22 Fevereiro 2016
No caminho da Igreja há momentos durante os quais modelos interpretativos da experiência de fé utilizados no passado existem somente em força da tradição, mas não são mais significativos. Para vivenciar corretamente a experiência eclesial se adverte a necessidade de novos modelos. De outra parte, a relação entre prática e interpretação é circular, como em todos os processos complexos. A atividade modifica o sujeito operante e o estimula a desenvolver novas interpretações.
O artigo é de Carlo Molari, poublicado por “Rocca”, n. 4, 15-02-2016. A tradução é de Benno Dischinger.
Também a indição do ano jubilar centrado no tema da misericórdia, da parte do Papa Francisco, pôs em luz a carência, nos modelos interpretativos, da prática penitencial e da experiência salvífica, pondo em movimento um novo processo interpretativo. Diante desta situação, alguns reagiram com indisposição, advertindo uma incongruência com os modelos precedentes e, por isso, criticaram de vários modos o Papa. Outros repetiram a doutrina tradicional sem relevar as incongruências e outros, enfim, estão propondo novos modelos.
Creio que seja oportuno evidenciar, a seguir, de perto estas tentativas para ampliar o confronto e difundir maior consciência na prática eclesial. Monsenhor Alceste Catella (Bispo de Casale Monferrato) e o teólogo Andrea Grillo, por ocasião do jubileu de início de milênio haviam publicado o livro: Indulgência. História e significado (San Paolo Edizioni, 1999). No ano passado prepararam uma nova edição com a introdução que também apareceu no Blog de Andrea Grillo (http://www.Cittadellaeditrice.com/munera/come-se-non/), aos 12 de outubro.
Para o seu perfil inédito o que as indulgência podem promover consiste no “fazer experimentar ao homem de hoje a profundidade e a delicadeza de sua liberdade (naquela comunhão com os irmãos que a Igreja recebe do alto e que por isso pode anunciar e realizar)... Embora a Igreja saiba encontrar as palavras certas para degelar aquele sentido que ela acima de tudo recebe como dom e que depois pode e deve, por sua vez, anunciar e doar, também e sobretudo à humanidade de hoje. No mesmo blog de 23 de janeiro u.s. o mesmo Grillo retomou o discurso num vivaz e pontual confronto entre a terminologia eclesial e a civil: Absolvição e pena, em confessionário e em tribunal. Equívocos e surpresas sobre a indulgência.
Com justeza o teólogo afirma: “O confessionário ‘não é um tribunal’, e o confessor não tem a tarefa de ‘julgar’ e ‘condenar’, mas ‘anunciar o Evangelho’ e ‘absolver’”. Investigando depois as razões da contraposição, apelou à “evolução da linguagem jurídica’ – a partir pelo menos da ‘Dos delitos e das penas’ (1764) de Cesare Beccaria [1738-1794)” e ao desenvolvimento do direito penal “que interfere poderosamente sobre a linguagem eclesial, criando facilmente tantos ‘falsos amigos’ e, consequentemente, outros tantos equívocos”.
A propósito da Bula de Francisco ele oportunamente observa que “a indulgência diz respeito à liberação do ‘pecador perdoado’ dos ‘resíduos das consequências do pecado’” e que “se de uma parte Deus jamais se cansa de perdoar, de outra parte nós podemos serenamente perseverar na confiança que a graça de misericórdia possa levar a sério e valorizar até o fundo a liberdade com a qual respondemos ao perdão divino no ‘trabalho’ da conversão e no testemunho de um perdão gratuitamente recebido e, por isso, prontamente e humanamente reelaborado”.
Em conclusão, Grillo propõe interpretar a prática jubilar como a “redescoberta da proporção laboriosa da penitência, como resposta humana à experiência do surpreendente dom de graça que Deus reserva a todo homem a toda mulher seriamente intencionados a viverem de comunhão. Estamos ante um caso clássico de ‘tradução da tradição’. ‘O que não morre e o que pode morrer’: dois componentes das indulgências se entrelaçam estreitamente e requerem, portanto, novo discernimento, não só na cúpula, mas também na base da Igreja” (ib.).
As razões teológicas do mal-estar
A fórmula tradicional que também hoje muitos retomaram do Catecismo da Igreja católica é aquela de apresentar a indulgência como “perdão da pena temporal do pecado já remetido quanto à culpa e à pena eterna” (Catec. 1471-1479). João Paulo II já a havia utilizado na Bula de indição do ano santo de 2000 (Incarnationis mysterium 29 de novembro de 1998), onde escrevia: “Desde a antiguidade... a Igreja sempre esteve profundamente convicta que o perdão, concedido gratuitamente por Deus, implica como consequência uma real mudança de vida, uma progressiva eliminação do mal interior, uma renovação da própria existência. O ato sacramental devia ser unido a um ato existencial, uma renovação da própria existência.
O ato sacramental devia estar unido a um ato existencial, com uma real purificação da culpa, que precisamente se chama penitência. Perdão não significa que este processo existencial se torne supérfluo, mas antes, que ele deve receber um sentido que é aceito, acolhido. A ocorrida reconciliação com Deus, de fato, não exclui a permanência de algumas consequências do pecado, das quais é preciso purificar-se. E precisamente neste âmbito que adquire relevo a indulgência, mediante a qual é expresso o dom total da misericórdia de Deus (citada em nota id. Bula Aperite portas Redemptori [Abri portas ao Redentor] (6 de janeiro de 1983), 8: AAS 75 (1983), 98]. “Com a indulgência ao pecador arrependido é condoada a pena temporal para os pecados já remetidos quanto à culpa” (n.9).
Esta argumentação é claramente contraditória. Por quem são infligidas as penas se o nome de Deus é misericórdia? Por que Deus não condoa desde o início a pena temporal, mas precisa de uma ulterior ação condicionada a uma prática da criatura? Por que a misericórdia não pode ser integral desde o início? Por que o seu primeiro perdão se limita à culpa e à pena eterna? Resíduo do impacto jurídico que nos séculos havia construído a interpretação da redenção realizada por Cristo como satisfação oferecida a Deus.
Para favorecer, portanto, o necessário discernimento e difundir suas aquisições na Igreja é necessário que a revisão abranja toda a terminologia da redenção e remonte até Anselmo de Aosta (1034-1109) ou também a Tertuliano (155-230), o qual, como bom advogado perito em direito romano, havia impostado a sua reflexão sobre a penitência no axioma: “ou satisfação ou pena” e dizia ao pecador: “Tu O ofendeste, mas ainda podes reconciliar-te com Ele. Tens a ver com alguém que aceita uma satisfação e mesmo a deseja” (A Penitência, 14).
Sobretudo Anselmo de Aosta, no tratado Cur Deus Homo [Por que Deus Homem (1098)] ofereceu o desenvolvimento sistemático desta impostação. Ele, antes de se tornar Monge em Bec e depois Bispo de Canterbury, havia estudado direito em Pádua e conhecia bem o Código Romano e o Direito germânico. A dimensão jurídica inserida na teologia da redenção (pecado como ofensa de Deus, a punição proporcionada, o mérito como direito a ter um prêmio) conduziu à assunção da categoria de satisfação e à distinção entre pena eterna e penas temporais do pecado.
Satisfação indica a prestação com a qual Jesus teria compensado o Pai da ofensa dirigida a Ele pelos pecados humanos, segundo o rigor da divina justiça. Deus, de fato, sendo justo, não teria podido perdoar o homem sem uma digna e proporcionada satisfação que, no entanto, só um homem/Deus teria podido oferecer de modo adequado. Deste assunto Santo Anselmo, com rigor lógico, deduzia a necessidade da encarnação.
Esta teoria invertia completamente a dinâmica da salvação porque condicionava o perdão divino à satisfação oferecida por Jesus sobre a cruz. Enquanto a promessa da nova aliança falava de iniciativa divina gratuita: “perdoarei a sua iniquidade, não me recordarei mais do seu pecado” (Ger. 31, 34). De modo correspondente, a indulgência constituía a oferta ao pecador em determinadas circunstâncias e, sob devidas condições, um suplemento de graça, recorrendo ao “tesouro das satisfações de Cristo e dos santos” (Catec. 1471). O Papa Francisco, ao invés, não fala de penas temporais, porém mais concretamente da marca negativa deixada pelo pecado ou do resíduo da consequência do pecado. Ele passa, assim, do plano jurídico ao psicológico e vital. De tal modo introduz o fator tempo e envolve a rede das relações através das quais as pessoas efetivamente se desenvolvem e crescem.
Nesta perspectiva, a misericórdia divina atua através das criaturas e o amor do Pai se torna dinâmica redentora dos filhos. A ação de Deus é, de fato, criadora: Sua misericórdia se torna o investimento amoroso dos que creem perante o pecador para libertá-lo do mal. Por isso, o jubileu solicita aos fiéis não só a acolherem a misericórdia pelos próprios pecados, mas também a exercê-la perante todos aqueles que praticam o mal. Para ser efetivamente, como diz a fórmula de Lucas escolhida como lema jubilar, “misericordiosos como o Pai” (Lc 6, 36).
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Jubileu e novos modelos interpretativos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU