06 Setembro 2018
Trump, Brexit ou Bolsonaro surfam com desenvoltura na antipolítica porque os "profissionais" são os que menos fazem política.
O artigo é de Bruno Cava, ensaísta e professor de filosofia, autor, entre outros livros, de A multidão foi ao deserto (Annablume, 2013), com Alexandre Mendes, A constituição do Comum (Revan, 2017), e, com Giuseppe Cocco, O enigma do disforme (Mauad, 2018), publicado por Revista Amalgama, 01-09-2018.
Um acúmulo crescente de textos, posts e livros inteiros dá testemunho do que seria uma politização de todos os âmbitos, uma invasão generalizada da política que passaria a esquadrinhar a vida pública e privada, os comportamentos, os discursos e os gestos mais cotidianos. Mas quando hoje se ouve “politizar” ou fórmulas do tipo “o pessoal é político”, o leitor pode pôr-se em guarda – o que vem a seguir muito provavelmente vai ser uma tentativa de impor uma moral qualquer, para corrigi-lo ou censurá-lo. Se nas últimas décadas, por um lado, a arena do debate se ampliou e se transformou, por outro lado, foi ocupada pela proliferação de ideias justas. Elas funcionam como um metro a serviço da insistente retificação de opiniões e comportamentos. Multiplicam-se os candidatos das ideias justas de direita e os de esquerda que, embora pareçam vocalizar uma grande diversidade dos discursos, não se diferenciam quanto à banalidade total dos enunciados. Ao longo de todas as bandeiras do espectro partidário, os líderes têm na ponta da língua um receituário exaustivo do que pode ser dito e o que não pode, quais deveriam ser as pautas, os códigos, os slogans, as senhas, tudo para confirmar o lado certo e reafirmar o pertencimento a ele.
Mas se tudo é político, nada é político. O difícil não é ter ideias justas, mas justo uma ideia. Basta uma, uma única. A onda de moralização disfarçada de politização não traz nenhuma ideia. Pode até trazer posicionamento e resposta pra virtualmente tudo, um supermercado de opiniões prêt-à-porter, mas a rigor nenhuma ideia. Por ideia não estou me referindo a representações mentais, na cabeça da gente. Ter uma ideia é raro, difícil, improvável: governos, campanhas, debates eleitorais inteiros, em regra, não têm sequer uma. Ter uma ideia em política exige os meios da própria política, que os problemas sejam resolvidos por sua própria conta, o que é diferente do que ter uma ideia em economia, engenharia ou cinema. Difere, sobretudo, de uma ideia em moral, porque política não tem nada a ver com burilar uma coleção bem acabada de ideias corretas e exibir-se com ela. Nada menos político do que o politicamente correto. Maquiavel foi o primeiro a teorizar que, para ser propriamente política, uma ideia não depende da justiça das finalidades ou da honestidade dos propósitos, mas da efetividade da adequação entre meios e fins, com o fito de exprimir-se na realidade. Noutras palavras, uma ideia em política é indissociável dos meios de sua expressão.
A ascensão da antipolítica hoje reflete a falta de ideias no escopo da representação política existente. A plenitude da primavera global deflagrada na Praça Tahrir aboliu ideias até então expressáveis, que não mais convinham ao corpo dos protestos. Ao pretender dar sobrevida a tais ideias destituídas, uma tendência pró-sistêmica que poderíamos definir como extremismo de centro vem sucumbindo, eleição após eleição, à vaga antipolítica. O ciclo de primaveras foi a face positiva da crise da globalização neoliberal, que a seu passou respondeu com a regressão populista ou a guerra civil, como na Síria, Ucrânia ou Líbia. Trump, Brexit, Salvini ou Bolsonaro surfam com desenvoltura na antipolítica precisamente porque aqueles que se apresentam como os politizados e profissionais são os que menos fazem política. Imaginam que reproduzir o senso comum e apelar ao bom senso seria suficiente. No confronto direto, os recursos à responsabilidade e à consciência do eleitor terminam por reforçar o ímpeto de avacalhação manifestado pelos indignados.[i] Manifestação com depredação do patrimônio público? Sim! Protesto mesmo com o iminente colapso do abastecimento? Sim, por favor.
No Brasil, o levante de Junho de 2013 e a greve dos caminhoneiros de 2018 passaram imperceptíveis para a representação política, a não ser como uma ameaça sombria. Contudo, ainda que não tenham constituído um movimento, no sentido substantivo ou orgânico, esses foram movimentos de movimentos. Para falar com a matemática, os dois acontecimentos foram tensores, provocando um spin das conjunturas, uma torsão de todo o resto e, por isso, eles constituíram aquilo que deve ser percebido, o que não pode ser senão percebido. A decorrente mudança da percepção destituiu o campo dos expressáveis para instaurar um novo do qual, todavia, a representação existente não só não deu conta, como também se acuou. Além da repressão, a inundação do politicamente correto de direita ou esquerda foi a única resposta propositiva, de maneira que o sistema político segue rodando no falso das guerras culturais, entre entulhos narrativos, intensificação da violência e recrudescimento desesperado de velhas ideias.
Lênin teve uma única ideia em política. Subiu nos ombros de Marx para acrescer à ideia da luta de classe a do partido. O partido deveria emergir da classe e servir-lhe como vanguarda imanente, jamais se descolando de sua vitalidade. Mas isso só aconteceu quando sintonizou o expressável que coincidia com uma mudança de percepção. Em meio à penúria do final da Primeira Guerra, o leninismo não aconteceu nos termos do discurso marxista, mas das teses de abril: “Paz, pão e terra”. Entretanto, ainda com Lênin, a bolchevização da Rússia erodiu a ideia leninista até se transformar, sem maiores saltos, no estalinismo. Se o socialismo deveriam ser os sovietes mais a eletricidade, os primeiros se tornaram meras correias de transmissão – como as comunas na Venezuela chavista – ou foram destruídos (Kronstad), e o sonho fordista da industrialização desaguou no terror do Gulag e da coletivização forçada. Ao mesmo tempo, o estalinismo promoveu a moralização brutal da sociedade soviética, quando o Partido passou a ser a suprema corte das ideias justas. Na década de 80, Gorbatchov pretendeu renovar a ideia leninista e o efeito foi precipitar a primavera antissoviética, já que a desestalinização da URSS tinha sido pela metade.
No Brasil, a política do governo FHC pode ser sumulada através da única ideia que teve. Alinhando-se à tendência neoliberal da globalização, o enunciado do Plano Real deslocou a percepção sobre o que seria capital produtivo e improdutivo. Por um lado, operou como uma hegeliana vassoura de Deus, contra os entraves da estrutura produtiva herdada da década perdida; por outro, associou cidadania e renda, ao restituir a moeda ao centro da disputa democrática. Fez isso, contudo, compensando as perdas do capital oligárquico, percebido como improdutivo, enquanto remunerava sobejamente a articulação financeira do giro do capital multinacional, percebido como produtivo. Foi aí que bateu no limite de sua elaboração política.
Lula também teve uma única ideia em seu governo. Ao subir nos ombros de FHC, fez do terreno da moeda o ponto central da partilha. A massificação da transferência de renda não foi apenas um programa entre outros, mas o novo eixo perceptivo do que é mais produtivo, ao redor do que o restante orbitou. Ou seja, para além de FHC, um investimento direto no capital humano, relacional e cognitivo[ii]. Não mais cidadania e renda, mas o acoplamento virtuoso renda da cidadania.
O lulismo, contudo, empalideceu a ideia, ao revincular a geração de renda ao pleno emprego formal e, portanto, aos campeões nacionais aninhados no esquema do Petrolão. A crise global do neoliberalismo aprofundou o esforço de recauchutagem de ideias velhas. Dilma foi a face mais emblemática dessa escolha estratégica do bloco lulista. O neodesenvolvimentismo surgiu na segunda metade da década passada como uma nova matriz econômica, de inspiração chinesa, uma saída neoarcaica vagamente industrialista. Enquanto isso, ao longo de todo o período, a inclusão proporcionada pelos governos FHC-Lula nutriu não um precariado – onde o acento é colocado numa definição negativa – mas um cognitariado ou consumitariado. Foi esse o corpo do levante de 2013, que varreu os meios de uma ideia, a essa altura, já encarquilhada. Para completar, depois de Junho, os esforços por reformar a ideia lulista tiveram a mesma sina da Glasnost gorbatchoviana: acelerar a faxina. Que hoje Lula se deixe coroar como uma Ideia viva mostra o quão esgotado ela se encontra, reduzida a um bem transcendente, isto é, a uma instância para validar ideias morais.
No entanto, a renda da cidadania persevera, inclusive para além do lulismo. Assim como, durante os governos petistas, o controle da inflação estava blindado para além de qualquer controvérsia político-partidária. Dilma levava consigo um lembrete onde se lia que o controle da inflação deveria ser defendido como um bem em si. Do mesmo modo, o posicionamento a respeito do programa bolsa família deixou de ser uma resultante da eleição, para ser o que define o próprio resultado eleitoral, tendo sido incorporado à direita e à esquerda, acima das bandeiras. É verdade que o período da redemocratização tem um passivo imenso, mas pelo menos consolidou como saldo o terreno de disputa do Real e a lógica da transferência direta de renda enquanto polo democrático. Se o espírito antipolítico do tempo tem conduzido as indignações à ação direta e à avacalhação, existiriam meios para daí exprimir uma terceira Ideia na série? Talvez sim: mediante um núcleo de reorganização de um novo sistema de proteção social baseado na renda universal: a cidadania da renda.[iii]
Então ainda é possível uma ideia política? Sim, mas teria de ser criada. Esse é o último ponto: ter uma Ideia é um ato de criação. Mas isso não significa nem tirar a ideia da cabeça para depois aplicar (hipótese idealista), nem derivá-la da correlação das forças materiais numa dada conjuntura (hipótese materialista). Ambas negam o trabalho criativo da Ideia em política. Para exprimi-la no real, é preciso acompanhar a mudança de percepção.
As primaveras árabes, Junho de 2013 ou o Maio caminhoneiro não foram experiências onde se encontrariam ideias confusas de misturas entre corpos, imperativos bruscos, gritos irracionais de indignação e interpretações mais ou menos apressadas e passionais dessas situações. Como se os signos-afetos em questão devessem ser severamente criticados, denunciados, devolvidos à noite da sua ausência de formas. Pois nada falta a tais movimentos e quando lhes atribuímos um déficit (de organização, discurso, precisão), na realidade medimos a nossa própria falta em relação a eles, o quanto chegamos cedo ou tarde demais.
Notas:
[i] Alexandre Mendes e Clarissa Naback, “Vertigens de junho”.
[ii] As formulações do pesquisador Rubem Braga recorrem frequentemente a essa definição negativa, além de estarem pelo menos uma década em atraso em relação à pesquisa sobre o capitalismo cognitivo e o cognitariado, conduzidas no âmbito da Universidade Nômade. Ver números da Revista Lugar Comum de 2002-09 e o livro organizado por Giuseppe Cocco, Alexandre Patez Galvão e Gerardo Silvia, “Capitalismo cognitivo: trabalho, redes e inovação” (2002).
[iii] Para aprofundar o tema, ver a entrevista de Giuseppe Cocco a Ricardo Machado, Patricia Fachin e João Vitor Santos, da IHU-On-Line, em 5 de agosto de 2018.
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