A fome, o dragão e o Mercosul: o Brasil na encruzilhada da nova ordem mundial. Entrevista com Fernando Roberto de Freitas Almeida

Foto: Caroline Cagnin | Pexels

30 Dezembro 2025

O sonho da integração sul-americana virou pesadelo ou apenas mudou de dono? Enquanto Brasília e Buenos Aires hesitam entre a cooperação histórica e o distanciamento ideológico, um novo ator redesenha o mapa do Cone Sul não com discursos diplomáticos, mas com infraestrutura e demanda por commodities: a China. Em meio a esse reordenamento tectônico, o Brasil enfrenta seu paradoxo mais cruel — bater recordes de produção no agronegócio enquanto luta para manter sua própria população fora do Mapa da Fome.

Para decifrar este cenário onde a segurança alimentar colide com a geopolítica, o historiador Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ, entrevistou com exclusividade para o Instituto Humanitas Unisinos — IHU um dos maiores especialistas brasileiros em Economia Política Internacional e Estratégia.

Trata-se do Prof. Dr. Fernando Roberto de Freitas Almeida. Uma autoridade que combina o rigor acadêmico com a experiência de campo na análise econômica. Doutor em História Política pela Uerj e Mestre em Relações Internacionais, Almeida é professor associado do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua trajetória é marcada por uma profunda imersão nos dados reais da economia agrária: atuou por mais de duas décadas como economista na Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde foi redator da Agroanalysis e consultor da FAO e do Banco Mundial.

Nesta conversa urgente, o professor desmonta o mito de que a “Revolução Verde” resolveu o problema da fome, analisa como a presença chinesa “desestruturou cadeias produtivas” locais e alerta para o perigo de uma reprimarização que transformou o Cerrado em uma monocultura de exportação. Mais do que uma entrevista, este é um diagnóstico de sobrevivência nacional: como o Brasil pode evitar a profecia de Perón e chegar ao futuro “unido” em vez de “dominado”?

Eis a entrevista.

Diante das recentes tensões políticas e econômicas no Mercosul e das mudanças de governo em ambos os países, quais são os principais desafios e perspectivas para a relação bilateral e para o futuro da integração regional?

Brasil e Argentina sempre foram considerados o eixo para a integração sul-americana e o Mercosul deriva de propostas de integração dos dois, nos governos socialdemocratas de José Sarney e Raúl Alfonsín, logo após o encerramento de suas ditaduras militares. Buscava-se apoio mútuo às democracias e fortalecimento internacional do subcontinente. Houve, na ocasião, vários protocolos, chegando-se até a pensar numa moeda comum. As regras da Associação Latino-Americana de Integração permitiam que se avançasse, com criatividade, o que foi feito, e os dois países de economia menor no Cone Sul, o Paraguai e o Uruguai aderiram ao processo, culminando com a assinatura do Tratado de Assunção, já no governo neoliberal de Fernando Collor de Mello, em 26 de março de 1991. Sua sede administrativa foi colocada em Montevidéu, mostrando a preocupação de equilíbrio entre Brasília e Buenos Aires, mas o momento histórico, apenas cinco anos depois do início das tratativas, já era bem diferente, com a capitulação dos países latino-americanos ao receituário do Consenso de Washington, abandonando o Desenvolvimentismo. A própria Cepal mudara, adotando o conceito de “regionalismo aberto”, por muitos considerado um oxímoro.

Momentos de aproximação e de afastamento sempre houve entre o Brasil e a Argentina. Por vezes, com integração espúria, como foi o caso da Operação Condor nas duas ditaduras. Observe-se que, no processo de substituição de importações que haviam adotado, industrializaram-se de modo concorrencial, não cooperativo. Atraíram grandes corporações estrangeiras, mais ligadas a suas matrizes. Com a aproximação, desde meados dos anos 1980, o setor automotivo foi-se tornando mais relevante na integração de cadeias industriais, mas sem empresas de capital local e o trigo foi a cadeia agroindustrial mais relevante. No início do século XXI, com o fracasso dos governos neoliberais de Carlos Menem e Fernando Henrique Cardoso, que controlaram a inflação, mas promoveram grave desindustrialização, vem nova orientação, em geral considerada neodesenvolvimentista, com Lula e os Kirchner, procurando-se avançar na integração sul-americana. Contudo, a ausência de um empresariado nacional forte, como o existente até os anos 1990 e com menor capacidade de intervenção estatal, novas eleições – e um golpe parlamentar no Brasil, em 2016 – promoveram retrocessos e retorno a maior aproximação com os EUA, contrários à associação de países que pudessem contrariar seus interesses. Bolsonaro, Macri e, agora Milei, não se interessaram em manter as instituições de integração. Ao contrário, algumas foram desativadas. O aspecto mais relevante nas relações econômicas locais, atualmente, é a forte presença chinesa na região, que desestruturou cadeias produtivas e reduziu substancialmente as exportações industriais brasileiras para os vizinhos. Para se retomarem as discussões sobre a integração regional, será necessária a eleição de governantes interessados na aproximação (no caso brasileiro, a reeleição), sem o quê as pressões para a separação continuarão. Nos anos 1950, Perón afirmou “o ano 2000 nos encontrará unidos ou dominados”. Como estamos?

 

A Nova Dependência: Enquanto as fábricas locais perdem espaço, os portos se enchem de manufaturados asiáticos, reconfigurando a geografia econômica do Cone Sul. | Foto: Unsplash

A questão da segurança alimentar, tema recorrente em sua obra, ganhou nova urgência com a pandemia e a guerra na Ucrânia. Como o senhor avalia a posição do Brasil como potência agrícola nesse cenário global de instabilidade e qual o papel do país na garantia da segurança alimentar regional e mundial?

A preocupação com a segurança alimentar das populações existe desde sempre e, ao longo do século XX, finalmente criaram-se instrumentos e instituições para lidar com o tema. A necessidade de lidar com o grande salto demográfico em escala global e o aparecimento de vários novos Estados nacionais, sem infraestrutura, pois os antigos colonizadores não se preocuparam com isso, levou a discussões para a emergência do problema. Desde 1904, com a criação do Instituto Internacional da Agricultura, essa preocupação aparecia, mas o órgão se limitava a acompanhamento estatístico. No bojo da devastação da II Guerra Mundial, foi surgindo a ideia de uma organização internacional para promover o combate à fome e surgiu a FAO, agência das Nações Unidas. Seus programas conseguiram aumentar a produtividade das lavouras, aumentar a produção de alimentos, mas nunca resolveu o problema da fome nem da inclusão dos agricultores aos mercados. Incentivou a “Revolução Verde”, uma modernização conservadora, que nunca alterou as relações de produção no campo.

O Paradoxo da Fartura: O relatório mais recente das Nações Unidas confirma a tese do professor: a produção bate recordes, mas a insegurança alimentar persiste por falhas de distribuição política e não por escassez.

Há muito tempo, o mundo produz alimentos suficientes para abastecer toda a população humana, mas o sistema não foi formatado para distribuir corretamente a produção. O Brasil sempre foi destaque em produção agrícola, mas estava atrasado em pesquisas para alimentação, dando um salto a partir da criação da Embrapa, em 1973, que propiciou, entre outras coisas o avanço da soja. Tornamo-nos exemplo de industrialização da agricultura, cada vez mais dependente de agrotóxicos e fertilizantes, importados, dos quais poderia ser grande produtor também. Observe-se que já houve interpretação de como funcionaria, no mundo real, o grupo Bric original, citando: Brasil como celeiro do mundo, Rússia como fornecedora de energia, Índia como polo de informática e China como novo centro cíclico, tornando-se a “indústria do mundo”. Em grande medida, isto vem acontecendo, com os EUA perdendo várias posições. Cabe ao Brasil analisar bem como progredirá no sistema internacional, pois a China cria sistema parecido com o predomínio inglês no século XIX, ficando na posição de maior demandante de matérias-primas e maior exportadora de produtos industrializados e de alta tecnologia.

O Dragão no Quintal: A “Nova Rota da Seda” não é apenas um projeto de infraestrutura; é a materialização da nova hegemonia que o professor Almeida descreve, conectando portos latino-americanos diretamente à demanda asiática.

Temos condição de manter e avançar nossa presença, mediante negociações de nosso interesse e atentando para as mudanças climáticas em curso. É sabido que muitas das lavouras hoje cultivadas precisarão, ou de aprimoramento genético, ou de mudança nas zonas de cultivo, já iniciadas. Para a segurança alimentar regional, é preciso, em razão das enormes diferenças de renda, garantir que as populações mais pobres tenham acesso à boa alimentação, seja por políticas de valorização da força de trabalho, seja por políticas públicas específicas. Em escala global, problemas graves, como a guerra citada e a pandemia, promovem grandes oscilações nos preços das matérias-primas, que beneficiam os produtores de alimentos, mas também os oneram, ao serem dependentes de insumos associados ao processo de industrialização da agricultura, como vimos com os fertilizantes de que necessitamos.

O senhor analisou criticamente o Desenvolvimentismo brasileiro. Considerando a centralidade do agronegócio na pauta exportadora atual, como o senhor enxerga a sustentabilidade (ambiental, social e econômica) desse modelo e quais os seus impactos para a política externa e a inserção internacional do Brasil?

A orientação da Cepal, base do Desenvolvimentismo, propunha que a maior produtividade da indústria e a deterioração dos termos de troca para as exportações de produtos primários recomendariam avançar na base industrial, o que foi feito com sucesso nos maiores países latino-americanos, com destaque para o Brasil. Desde os anos 1990, com as reformas liberais e o fim do protecionismo alfandegário pedagógico, somos o país com a desindustrialização mais rápida que já houve, o que foi dramático nas indústrias de base. O complexo agroindustrial, porém, não parou de crescer, gerando receita de exportação, mas empregando relativamente pouco. A fronteira agrícola se expandiu na base de monoculturas diversas e a pecuária não ficou atrás. Hoje, temos café do Cerrado, soja do cerrado, arroz do cerrado... Desapareceu o cerrado do cerrado.

O Deserto Verde: A expansão da fronteira agrícola transformou a biodiversidade do Cerrado em uma monocultura de exportação, gerando receita cambial, mas pouca riqueza social. | Foto: Unsplash

A temática da sustentabilidade é fundamental e estratégica e muito se discute a respeito, com a implantação de práticas de preservação diversas, algumas muito inovadoras, como a agricultura sintrópica, com sucesso nas plantações de cacau. Nossa política externa vinha negociando bem no âmbito do Gatt e da OMC, com boas articulações com países em desenvolvimento, mas as negociações estão truncadas atualmente, devido aos conflitos entre os principais atores, como ficou claro no fracasso da chamada “Rodada do Milênio, em 1999. A inserção internacional do Brasil depende de conseguir defender sua soberania, com projetos que nos aproximem da vanguarda tecnológica ou, ao menos, sendo capazes de adicionar valor às nossas exportações. Nesse aspecto, a dependência da receita de exportações agropecuárias cria vulnerabilidades, como vimos agora, com as tarifas impostas pelo governo Trump, além de uma forte bancada parlamentar conservadora. Temos centros de pesquisa de excelência em algumas áreas, mas ainda engatinhamos em projetos sustentáveis.

Seus artigos recentes abordam a ascensão da China e seus impactos geopolíticos. Como a crescente presença econômica chinesa na América do Sul reconfigura as dinâmicas comerciais, especialmente a relação Brasil-Argentina, e quais as implicações estratégicas para a região?

Até há alguns anos, quando se analisavam as relações entre dois países, especialmente periféricos, era necessário ver como ambos lidavam com o hegemon, os EUA. As pesquisas que desenvolvi, no Centro de Estudos Agrícolas da FGV e, depois, na UFF, tiveram essa característica, mas um novo agente poderoso surgiu, a China, e é obrigatório lidar com as relações que ela estabeleceu, em especial desde sua entrada na OMC, em 2001. Como comentei anteriormente, a pauta de exportações de produtos manufaturados brasileiros para os vizinhos foi muito abalada com a chegada de produtos chineses, à medida que ela se tornava o maior parceiro comercial de quase todos eles. O sistema internacional vem-se reconfigurando com a ascensão chinesa, que coloca o país muito à frente de seus principais concorrentes, em praticamente todas as áreas. Evidentemente, em se tratando de uma transição que ainda não pode ser caracterizada como de hegemonia, dado o peso estadunidense, espera-se longo período de competição, com o “socialismo de mercado” chinês a cada dia mais influente. Brasil e Argentina vêm-se tornando mais dependentes da demanda daquele país e, de fato, nunca se articularam para tirarem vantagens de suas posições como exportadores, em conjunto, de alimentos e matérias-primas. Por exemplo, não foram capazes de criar uma empresa binacional para a exportação de soja. Uma integração à Iniciativa Cinturão e Rota, a Nova Rota da Seda, seria uma opção interessante aos dois, mas o Brasil recuou na associação. Argentina, Bolívia e Chile interessam aos chineses pelo lítio e outros minerais, o Peru recebeu investimentos vultosos para um grande porto em Chancay e a Argentina faz parte do rol de 21 países latino-americanos ligados à Iniciativa. Em maio último, na cúpula em Beijing entre China e América Latina, quando se discutiram projetos para maior cooperação em energia limpa, economia digital e inteligência artificial, foram apresentadas alternativas interessantes. Os chineses, porém, vêm reduzindo seus investimentos na região nos últimos anos, possivelmente por problemas com danos ambientais e também devido à evidente hostilidade dos EUA à sua presença no subcontinente Importante destacar que o investimento chinês na produção de carros elétricos na região também desassocia a integração na cadeia automotiva antes existente.

Pensando nas diferentes abordagens de política externa e econômica dos governos brasileiros desde a redemocratização, como o senhor analisa a trajetória da política agrícola, comercial e de segurança alimentar, identificando continuidades ou rupturas significativas, por exemplo, entre os governos FHC, Lula/Dilma e o período mais recente?

A chamada “Era FHC” apresentou muitas contradições, aderindo a reformas preconizadas pelo Consenso de Washington, mas também levando à frente um plano de combate à inflação original, implantado no governo de Itamar Franco. Em 1993, havia sido criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, quando também foi criado o Plano de Combate à Fome e à Miséria. Pelas restrições econômicas da época, não atuou além de tratar de distribuição de alimentos, sendo extinto em 1995, voltando em 2003, com a posse de Lula, enfatizando a preocupação com segurança alimentar e nutricional. Logo evoluiu para lidar com soberania alimentar, direito humano à alimentação, povos originários e o Plano Brasil sem Miséria. A política agrícola apoiou cada vez mais o agronegócio, com crédito rural farto, também se preocupando com a sustentação da agricultura familiar, importantíssima no abastecimento de gêneros no mercado interno. O Conselho trabalhou ativamente para sua institucionalização, bastante complexa, no bojo das preocupações sociais do governo Lula. Observe-se que o Movimento dos Trabalhadores sem Terra, criado em 1984, teve condições políticas favoráveis a seu desenvolvimento, com forte aprimoramento nas produções de gêneros alimentícios, num ambiente positivo, cm que se pode citar também a criação do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, como resposta ao neoliberal Fórum Econômico Mundial de Davos. A eleição de Bolsonaro, com um projeto ultraliberal, trouxe uma série de retrocessos, incluindo a extinção, mais uma vez, do Consea, em 2019, eliminando os estoques reguladores de alimentos do governo federal, e os armazéns oficiais, essenciais para a preservação do nível de renda dos agricultores e a garantia de alimentos básicos à população. Deixar de ver a alimentação como essencial à segurança nacional foi um grande erro, com o Brasil voltando ao Mapa da Fome da ONU, em 2022. Trinta anos depois de sua criação, o terceiro governo Lula recriou o Consea, em 2023. Logo a seguir, a retomada do olhar cuidadoso à segurança alimentar e nutricional levou a ONU a apontar rápida redução da insegurança alimentar no Brasil que, com as desastrosas políticas de Bolsonaro e a calamidade da pandemia de Covid-19. Dado o protagonismo brasileiro no mercado mundial de alimentos, haver dificuldades no atendimento básico à população é inaceitável.

Deixar de ver a alimentação como essencial à segurança nacional foi um grande erro, com o Brasil voltando ao Mapa da Fome da ONU — Fernando Roberto de Freitas Almeida

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