14 Agosto 2018
"A possibilidade de sair do túnel, recuperando uma democracia representativa, que interprete corretamente as necessidades das pessoas e, assim, obtenha um alto grau de consenso, não é fácil. Para tornar mais árduo o compartilhamento dessa perspectiva contribuem, por um lado, a individualização das necessidades e aspirações - como evidenciou perfeitamente Zygmunt Bauman - e, pelo outro, a falta de equilíbrio da cultura dos direitos com a cultura dos deveres e das responsabilidades. O problema é, portanto, principalmente cultural, e implica uma nova consciência do "bem comum" baseado em um sistema de valores e normas compartilhados."
O artigo é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, publicado por Rocca n. 9, de 1º de maio de 2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Metade dos cidadãos italianos (e mais ainda), por ocasião das últimas eleições nacionais, deu sua própria adesão a partidos - Movimento 5 Stelle e Lega - que, apesar de diferenças intrínsecas, se assemelham sob o rótulo de "populismo". O fenômeno não é isolado, se considerarmos a presença de experiências análogas em outros países europeus – do Brexit na Grã-Bretanha, ao Front National na França até a ascensão das direitas na Alemanha e na Áustria - a tal ponto que agora é possível falar sobre uma internacional populista europeia.
Para além da discussão teórica sobre os traços que qualificam o populismo - existem diferentes definições que são dadas por cientistas políticos - entre as várias posições expressas (não só na Itália) existem convergências significativas: do compartilhamento de um protesto radical contra o status quo, em particular dos partidos tradicionais, à rejeição de uma sociedade aberta aos migrantes, até à dura crítica dirigida para a Europa, considerada a causa de todos os males que afligem o estado de dificuldade de muitas das nações que fazem parte dela. Somam-se a isso as pressões soberanistas e nacionalistas - a Liga enfatiza essa visão - a rejeição da democracia representativa e sua substituição com a democracia direta que, para o Movimento 5 Estrelas, deve ser alcançada através do recurso à tecnologia da informação hoje disponível.
As causas que produziram essa virada, surpreendente pela rapidez com que aconteceu, devem ser procuradas em várias direções. Um papel decisivo foi antes de tudo – e é esse o panorama de fundo a partir da qual precisamos começar - a grave crise econômica e financeira que começou nos anos 2007-2008, que não encontrou na classe política tradicional respostas tranquilizadoras. O estado de recessão atual (apesar de alguns sinais tímidos de superação) e o crescimento das desigualdades despertaram (e não poderiam deixar de fazes isso) uma sensação disseminada (e transversal) de descontentamento. O desconforto causado pelo forte aumento das pobrezas, antigas e novas, e o nível patológico de desemprego e da falta de perspectivas para os jovens é acompanhado pelo sentimento de privação da classe média, onde a experimentação de uma substancial redução de possibilidades econômicas provoca uma crescente agressividade social.
A esses dados adiciona-se (e com eles interage) a desconfiança radical na política - nunca antes o índice de satisfação tinha caído tanto - devido a fenômenos de corrupção, presentes de forma cada vez mais consistente e capilar, dos privilégios de que usufruem os eleitos a cargos públicos - basta pensar nas aposentadorias vitalícias dos parlamentares - e da incapacidade de enfrentar os problemas reais do país, fazendo reformas e se preocupando com as camadas mais frágeis da população.
Tudo isso é então ampliado pela manipulação exercida pela mídia, que acentua os aspectos negativos da situação, alimentando uma percepção distorcida da realidade, que exacerba os espíritos e incentiva o desenvolvimento de atitudes displicentes com a manifestação de juízos levianos e demagógicos ditada pelo preconceito e pela superficialidade.
Parte-se da crença de que não há diferenças entre os políticos na acumulação de cargos e privilégios – “são todos iguais”, costuma-se dizer, independentemente das posições ideológicas – para se chegar à contraposição da classe política com a sociedade civil, com a atribuição à primeira de todos os males, e a consideração da segunda como ilibadamente limpa e vítima dos abusos daqueles que exercem o poder.
Por trás dessas críticas, não é difícil ver uma forte desvalorização da política, ligada à convicção da ausência de qualquer profissionalismo, bem como do desaparecimento de ideologias e da rejeição preconceituosa de todas as formas de mediação.
A primeira de tais causas - a recusa de considerar a política como uma profissão – se traduz no pressuposto de uma atitude superficial que justifica a improvisação e a ausência de competência. Em vez de arte difícil, alto profissionalismo e grande complexidade - como desde sempre foi apresentada pelo pensamento ocidental começando com a filosofia grega (emblemática é a reflexão de Aristóteles) – ela é vista com suspeição como o último dos ofícios, para o qual não são necessárias competências especiais e cujos representantes são completamente intercambiáveis.
A batalha contra os salários dos parlamentares ou a severidade com que alguns se opõem a mais mandatos públicos, além de denunciar a presença de atitudes demagógicas, só confirma a má reputação que existe sobre o profissionalismo da política.
A segunda causa - a crise das ideologias – aliás, justificada pela condenação das grandes ideologias do "século curto", que deram origem aos totalitarismos, se traduz na afirmação de que é totalmente anacrônico falar de direita e esquerda, e realmente coincide com a aceitação de uma política em que se misturam posições diferentes (às vezes opostas) - há quem definiu por essa razão o Movimento 5Stelle como "uma realidade amorfa" - com o risco da ausência de qualquer capacidade de fazer projetos. A obrigatória rejeição da ideologia totalizante, portanto, conduz à rejeição de toda forma de ideologia, mesmo aquela limitada e pragmática que permite à política ter uma perspectiva de futuro.
Por fim - é esta a última causa (mas não por ordem de importância) - uma ênfase particular é ocupada pela rejeição de toda forma de mediação; negação que tem como resultado - como já foi dito e como ressalta Cecilia Biancalana em seu recente livro com o eloquente título Disintermediazione e nuove forme di mediazione. Verso una democrazia post-rappresentativa? (Desintermediação e novas formas de mediação. Rumo a uma democracia pós-representativa?, Feltrinelli) – a afirmação de uma democracia pós-representativa, na qual não há mais a necessidade de mediadores. A mesma adesão ao "vínculo de mandato", sobre o qual o Movimento 5 Stelle e da Liga insistiram na campanha eleitoral, pode ser reportada a essa lógica.
A praga do transformismo político, que é endêmico na Itália, exige que sejam adotadas algumas medidas de ajuste - operação que nesse sentido foi feita no Senado no final da última legislatura -; mas não há como não se questionar se o caminho indicado pelo Movimento 5 Stelle e Liga seria o caminho correto, considerando que ele terminaria vinculando os parlamentares não tanto a seus eleitores, quanto aos vértices do partido pelo qual foram candidatos, contribuindo para a "verticalização" das relações políticas e favorecendo o aspecto de valorização da liderança.
A renúncia à mediação também contém outro aspecto negativo que não pode senão ser estigmatizado; coincide com a condenação preventiva do compromisso, mesmo na versão mais nobre de "comprometimento com a realidade".
Isso comporta a falta de reconhecimento da própria identidade da política, que é por definição a arte do "possível", que está entre o ''ideal”, que nunca deve ser colocado entre parênteses, e a “realidade” com a qual é necessário se chegar a um compromisso, caso se pretenda sair da abstração e promover um crescimento efetivo da sociedade. O que parece estar faltando é, em última análise, uma "cultura da política", isto é, a ausência do conhecimento dos propósitos e das leis que regem a sua condução.
Mas, além dos motivos citados aqui, um destaque merecem algumas razões mais radicais, ligadas a algumas dinâmicas próprias da cultura contemporânea. A primeira delas refere-se ao papel privilegiado da técnica, como artífice de uma mentalidade e de um hábito que condicionam significativamente o comportamento humano. A possibilidade de intervenções cada vez mais incisivas e sofisticadas na realidade cria uma forma de prometeísmo, que acaba por tornar vã a possibilidade de "viver em uma comunidade política", a qual - como escrevia com extrema lucidez Mario Vegetti - recentemente falecido - exige, a fim de poder ser implementada o "compartilhamento de um horizonte de valores éticos e políticos, a justiça, a lei, a educação coletiva" (em La Lettura, suplemento de domingo do Corriere della Sera, 18 de março de 2018, p 27).
Por outro lado – e está é a segunda motivação, aparentemente em contraste com a anterior – para destituir de significado a política também contribui o avanço de uma forma de niilismo radical, ditado paradoxalmente - como brilhantemente ressaltou Roberto Esposito em um recente e importante ensaio (ver Politica e negazione. Per una filosofia affermativa (Política e negação. Por uma filosofia afirmativa, em tradução livre), Einaudi) - da valorização do negativo, ou seja, da tentativa de minimizá-lo até sua remoção. A política - aquela dos novos movimentos que visam a regeneração radical, recusando para isso mediação e compromisso e assumindo para si uma leitura moralista e justicialista - afunda suas raízes na incapacidade de aceitar a ambivalência da realidade, perseguindo um purismo irrealista e paralisante.
A possibilidade de sair do túnel, recuperando uma democracia representativa, que interprete corretamente as necessidades das pessoas e, assim, obtenha um alto grau de consenso, não é fácil. Para tornar mais árduo o compartilhamento dessa perspectiva contribuem, por um lado, a individualização das necessidades e aspirações - como evidenciou perfeitamente Zygmunt Bauman - e, pelo outro, a falta de equilíbrio da cultura dos direitos com a cultura dos deveres e das responsabilidades. O problema é, portanto, principalmente cultural, e implica uma nova consciência do "bem comum" baseado em um sistema de valores e normas compartilhados. "Não há polis", observava Mario Vegetti – “sem um sistema de normas de justiça compartilhadas, sem as instâncias de decisão próprias da política, em última análise, sem uma educação pública destinada a consolidar os vínculos de comunidade" (art. cit., p. 27).
Aqui estão perfeitamente harmonizadas dimensão pessoal e dimensão institucional, que devem ser integradas em um dinamismo que as torne reciprocamente interagentes. O nó central torna-se, nesse contexto, portanto, a revisitação das modalidades de construção e de organização do sistema democrático. A entrada em crise dos partidos tradicionais e sua substituição por movimentos e partidos pessoais não é apenas o resultado das escolhas de uma classe política degradada; é também, em grande medida, a expressão de uma profunda mudança social produzida pelos sistemas de comunicação, os quais, além de condicionar em termos consistentes escolhas pessoais, favorecem formas de liderança, que limitam o exercício da democracia através da redução dos espaços participativos.
Uma das questões que é preciso, então, enfrentar com maior urgência é aquela da identidade da forma-partido, de sua estrutura interna e das modalidades de exercício da própria ação. Mas, ainda mais radicalmente, trata-se de repensar a relação entre a sociedade civil e as instituições públicas, com a valorização das subjetividades sociais ou dos entes intermédios que, na medida em que superam as lógicas corporativas, estão destinadas a desempenhar uma importante função de vínculo entre sociedade e Estado, promovendo o desenvolvimento de uma política, onde ao crescimento participativo da sociedade corresponde o reconhecimento do papel essencial (e, portanto, não meramente residual) do Estado, no respeito de um justo equilíbrio entre princípio de subsidiariedade e princípio da solidariedade.
Por fim, o que tem radicalmente que se transformar é a política, que precisa recuperar um sistema de valores, ao qual inspirar sua própria ação, e identificar, ao mesmo tempo, formas de intervenção contra as realidades ligadas a uma específica proposta ideológica, bem como dar vida a uma "cultura dos meios", que permita fornecer a ela um conteúdo operacional. Dessa maneira (e somente assim), será possível restaurar a dignidade e a credibilidade do compromisso político, e vencer a tentação de recorrer ao populismo, que constitui um grave atentado ao status da própria democracia.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Repensando a democracia. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU