11 Setembro 2025
Ameaça à segurança alimentar hoje é o excesso, não a escassez.
A informação é de Ricardo Abramovay, publicado por Folha de S. Paulo, e reproduzido por André Vallias em seu Facebook, 08-09-2025.
Ricardo Abramovay é professor do Instituto de Estudos Avançados e do Instituto de Energia e Ambiente da USP; coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia “Superar a tríplice monotonia do sistema agroalimentar”.
Eis o artigo.
A COP30, em novembro próximo, é uma excelente oportunidade para que se redefina a segurança alimentar, até aqui sistematicamente associada a produzir cada vez mais.
No entanto, as conquistas científicas e os dispositivos tecnológicos, que foram fundamentais para o aumento das safras e a drástica redução da fome na segunda metade do século 20, se converteram hoje na mais importante ameaça à segurança alimentar global. O que nos ameaça não é a mais a escassez. É o excesso.
O sistema agroalimentar global é marcado por uma tríplice separação: a agricultura separou-se da biodiversidade; as "factory farmings" ("pecuária industrial") separaram os animais de criação das fontes de sua alimentação; e a alimentação se separou da saúde. Esta tríplice separação se exprime, por sua vez, numa tríplice monotonia.
A primeira monotonia é a da agricultura. A humanidade conhece mais de 7.000 produtos comestíveis, dos quais 400 são cultiváveis. No entanto, 75% de nossa alimentação vêm de apenas seis produtos: soja, milho, trigo, cana-de-açúcar, arroz e batata. E esses produtos são obtidos com base em técnicas que transformaram micro-organismos, insetos, fungos — e, de forma geral, a biodiversidade — em inimigos a serem eliminados por meio de técnicas que fazem do combate à vida a base do aumento da produtividade. Esta é a dupla face da monotonia agrícola e do excesso que a caracteriza: ela se revela nos produtos e nas técnicas para obtê-los.
A segunda monotonia vem da homogeneidade das raças e das técnicas produtivas na produção animal, num regime que tortura sistematicamente seres dotados de inteligência e sensibilidade com consequências desastrosas sobre a saúde humana, expressas no avanço da resistência antimicrobiana, uma das mais sérias preocupações atuais da Organização Mundial da Saúde, em função das chamadas "superbactérias".
E a terceira monotonia é a da alimentação, com a oferta crescente de ultraprocessados, produtos que nem deveriam ser chamados de comida. O escritor norte-americano Wendell Berry o exprime de forma emblemática, quando diz que a indústria alimentar não se preocupa com a saúde e a indústria da saúde não se preocupa com os alimentos.
Essa tríplice monotonia está sendo cada vez mais contestada, não apenas por cientistas e ativistas, mas pelo Banco Mundial, pelo Grupo Consultivo em Pesquisa Agrícola Internacional e mesmo por organizações como o Fórum Econômico Mundial e o grupo financeiro Mitsubishi, sétimo maior grupo financeiro global que acaba de publicar um relatório alertando para os perigos dos ultraprocessados e do uso de antibióticos na produção animal.
A boa notícia vem da América Latina: é aqui que estão emergindo as bases científicas que vão permitir ultrapassar os dispositivos da Revolução Verde, por meio de um conjunto de bioinsumos dos quais Brasil, Argentina e Colômbia ocupam hoje a vanguarda global.
Além disso, os próprios fazendeiros nas regiões produtoras de soja, no Brasil, começam a contestar sua dependência de insumos químicos que erodem seus solos e corroem seus rendimentos.
O sistema agroalimentar é apenas um exemplo daquilo que, de forma geral, podemos chamar de economia do excesso. Não se trata de se opor ao crescimento econômico, mas sim ao crescimento daquilo que compromete o bem-estar das sociedades contemporâneas, promovendo o que melhora a vida social e rejeitando o que agride a saúde humana, o bem-estar animal e compromete serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos. A segurança alimentar do século 21 está na abundância da vida e não no excesso daquilo que a destrói.
Leia mais
- Insegurança alimentar no Brasil: a cooperação é o caminho. Artigo de Charles Pereira Lima
- Brasil tem dificuldade histórica de atingir ‘núcleo duro da fome’ que não acessa políticas públicas, mostra estudo
- Desigualdade no prato: um retrato das contradições do sistema alimentar brasileiro
- ONU: Quase três em cada 10 brasileiros não têm garantia de comida. Entre eles, 15,4 milhões passam fome
- “Fome tem que ser combatida com renda básica e imposto sobre riqueza”. Entrevista com Francisco Menezes
- Mais de 150 cientistas premiados internacionalmente pedem para agir agora para evitar a iminente fome global
- Dados da fome em SP devem impulsionar mudança estrutural, afirma representante do MST
- "Complexo, completo e ambicioso": conheça o plano do Brasil para sair do Mapa da Fome
- Em São Paulo, dois milhões passam fome e mais da metade vive em insegurança alimentar
- Fome: uma doença social. Entrevista especial com Elaine de Azevedo
- Abandono de estoques e menos agricultura familiar são ingredientes do aumento da fome no país
- O panorama da fome no Brasil: um problema social que transcende números e estatísticas
- “A fome tem nome, tem rosto e tem história pessoal”
- “Para acabar com a fome no país, temos a solução”, afirmam movimentos populares do campo
- Taxar alimentos ultraprocessados pode significar mais recursos para políticas sociais
- “Rico em fibras”, “caseiro” e “natural”: o marketing enganoso e abusivo dos ultraprocessados para ludibriar o consumidor. Entrevista especial com Ana Paula Bortoletto
- O marketing ostensivo torna os alimentos ultraprocessados um desejo dentro do capitalismo. Entrevista especial com Raquel Canuto
- Inflação dos alimentos. Artigo de Jean Marc von der Weid
- A inflação de alimentos – e como controlá-la