28 Outubro 2015
"Este Sínodo propiciou um novo ethos que privilegiou a 'verbalização do sagrado', a inovação, a participação, a iniciativa, a parceria, a deliberação comum, as reformas negociadas e não outorgadas, não permitindo a repetição literal da Tradição e obrigando a uma interpretação das mudanças", escreve Sérgio Ricardo Coutinho, professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura de Brasília e de “Serviço Social, Religião e Movimentos Sociais” no curso de Serviço Social do Centro Universitário IESB de Brasília.
Eis o artigo.
“Uma condição geral de base é a seguinte: falar claro. Que ninguém diga: ‘Isto não se pode dizer; pensará de mim assim ou assim...’. É necessário dizer tudo o que se sente com parrésia. Depois do último Consistório (fevereiro de 2014), no qual se falou sobre a família, um Cardeal escreveu-me dizendo: é uma lástima que alguns Purpurados não tiveram a coragem de dizer certas coisas por respeito ao Papa, talvez julgando que o Papa pensasse de outra maneira. Isto não está bem, isto não é sinodalidade, porque é necessário dizer tudo aquilo que, no Senhor, sentimos que devemos dizer: sem hesitações, sem medo. E, ao mesmo tempo, é preciso ouvir com humildade e aceitar de coração aberto aquilo que os irmãos dizem. A sinodalidade exerce-se com estas duas atitudes”. (Discurso do Papa Francisco na abertura do IIIª Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, 06/10/2014)
Francisco propôs, a um ano atrás, uma “reviravolta linguística” (linguistic turn): dizer tudo sem medo e ouvir com humildade. Com isso, a Igreja, após o encerramento deste Sínodo da Família, retoma a prática iniciada no Concílio Vaticano II e se reinsere na modernidade pós-convencional.
Seguindo a tese de Jürgen Habermas, a Igreja, depois de 50 anos, faz novamente uma reviravolta linguística, deixando de lado a concentração quase que exclusivista na dimensão semântica (conceitual-abstrata) da linguagem dogmática. Com este Sínodo, a partir da parrésia dos Padres sinodais, a Igreja voltou a valorizar as “situações de fala”, das pretensões de validade, dos argumentos, do uso da linguagem e de seus contextos, das tomadas de posição e dos papéis dialogais dos falantes. Numa palavra: da pragmática da linguagem.
De fato, este Sínodo possibilitou uma reviravolta pragmática em que a linguagem passou a ser percebida não somente na sua dimensão semântica-conceitual, mas, fundamentalmente, em sua dimensão comunicativa. Ou seja, o proferimento linguístico também é uma forma de ação. É uma forma de agir que serve ao estabelecimento de relações interpessoais. É o que Habermas chama por agir comunicativo.
O conceito habermasiano de razão comunicativa visa mostrar que a estrutura racional interna dos processos de intercompreensão se produz melhor num contexto social, político e cultural, em que o “mundo vivido” não é mais o monopólio das interpretações arcaicas subtraídas à reflexão e das instituições autoritárias, mas se abre à resolução discursiva dos problemas sociais e políticos (e, porque não, eclesiais e pastorais). Por isso, Habermas acredita nos progressos de uma socialização reflexiva no próprio seio do mundo vivido, apoiando-se nos recursos da discussão, isto é, efetuando-se na perspectiva do agir orientado a intercompreensão.
O Sínodo possibilitou aos participantes que colocassem sua racionalidade comunicativa em uso (e muitos deles com muitos anos de inutilidade). Realizado em duas etapas, este evento provocou, pelo menos na esfera do sistema burocrático romano (“colonizador” e responsável por muitas patologias no “mundo da vida” das comunidades eclesiais), a abertura de um processo de liberação do “potencial de racionalidade contido no agir comunicativo”, por meio daquilo que Habermas chamou de “verbalização do sagrado”. A ideia de verbalização do sagrado traduz uma “secularização racional” do vínculo social primitivo na força ilocucionária da linguagem (realizar uma ação através de um enunciado), cuja autoridade está ligada à força não-coercitiva, motivada racionalmente, pelo melhor argumento.
O Concílio Vaticano II, no nosso entender, já tinha iniciado o processo de dissolução de um imaginário e de ações tradicionais no meio do episcopado, do clero e dos fiéis. No entanto, os últimos 30 anos ficaram marcados por uma retomada de uma Igreja autorreferencial, simultaneamente pré-convencional e convencional.
Ou seja, por um lado, uma Igreja marcada por práticas direcionadas a legitimar autoridades, onde se procurou criar homogeneidades e similitudes comportamentais. O consenso era obtido mediante a imposição de uma fala oriunda do topo do poder (o papado) à totalidade dos fiéis, determinando a permanência do estado de coisas, das relações sócio-eclesiais, mantendo nas pessoas a resignação.
Conforme bem lembrou o historiador Alberto Meloni, desde o século XI, o pontífice sempre subtraiu a potestade dos bispos. Paulo VI restitui algumas faculdades em atenção ao Vaticano II. No entanto, neste Sínodo “nunca, há mil anos, um papa tinha cedido poderes por vontade própria”.
Por outro lado, e simultaneamente, uma Igreja centralizada numa normatividade social baseada na “Lei” (Código de Direito canônico e Catecismo da Igreja Católica) e confirmada pela Tradição de modo formal. Toda a identidade católica, coletiva ou individual, devia estar baseada na aceitação das convenções, em conformidade com as normas numa imitação ou reprodução social. De fato, como mais uma vez lembra Meloni, o próprio Sínodo dos bispos, apesar do nome, nunca foi nada mais do que um órgão consultivo, que entregava ao papa os próprios antagonismos, para que ele mediasse e chegasse a um consenso por todos sem correr riscos.
Foram os defensores deste modelo de Igreja que geraram os incidentes e destilaram o veneno contra Francisco. Como afirma Massimo Faggioli, isto se deu, em parte, pela “aversão pessoal ao papa argentino por parte dos órfãos dos pontificados anteriores”, mas também pelo “sintoma da ideologização e doutrinalização do catolicismo ‘lei e ordem’”.
Este Sínodo propiciou um novo ethos que privilegiou a “verbalização do sagrado”, a inovação, a participação, a iniciativa, a parceria, a deliberação comum, as reformas negociadas e não outorgadas, não permitindo a repetição literal da Tradição e obrigando a uma interpretação das mudanças.
Neste modelo de Igreja pós-convencional, Francisco encontrou nos “princípios de organização” de sinodalidade e de colegialidade, e no princípio da “misericórdia”, aqueles valores universais presentes no Evangelho: integridade, direitos humanos, reciprocidade, justiça social, liberdade e igualdade.
Com este Sínodo, Francisco conduz a Igreja a se encontrar com a sociedade moderna pós-convencional, “sem medo e sem esconder a cabeça na areia”, disposto a dar provas da sua vitalidade na contemporaneidade e sem “medo de abalar as consciências anestesiadas ou sujar as mãos discutindo, animada e francamente”.
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O princípio da Sinodalidade em uma igreja pós-convencional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU