi muita gente assim no final da campanha de primeiro turno, vivendo a campanha violenta de Bolsonaro e de seus apoiadores como uma violência sobre o próprio corpo, sobre sua mente e sobre seu espírito. Mulheres, principalmente, mas também homens.
É o seguinte.
Jair Bolsonaro ganhou, mesmo antes de ganhar, mas não pode continuar ganhando. E a primeira luta acontece dentro de cada um. Não renunciem à sua subjetividade. Não permitam que roubem a sua voz e a sua força. Não deixem a vida ser tomada pelo medo. É preciso lutar neste segundo turno para o autoritarismo não se instalar no Brasil pelo voto, mais uma contradição da democracia. E é preciso resistir primeiro nas pequenas coisas do cotidiano. No amor, na amizade, no sexo, no prazer de ver um filme ou ouvir uma música, num café bem coado. No que uma amiga minha chama de “cotidianices”. E, principalmente, no prazer de estar junto. Como disse alguém na minha página do Facebook: “Mesmo se tudo der errado, o que me interessa agora é que meus filhos saibam que a mãe deles lutou contra o horror”.
Não permitam que “o coiso” corrompa seu espírito. Aprendam com as crianças que leram Harry Potter: se os dementadores (criaturas que controlam, oprimem e derrotam roubando a alegria) se aproximarem, comam chocolate para combatê-los. Parece uma referência demasiado infantil, mas J. K. Howling sabia o que escrevia: a comida e a música são o que faz a maioria dos refugiados conseguirem viver longe das suas pátrias e mátrias, porque acionam lugares da mente que a opressão não alcança. Só com a batalha ganha dentro de cada um, é possível ter mais força no que o poeta do Xingu Élio Alves da Silva refere-se como “Eu+ Um”. Sozinhos nós contamos apenas como um. Como Um+Um+Um... nós somos milhões.
2) Democracia, autoritarismo e a omissão das instituições que deveriam combater os crimes
Há muitos desafios neste segundo turno de Jair Bolsonaro com Fernando Haddad (PT). Se Lula fosse um estadista, ele teria apoiado um nome fora do PT. Alguém que pudesse aglutinar a esquerda e o centro, como Ciro Gomes (PDT). E Haddad poderia ter sido o vice. Mas Lula, infelizmente para o país, não é um estadista. Lula é um grande líder, mas não um estadista. Moveu-se nesta eleição por vingança, não pelo bem do Brasil. Quis mostrar que, mesmo de dentro da cadeia, poderia dominar a campanha.
É possível entender a sua raiva, já que estava em primeiro lugar nas pesquisas e foi impedido de ser candidato. Nem mesmo dar entrevista pode. Como jornalista, já fiz entrevistas com dezenas de presos, essa proibição é uma arbitrariedade. É possível entender a sua raiva, mas de uma liderança se espera que domine a raiva e seja capaz de pensar nos interesses do país acima dos seus. Lula não foi capaz. E cá estamos.
Essa eleição, desde o início, foi a eleição “do contra”. E a eleição do “contra” vai se acirrar no segundo turno. Contra Bolsonaro X Contra o PT. O país inteiro sabe que há uma avalanche antipetista. Que se manifesta como ódio. Os motivos são variados. Uma parte concentra, inclusive, ódio pelas virtudes do PT no poder, como as cotas raciais nas universidades e a ampliação dos direitos das empregadas domésticas.
Estas duas ações do PT no governo explicam grande parte do ódio, sem que assim ele seja nomeado. Foram essas duas políticas que alteraram as relações de poder e confrontaram de fato privilégios, já que Lula jamais mexeu na renda dos mais ricos. Mas ele e Dilma Rousseff mexeram, sim, no equilíbrio de poder, concreto e simbólico, quando os negros entraram nas universidades e quando as domésticas deixaram de ser uma versão contemporânea da escravidão para se tornar mais uma categoria explorada de trabalhadores, entre tantas outras. Essas políticas, não concessões do governo, mas reconhecimento de lutas históricas, geraram mudanças que são imparáveis e seguiram confrontando privilégios mesmo depois que o PT foi afastado do poder pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Uma parte, na qual me incluo, terá que segurar o estômago para votar num partido que reeditou o projeto da ditadura civil-militar na Amazônia, reduzindo a floresta a objeto de exploração, evidenciado nas grandes hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, e na expulsão dos povos da floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá que tampar o nariz para votar num partido que assinou a lei antiterrorismo e que usou a Força Nacional para perseguir e reprimir manifestantes e trabalhadores nas cidades e na floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá pesadelos para votar num partido que até hoje não se manifestou contra a ditadura assassina de Nicolás Maduro na Venezuela (Nem isso, PT, nem isso...). Uma parte, na qual eu também me incluo, sofrerá para votar num partido que consumiu os esforços de pelo menos duas gerações de brasileiros com a promessa de que seria diferente dos outros e, como os outros, se corrompeu no poder e se aliou ao que havia de mais nefasto na política nacional. E sofrerá também porque o PT fez tudo isso e nenhuma autocrítica. Nem uma autocrítica bem pequenina, uma autocriticazinha. Nada que mereça esse nome.
Mas uma parte, na qual de jeito nenhum eu me incluo, usa o ódio contra o PT para justificar o injustificável. É um truque. E esse truque precisa ser desmascarado. Se você votou e votará em Bolsonaro, não é porque é contra a corrupção. Havia outros candidatos que não eram suspeitos de corrupção e você não votou neles no primeiro turno. Você votou em Bolsonaro porque compartilha de suas ideias e compartilha do seu ódio. E se você compartilha com quem afirma o que ele afirma — ser contra negros, contra mulheres, contra LGBTQ, contra indígenas, contra camponeses e a favor das armas e do autoritarismo e da tortura e do atirar para matar —então é isso que você defende. E, principalmente, é esse tipo de pessoa que você é.
Ou então você estava muito furioso e muito triste com o país e votou com raiva, votou como quando dá aquela vontade de quebrar tudo e ver o circo pegar fogo. Acontece. E em geral a gente se arrepende do que faz nestes momentos quando a respiração volta ao normal, mas as consequências se estendem, às vezes pela vida toda. Mas agora tem outra chance, e essa é definitiva. É preciso deixar a raiva de lado e votar com a razão, escolher com consciência. Porque se a dupla de “profissionais da violência”, como o próprio Hamilton Mourão definiu, assumir o poder, será muito grave para o país. Quando se vota em profissionais de violência é preciso saber o que esperar.
Quem defende a violência contra outras pessoas apenas porque são diferentes ou porque confrontam seus privilégios é um corrupto. Mesmo que nunca tenha se corrompido pelo dinheiro, é a alma que é corrompida. Então, não é possível se esconder atrás da corrupção. Nem começar nenhum discurso com “Ele não é inteligente nem preparado, mas...”. Neste caso, é preciso assumir o real desejo de exterminar os que são diferentes. Não dá para votar num racista sem ser racista, num homofóbico sem ser homofóbico, num machista sem ser machista. Este é um limite. Ao fazê-lo, se você não era, se torna um. Mesmo que você for mulher ou homossexual ou negro. E este voto fará parte de sua história. É também o seu legado para os que virão.
O fato de a eleição ser “do contra” não autoriza a imprensa e outros espaços de documentação, análise e interpretação da realidade a igualar o inigualável. Não se trata de dois iguais. Não é isso o que acontece hoje no Brasil. Há um projeto autoritário para o país, que está negando a própria democracia. Jair Bolsonaro efetivamente disse que só aceitaria o resultado da eleição se fosse o vencedor. Depois voltou atrás, mas voltar atrás não elimina aquilo que disse quando exerceu sua tão propagada “sinceridade”. Seu vice, Hamilton Mourão, efetivamente disse que era possível, depois de eleito, em caso de “anarquia”, dar um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.
A primeira declaração de Bolsonaro, logo após o resultado do primeiro turno, foi justamente questionar a lisura do sistema de apuração dos votos: “Se tivesse confiança no sistema eletrônico, já teríamos o nome do novo presidente”. Mais uma vez ele ataca o avançado sistema de apuração do Brasil, uma das poucas coisas que dão inveja em países muito mais ricos, de não funcionar. E deixa claríssimo que, se não ganhar no segundo turno, é porque as urnas eletrônicas foram fraudadas. É uma ameaça nada velada ao processo democrático, a de que não aceitará o resultado de eleição, a não ser em caso de vitória. E é um ataque persistente com o objetivo de corroer a confiança do eleitor nas urnas eletrônicas, para tê-lo do seu lado caso o resultado do segundo turno não lhe dê a vitória. Isso é gravíssimo. E as instituições não tomam providências à altura.
E há o outro projeto que disputa este segundo turno, que tem vários problemas que precisam ser apontados e radiografados, mas que não está confrontando a democracia. O PT confrontou a democracia, quando foi governo, na sua atuação na Amazônia e na repressão aos manifestantes e às manifestações contra as grandes hidrelétricas e contra a Copa do Mundo. Mas o projeto de Fernando Haddad não é um projeto antidemocrático nem o candidato ameaça se rebelar contra o resultado das urnas ou contra a própria democracia, como faz seu oponente. Haddad precisa esmiuçar muito mais o seu projeto durante o debate do segundo turno, e se comprometer muito mais com os direitos dos povos da floresta, mas não representa um projeto autoritário como seu adversário.
Estes são os fatos.
3) Parte da imprensa e do judiciário atuam partidariamente, mas se declaram imparciais
A cobertura —ou a não cobertura— do movimento #EleNão serviu de alerta para um problema que pode se agravar neste segundo turno. Uma mulher negra, de origem periférica e anarquista iniciou um protesto autônomo pelo Facebook: Mulheres Unidas Contra Bolsonaro. Hoje, a página, que só aceita mulheres, tem quatro milhões de seguidoras. A partir deste espaço, foi gerado um movimento com a hashtag #EleNão. Este movimento levou às ruas do Brasil e do mundo, em 29 de setembro, centenas de milhares de pessoas para protestar contra o que a candidatura de Bolsonaro representa. Só essa história já é extraordinária, além do grande potencial simbólico de que são as mulheres pobres, a maioria negras, que se colocaram no caminho do projeto autoritário de Jair Bolsonaro. #EleNão realizou a maior manifestação organizada por mulheres da história do Brasil.
O que a TV fez? Quase ignorou as manifestações. Qualquer um pode lembrar com riqueza de detalhes como a Globo cobriu ao vivo as grandes manifestações pelo impeachment e contra o PT. Nunca poderemos saber com precisão o quanto a própria cobertura influenciou o número de pessoas nas ruas. Em qualquer manual de jornalismo, centenas de milhares de pessoas nas ruas do Brasil e do mundo, pela primeira vez não a favor de um candidato ou de ideias, mas contra um candidato e suas ideias, é uma tremenda notícia. Mas a manifestação foi quase ignorada. E, quando foi abordada, em alguns casos os movimentos pró e contra foram apresentados como se tivessem tido a mesma proporção.
Os grandes jornais deram fotos na capa, mas preferiram outras manchetes. A maioria também se limitou a dizer que houve manifestações contra e houve manifestações a favor, como se tivesse sido tudo igual. A quem isso ajuda? Não ao país, e certamente não ao bom jornalismo. A cobertura que dá o mesmo peso a dois lados com pesos diferentes lembrou muito a cobertura da mudança climática durante vários anos: meia dúzia de cientistas, parte deles financiada por grandes emissores de CO2, defendendo que o aquecimento global não era causado por ação humana, ganhavam o mesmo espaço nos jornais que o consenso de mais de 95% dos cientistas mais respeitados do mundo, afirmando que a o aquecimento global é causado por ação humana. Essa distorção da realidade era chamada de “isenção”. E cá estamos, o planeta corroendo-se a cada dia mais.
A Polícia Militar, que costuma dimensionar o número de pessoas nos eventos e nas manifestações, desta vez preferiu não fazer a contagem. Simples assim. Um movimento histórico ficou sem números porque a força de segurança do Estado serviu a seus próprios interesses privados ( e à sua própria escolha eleitoral), sem maiores contestações. Como se isso pudesse ser de alguma forma normal ou aceitável.
Será preciso observar com toda a atenção como o que se chama de “grande imprensa” ou “mídia tradicional” se comportará neste segundo turno, especialmente as TVs. A Record já deixou claro que abandonou qualquer pretensão de fazer jornalismo ao colocar a entrevista chapa-branca com Jair Bolsonaro no horário do debate da Globo entre os presidenciáveis, em 4 de outubro. Eram só perguntas para Bolsonaro chutar para o gol. Um assessor de imprensa de Bolsonaro não faria melhor.
O candidato disse-que-não-disse-o-que-disse-e-que-está-gravado-que-disse e não houve nenhuma contestação por parte do entrevistador. Sem contar a edição apelativa. Em nenhum outro momento da história, Edir Macedo, comandante da Igreja Universal do Reino de Deus e do grupo Record, fundiu tão completamente o projeto de poder, mídia e religião como nesta entrevista, ocorrida dias depois de ele ter apoiado Bolsonaro publicamente. Ao contrário. A Record, por vários anos, fez um visível esforço para separar as esferas, pelo menos para o público ver, com o objetivo de ganhar credibilidade como um grupo sério de comunicação. Essa farsa acabou. E o fato de Edir acreditar que não é preciso mais fazer de conta é um forte indicativo do que está por vir.
Por outro lado, a Globo continua cada vez mais perto do outro lado do paraíso. Apostou todas as suas fichas no impeachment de Dilma Rousseff. Conseguiu, articulada a várias outras forças. Apostou todas as suas fichas na renúncia de Michel Temer após as denúncias de corrupção que divulgou com exclusividade. Não conseguiu, porque as outras forças seguiam achando que era melhor continuar com ele, já que a corrupção, se importou para o povo, nunca importou para os articuladores do impeachment. A aposta num candidato de centro, que poderia reacomodar as forças que sempre estiveram no poder, falhou.
A Globo encontra-se no momento entre duas oposições que têm em comum apenas o ódio à Globo: Bolsonaro e o PT. Em resumo: o próximo presidente, que determinará o destino das grandiosas verbas publicitárias do governo, odiará a Globo. Mas este é apenas o retrato do momento. As forças sempre tendem a se reacomodar para manter seu poder ou o que é possível manter dele. No governo Lula, o então presidente esqueceu até a edição fraudulenta do debate de 1989, decisiva para a sua derrota, e empreendeu uma espécie de namoro sério com o maior grupo de comunicação do Brasil.
Para que lado será acomodado —e a que preço— é o que será preciso acompanhar. Contra a acomodação da Globo com Bolsonaro há um adversário poderoso: esta é a grande chance da Record e do projeto de poder de Edir Macedo. A divulgação da entrevista com Bolsonaro na Record, na mesma hora do debate na Globo, a que o candidato em primeiro lugar nas pesquisas disse que não poderia comparecer por razões de saúde, deverá ser só o primeiro confronto. Quem assistiu ao debate esvaziado da Globo, com aqueles candidatos engravatados, exceção para Marina Silva e para Guilherme Boulos, e aquele formato sonolento de sempre, com aquela descontração de maquete, comprovou mais uma vez que esta foi a campanha do WhatsApp. O ritmo agora é outro —e a linguagem também.
Como se comportará a parcela da imprensa que apostou numa saída de centro (e não levou) deverá ser observado de muito perto neste segundo turno. Este também será o grande desafio para o jornalismo ou se fortalecer, mostrando o quanto é insubstituível numa democracia, ou então descer pelo ralo da irrelevância como nunca antes. Se a pauta jornalística servir para rearranjar os projetos de poder das empresas de mídia, acabou. Ainda falta uma autocrítica profunda de parte da imprensa sobre o seu papel no impeachment e já vem outro desafio muito mais intrincado. Vamos torcer para que a maior parte da imprensa se mostre à altura, porque o Brasil precisa muito de jornalismo sério.
Outro protagonista que precisa ser observado com muita atenção é o judiciário que não faz justiça, mas faz muita política partidária. A liberação de Sergio Moro de parte da delação de Antonio Palocci, uma delação feita em abril, sem novidade e escassas provas, a seis dias da eleição, é uma afronta ao Brasil. E já não é a primeira afronta ao Brasil feita por Moro. Esse personagem acredita que é herói, mas corre o risco de entrar para a história como um vilão. As palavras usadas por Tasso Jereissati para definir o que aconteceu com o PSDB servem para Moro: “engolido pela tentação do poder”. O juiz se comporta como se a lei fosse a sua vontade, transformando-se não num xerife, como gostam de chamá-lo, mas num coronel pago por dinheiro público.
Moro é o que mais envergonha o judiciário, seguido de pertíssimo por Gilmar Mendes, e agora também por Luiz Fux e Dias Toffoli. Mas está longe de ser o único. Toda essa crise é também a história de uma longa série de abusos de juízes, de todas as instâncias, incluindo os do Supremo Tribunal Federal, que esqueceram que são servidores públicos, o que significa servir à população cumprindo à Constituição, não aos seus projetos privados de poder e aos seus egos mais inflados que boneco de manifestação. É preciso ficar muito atento a como o judiciário vai se comportar no segundo turno mais complicado da jovem democracia brasileira.
Há ainda o que se chama de “Mercado”. Quem é este “Mercado”, algo que é pronunciado como se não se tratasse de gente. Basta ver as manchetes dos jornais da Europa e dos Estados Unidos, para constatar que uma vitória de Bolsonaro é vista como a vitória de um ditador. Como isso ajudaria o Brasil nas relações econômicas e políticas internacionais? A própria The Economist, a bíblia dos liberais, definiu Bolsonaro “como a maior ameaça da América Latina”. Mas os porta-vozes do “Mercado” no Brasil estão eufóricos com a possibilidade de um homofóbico, racista, misógino defensor da ditadura assumir o poder. Bolsonaro cresce nas pesquisas, a Bolsa sobe e o dólar cai. Como disse um destes iluminados, Felipe Miranda, da Empiricus, em entrevista ao El País Brasil, ao avaliar uma “situação hipotética”: caso o Congresso fosse fechado e uma reforma da previdência aprovada na marra, a bolsa subiria.
É autoexplicativo.
4) Como tornar a eleição do contra uma eleição a favor
A corrosão do cotidiano no Brasil é uma imagem explícita nas ruas de cada dia. Nos últimos anos, as calçadas voltaram ser habitadas por vivos que parecem cadáveres. E nós, que não perdemos nossas casas, passamos por esses seres humanos como mortos que parecem vivos. Porque fingir que não vemos a dor dos outros também mata. Esse Brasil precisa mudar. E não será com as pessoas apontando armas umas para as outras que isso vai acontecer.
Nem será com o medo. Quando sinto que a opressão me estrangula, e o medo tenta se infiltrar nos meus ossos, recorro à literatura. A arte conversa com o mais profundo da gente, por isso foi tão atacada pelas milícias da internet. A arte conversa com a liberdade que resiste dentro de nós.
Recorro especialmente a uma autora que viveu a repressão de uma forma muito intensa, uma alemã que viveu a ditadura comunista de Nicolae Ceausescu, na Romênia. Em um livro de ensaios, Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio (Companhia das Letras), Herta Müller, ganhadora do Nobel de Literatura de 2009, escreve sobre a resistência, a resistência nas pequenas coisas, naquilo que chama de “naturalidade”. E que a minha amiga chama de “cotidianices”.
Compartilho um trecho com vocês, em que ela fala da infiltração do nazismo nos corações e mentes dos “cidadãos de bem”:
“A naturalidade, aprendi a partir dos poemas de Theodor Kramer, é a coisa menos extenuante que temos. Ela está no momento e não tem um nome, para existir ela precisa se manter despercebida, porque nós também precisamos nos deixar despercebidos dela. Os poemas mostram de uma maneira agudamente clara como a naturalidade pode se extraviar quando é cassada pela arbitrariedade política.
Os poemas de Kramer mostram que o escândalo não começa pelo extermínio dos judeus nos campos de concentração, mas anos antes, com o roubo da naturalidade nas casas, cafés, lojas, bondes ou parques pela maioria dos correligionários. Que, no nazismo, a política era feita não somente pelos convictos, mas também pelos ignorantes subservientes. (...) Todos aqueles que não se viravam contra essa política eram parte dela”.
Todos aqueles que não se viraram contra essa política eram parte dela.
Herta conta que os judeus viviam neste tempo o roubo diário da naturalidade. Me parece que, neste primeiro turno, com a ameaça concreta do domínio da opressão, ainda que o projeto autoritário alcance o poder pelo voto, parte dos brasileiros, os mais frágeis muito antes, viveram o roubo diário da naturalidade de uma outra maneira. A ameaça de perder a possibilidade já foi vivida como perda da possibilidade. E então a possibilidade dos pequenos atos deixou de existir. E, vale repetir: esta é a primeira vitória do opressor.
Mais uma vez, a tessitura do presente foi suspensa por um projeto autoritário. A democracia, no Brasil, vive aos soluços, interrompida pela exceção. Tem sido essa a nossa história. Quando começamos a discutir um projeto original de país, quando os indígenas e os negros e as mulheres começam a ocupar novos espaços de poder, o processo é interrompido. Quando começamos a ter paz, a guerra recomeça. Porque, de fato, a guerra contra os mais frágeis nunca parou. Arrefeceu, algumas vezes, mas nunca parou. Desta vez, a perversão é que, até agora, o projeto autoritário vem se estabelecendo com a roupagem da democracia.
Bolsonaro define esse momento: aparentemente ele disputa dentro da democracia, mas realizando crimes previstos na legislação desta democracia, como racismo, sem ser punido; aparentemente ele disputa dentro da democracia, mas se perder no segundo turno é porque o sistema de apuração foi fraudado, se perder não aceitará a derrota; disputa dentro da democracia, mas só aceita um resultado, o da sua vitória. Essa deslógica é a lógica dos perversos. E enlouquece. Viemos sendo adoecidos – e enlouquecidos – desde que Eduardo Cunha (MDB) afirmava os maiores absurdos e nada acontecia, porque ele só podia ser afastado e preso depois de fazer o serviço sujo do impeachment.
Mais uma vez o tecimento do presente foi suspenso. Mas não podemos permitir que nossos dias sejam devorados, porque, no banquete dos perversos, nossas almas é que são comidas. Há que se resistir ao devoramento das almas.
Essa eleição foi sequestrada pelo “contra”. Ser contra é —e foi— muito importante. E será. Em momentos de tanta gravidade, como já viveram outros países ao longo da história, tudo o que se pode fazer é ser contra. Contra o autoritarismo. Contra a opressão. Contra a ameaça da ditadura. Contra o extermínio das minorias. Contra o sequestro da liberdade. Mas, mesmo fazendo campanha e votando contra, é preciso jamais perder de vista do que somos a favor. Ou as almas se envenenam. E a gente adoece por dentro, o estrago interno que Freud chama de melancolia.
Temos que ser contra e ao mesmo tempo ir tecendo um projeto de futuro, tanto no plano pessoal como no coletivo. Um projeto de futuro onde possamos viver. O presente no Brasil não será possível sem voltar a imaginar um futuro. É preciso compreender que criar um futuro serve muito mais ao presente do que ao próprio futuro. Não dá para viver vendo pela frente apenas horror ou vazio. Tem que sonhar fazendo. Sonhar com um país, sonhar com uma vida. É pelo desejo que nos humanizamos. Resistir nas próximas três semanas é principalmente desejar uma vida viva – vivendo uma vida viva. Se conseguirmos, voltaremos a ganhar mesmo antes de ganhar.
Aprendi com os povos da floresta amazônica, que tiveram suas vidas destruídas junto com a floresta mais de uma vez, e que resistem e resistem e resistem, que o principal instrumento de resistência é a alegria. Oswald de Andrade dizia que a alegria é a prova dos nove. Mas eles já sabiam disso muito antes. Metem o dedo na cara do opressor, que continua lá, e riem por gostar de rir. Riem só por desaforo.
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Como resistir em tempos brutos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU