26 Fevereiro 2018
Cinquenta anos atrás, no mundo ocidental, aconteceu uma revolução que os observadores mais inteligentes sintetizam em uma frase: "La prise de la parole" (o direito à palavra). Os jovens, especialmente estudantes universitários, na França e na Itália, as mulheres de todos as condições, as minorias até então escondidas e negadas, sentiram-se compelidos por um vento forte a falar, algo por muito tempo negado. Em todo lugar emergia a certeza de que todos os homens e mulheres deveriam ter essa prerrogativa. Todos tinham a mesma dignidade humana como cidadãos e tinham o direito de se expressarem livremente, em voz alta, na sociedade.
O artigo é de de Enzo Bianchi, monge italiano fundador do Mosteiro de Bose, publicado por Vita Pastorale, de março de 2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Debates, confrontos, manifestações, às vezes selvagens e até mesmo exageradas, apareceram como um protesto que exigia ser acolhido.
Mesmo na Igreja, aqui e ali, os chamados grupos espontâneos, algumas comunidades reunidas ao redor de sacerdotes carismáticos e mais tarde as "comunidades de base", nasciam e se difundiam em nome desta necessidade: fazer com que suas vozes fossem ouvidas especialmente naquela que é a epifania da Igreja entre as pessoas, ou seja, a liturgia eucarística dominical. Foi uma época de traços ambíguos, às vezes não conformes com a eclesialidade, que, no entanto, não marcou apenas aquela geração, mas também transmitiram às novas gerações, em toda a Igreja, o desejo de tomar a palavra.
Hoje, a linguagem mudou, as próprias expressões não são mais de protesto e reivindicação, mas continuamos a procurar formas e meios para "dar a palavra" por parte dos pastores e "tomar a palavra" por parte do povo de Deus. O advento do Papa Francisco é reconhecido como decisivo a esse respeito: ele exerce o ministério do sucessor de Pedro como alguém que sabe ouvir, sabe dar a palavra e assim traça um caminho sinodal para toda a Igreja, marcado pelo fazer o caminho juntos por todos os batizados, "povo de Deus, presbíteros, bispos e o Papa". Pessoalmente, continuo convencido de que teremos reformas mais ou menos adequadas, que haverá disciplinas mais marcadas pela liberdade dos filhos de Deus e pela misericórdia, mas o que é decisivo é a instância da "conversão pastoral" de uma Igreja que se torna o lugar da palavra: da palavra de Deus que ressoa límpida no Evangelho, da palavra humana que expressa a fé e está ciente da esperança que é Cristo. O que pede - poderíamos dizer - o Espírito às Igrejas?
Em primeiro lugar, como sempre, pede que a Igreja seja gerada pela escuta, nasça através da escuta e viva da escuta. Afinal, esse é o caminho traçado pelo Concílio Vaticano II, do qual Francesco é apenas o interprete criativo: "O caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio", disse enfaticamente o papa, bem ciente que a sinodalidade é o estilo condizente com a escuta "realizado em todos os níveis da vida da igreja. [...] Igreja da escuta, sabedora que ouvir é mais do que sentir".
Sim, existe um primeiro passo para a sinodalidade, e este é a escuta, em primeiro lugar das Sagradas Escrituras proclamadas em Ecclesia.
Esse é o grande empenho eclesial: praticar a escuta da Palavra na qual se manifesta a possibilidade do conhecimento de Deus e de sua vontade. Primazia, hegemonia, centralidade do Evangelho significam exatamente isto: o que a Palavra diz é normativo. Pode haver um conflito de interpretação, como aconteceu no início da Igreja e ao longo dos séculos, mas graças a uma escuta não individual, mas eclesial, sinfônica, o Evangelho pode ressoar na verdade, força e clareza. É o grande exercício de escutar juntos, em uma Igreja que primeiro reconhece a "fraternidade", convocada pelo único Pai e Senhor.
Mas a escuta da Palavra é sempre, ao mesmo tempo, a escuta dos sinais dos tempos e dos lugares. A escuta da Palavra de Deus e a escuta do que os homens e as mulheres vivem, hoje estão juntas, porque a interpretação orienta a ação, mas a ação verifica e traduz a interpretação. Já a Gaudium et spes considerava "o discernimento dos sinais dos tempos à luz do Evangelho" como exercício essencial para manter a Igreja na história, com um significado próprio, mas também para poder estar em condições de responder às esperanças e aspirações da humanidade concreta e contemporânea. O povo de Deus deve reconhecer a si mesmo sob a orientação do Espírito Santo que habita o universo e a história, e que pede para ser reconhecido (operação de "discernimento") em eventos e exigências que também se manifestam com ambiguidades e contradições, mas nos quais há o sinal da mão de Deus, pastor da história.
Ouvir os sinais dos lugares também deve ser praticado na convicção de que quando a Igreja chega a uma terra, a um povo, já encontra presente o Espírito operando também naquela cultura.
Finalmente, na Igreja impõe-se a escuta do povo de Deus. O povo da Igreja é profético, portador de uma palavra por parte do Senhor, dotado da "unção que o torna infalível em acreditar [...] de um instinto da fé – o sensus fidei - que o ajuda a discernir o que realmente vem de Deus "(Evangelii gaudium 119).
É o povo que deve interpretar o que o Espírito diz às Igrejas (cf. Apocalipse) e não comunica apenas ao anjo que preside cada uma delas; por isso deve ser questionado e escutado, sempre afirmando a diversidade de carismas, a diferença de autoridade entre os vários ministérios.
Na tradição cristã do primeiro milênio ressoava o adágio do Código justiniano, "O que a todos preocupa, por todos deve ser discutido e aprovado". É um princípio forjado pela grande tradição cristã, não por acaso retomado pelo Concílio Vaticano II e reafirmado pelo Papa Francisco. Como na assembleia de Jerusalém descrita nos Atos dos Apóstolos (capítulo 15), a escuta da Igreja deve ser mútua: cada um escuta o outro e todos juntos se empenham na interpretação das posições, mesmo no conflito, mas sempre na busca comum da verdade. Trata-se de "avaliar e discernir juntos." Sem medo do conflito, o importante é a vontade de atravessar o conflito na caridade, sempre tentando de preservar a comunhão, na humildade de reconhecer a si mesmo "faltoso" para com a verdade que nunca se possui, mas sempre é buscada, porque precede a todos nós.
Do confronto, debate e escuta recíproca não devem ser alcançadas decisões prematuras que criam vencedores e vencidos; deve-se chegar a decisões provisórias que poderão ser reconsideradas mais tarde, aceitando que com o tempo as realidades amadurecem, ficam mais claras e mais participativas. No segundo Concílio de Constantinopla (553) foi expresso um cânone importante: "Quando os problemas que precisam ser tratados por duas partes são colocadas em discussão comunitária, então a luz da verdade expulsa as trevas. Porque na discussão comunitária na fé, a verdade não pode se manifestar de outra forma, já que cada um precisa da ajuda de seu próximo". Sim, a boa decisão ocorre quando há desejo de comunhão e, acima de tudo, na obediência à palavra de Deus. Claro, apenas o olho profético da Igreja pode dizer: "Parecer bem ao Espírito Santo e a nós" (Atos 15 , 28), mas pode chegar a dizê-lo. Por que, então, no encontro eclesial de Palermo (1995), a Igreja italiana soube expressar como programa o "discernimento comunitário", e depois não só não continuou nessa providencial intuição, mas acabou por contradizê-la e desconsiderá-la por mais de vinte anos?
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Avaliar e discernir na sinodalidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU