21 Agosto 2018
"A vitória da França na Copa do Mundo foi como o Movimento de Maio de 1968. O problema da democracia hoje? Não tem ideias. E não possui a verdade". As confissões do intelectual francês em uma longa entrevista de Sascha Lenartz (Die Welt), reproduzida por La Repubblica, 17-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Edgar Nahum, nascido em Paris em 1921, adotou o nome de "Edgar Morin", quando, com 21 anos, juntou-se à Resistência. Escreveu seu primeiro livro O ano zero da Alemanha do ponto de vista de um francês, sobre suas experiências como soldado em Berlim após o fim da II Guerra Mundial. No início dos anos 1970, passou algum tempo na Califórnia. Mais tarde, retornou à França e se tornou um precursor do movimento ecológico. Hoje ele mora em Montpellier.
Sr. Morin, aos 97 anos você está no Twitter todos os dias, o que não é comum para um filósofo de sua geração. Por qual motivo?
“Algum tempo atrás, um amigo me pediu para publicar minhas ideias sobre a reforma escolar na França no Twitter. Desde então, comecei a ‘twittar’ tudo o que passa pela minha cabeça: pensamentos, poemas, citações, comentário político, tudo que compõe meu universo. Descobri que conceitos muito complexos podem ser sintetizados usando o atalho do paradoxo. Eu me divirto em reunir os pensamentos que surgem por aí. E o Twitter oferece a possibilidade de formular máximas e aforismos, como já havia feito La Rochefoucauld."
Para você, o Twitter é uma ferramenta que substitui outras formas de escrita?
"Isso não. Nestes dias, estou terminando de escrever um livro de memórias. Já falei várias vezes sobre minha evolução intelectual, mas bem mais raramente sobre meus relacionamentos, amizades, sentimentos. Já contei sobre a Resistência, por exemplo, mas mais em sentido político e histórico, enquanto agora prefiro falar sobre pessoas. Portanto, continuo a escrever, como sempre fiz”.
Você logo estará completando um século de vida. Qual período considera o melhor?
"Depois da guerra houve uma breve fase de euforia. Libertação, fraternidade ... Então, com a Guerra Fria, as coisas mudaram rapidamente. Mas tive a sorte de viver maravilhosos oásis de tempo. Em 1969, na Califórnia, ou na Toscana, onde trabalhei na elaboração de minha obra principal, O Método. Existem fases que eu chamei de ‘êxtases da História’: a libertação de Paris foi um desses momentos absolutamente de êxtase. Eu também vivi, em Lisboa, o fim da ditadura, a Revolução dos Cravos. Mesmo o começo de Maio de 1968 foi magnífico. Na vida, esses momentos inesquecíveis devem ser vividos. Hoje eu sei que as esperanças incomensuráveis daqueles momentos se dissolvem e imediatamente se recai no cinzento prosaico do cotidiano. Mas os momentos poéticos da vida devem ser celebrados, são maravilhosos, especialmente se forem eventos coletivos. Por exemplo, a vitória da seleção de futebol francesa no Campeonato Mundial nos brindou com uma noite maravilhosa. Escrevi no Twitter que aquele dia 15 de julho foi uma verdadeira Festa Nacional, de uma França unida, republicana e multicultural. Eu estava em Paris, e vi a bandeira francesa sendo levantada por grupos de negros, franceses de origem africana e argelinos, todos em festa... Foi um daqueles momentos de êxtase. Na manhã seguinte, tudo tinha acabado. Mas, aqueles momentos, eu os amo".
Em julho de 1945, você chegou a Berlim como soldado francês, com as tropas aliadas. Qual foi a sua impressão diante daquela cidade destruída?
"Eu já tinha visto outras cidades destroçadas por bombardeios, como Karlsruhe ou Mannheim. Mas a destruição de Berlim foi incrível. Em especial, fiquei surpreso ao ver as ruas quase vazias. Parecia que ninguém se importava mais com aquela cidade... Eu fui a pé para a Chancelaria do Reich: não havia mesmo ninguém de guarda. Quando entrei no escritório de Hitler, peguei alguns papéis com sua assinatura. Mas a coisa mais fascinante foi ouvir de um alto-falante, ao pé do Portão de Brandemburgo e na avenida Unter den Linden completamente deserta, uma sonata de Beethoven, A Primavera. Evidentemente, uma iniciativa dos russos. Algo inesquecível".
Com o passar dos anos, torna-se mais difícil para você sentar à mesa para trabalhar?
"Até agora eu sempre escrevi por um impulso interno. Não sei se será assim depois que eu terminar minhas memórias. Como obra sucessiva, tenho em mente algo muito curto. O que mais me assusta é o vazio do pensamento político. Há algum tempo venho apresentando palestras sobre as bases científico-filosóficas de um seu renascimento. No passado, eu liguei entre si diversos campos do conhecimento: é o que eu chamo de método do ‘pensamento complexo’. Eu não inventei nada, mais do que qualquer outra coisa, agreguei partes diferentes entre si. Hoje, a ciência não é mais determinista como no século XIX, reconhece a indeterminação e o acaso; olha para as fronteiras do saber, tem uma concepção de ser humano em sua tripla essência da espécie, indivíduo e sociedade. O homem é ao mesmo tempo homo faber, homo economicus e homo ludens, é um ser complexo, e isso deve ser levado em conta. Para entender a História, precisamos combinar Shakespeare e Marx juntos".
Você vem tentando há décadas explicar como o pensamento se torna cada vez mais complexo. Fica irritado com a maneira pela qual os políticos tentam dissimular a complexidade do mundo aos olhos de seus eleitores?
"O pensamento complexo deveria dar passos à frente. Em vez disso, é definitivamente frustrante constatar que agora entre as elites políticas tenha se imposto um pensamento redutivo, dominado por critérios técnicos e econômicos. Estamos assistindo a uma redução do saber, suplantada pelo domínio dos números. À medida que a complexidade do mundo aumenta, o pensamento predominante parece cada vez mais incapaz de compreendê-la. É uma visão cega. E isso me preocupa muito. Mas, evidentemente, só pode me entender aqueles que se sentem desconfortáveis nesse clima. Então eu estou pregando no deserto. Mas isso não me perturba, pois acredito naquilo que falo."
O futuro da democracia preocupa você?
"O problema é que a democracia não possui uma verdade. Aos partidos se permite um período de tempo para realizar a sua visão do que consideram certo. Pelo contrário, os regimes teocráticos ou totalitários afirmam possuir verdade. A consequência é que, sob as ditaduras totalitárias sempre se sonha a democracia, que, no entanto, perde tudo o que tinha de poético logo que se encontra nas terras baixas do cotidiano democrático. A democracia só pode viver na competição das ideias; mas essa competição está quase totalmente apagada, já que também os partidos de oposição aceitam o liberalismo, por exemplo. Não existe mais uma alternativa comunista, nem mesmo social-democrata, o que explica a desintegração dos partidos da esquerda moderada. Mas também não se vislumbra outra linha de pensamento de esquerda, nem uma alternativa. E, para que uma nova concepção possa se afirmar, é necessário tempo".
Você acredita que seu pensamento possa despertar novas esperanças?
"Eu faço o que posso, mas como eu disse, é necessário tempo. Hoje chegamos justamente a um ponto zero. Portanto, acredito que uma fase prolongada de regressão provavelmente será inevitável, em parte porque a crise tem dimensões globais. Estamos na presença de uma crise muito séria do ponto de vista ecológico, com imensas consequências políticas. A ausência de regras na economia mundial, inclusive, produz uma enorme disparidade nos níveis de bem-estar, que por sua vez aciona os movimentos migratórios. Além disso, vivemos em uma situação mundial multipolar e instável, com a agravante do perigo da disseminação de armas nucleares e novas ofensivas agressivas no âmbito digital... E aqui eu paro."
Sua visão do futuro?
"Como já disse, os perigos são enormes. Além disso, o progresso tecnológico está produzindo as primeiras criaturas transumanas. Teremos indivíduos que vão viver muito mais tempo na condição de pessoas jovens graças ao uso de tecnologias que podem estender a vida ligando a inteligência artificial e humana. Assim, delineia-se um perfil perturbador de uma sociedade elevada ao seu ótimo e homogênea através dos algoritmos. Mas a homogeneidade mata a criatividade. É possível que o uso de técnicas transumanistas leve à criação de uma espécie de casta de ‘super humanos’, isolados em um espaço protegido, enquanto a grande maioria seria reduzida a sobreviver na miséria, entre conflitos incessantes. Nós não sabemos nada sobre isso. Tudo está mudando muito rapidamente".
Existe alguma vantagem em se chegar a uma idade muito avançada?
"Se você se mantiver em boa saúde. Não ouso pronunciar a palavra ‘experiência’. Muitos fizeram suas experiências sem consegui tirar disso consequências morais ou intelectuais. Um exemplo é aquele da Alemanha Oriental, que após a Segunda Guerra Mundial manteve ativo o campo de concentração de Buchenwald para prender os opositores, apesar de muitos quadros daquele regime terem sofrido a reclusão naquele mesmo campo. Muitas vezes fui violentamente atacado por minha atitude crítica em relação a Israel. No entanto, embora eu seja de origem judaica, não consigo aceitar que os descendentes de um povo perseguido durante séculos, sejam hoje os opressores dos palestinos. Mas, para voltar à idade, não é necessariamente ruim, pois pode nos tornar mais equânimes".
Quais são as coisas que ainda hoje lhe causam raiva?
"Vivemos em uma época triste, inquietante, mas ao mesmo tempo fascinante. É por isso me deixa com raiva a ideia de não ter mais tempo para viver os eventos extraordinários que acontecerão no futuro próximo”.
Um pouco de melancolia?
"Bem, sim."
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Os esplêndidos 97 anos de Edgar Morin: "Eu sou um filósofo antigo, mas amo o Twitter" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU