Medo, fé, necropolítica. Artigo de Eduardo S. Vasconcelos

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30 Dezembro 2025

gramática da guerra, os rótulos que transformam pessoas em “lixo humano” e uma fé que abençoa a bala consagram a necropolítica, corroendo a democracia a partir da hierarquização de quais vidas merecem luto.

O artigo é de Eduardo S. Vasconcelos, professor e diretor do Instituto Federal Goiano (IFG), é doutor em ciências pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), publicado por A Terra é Redonda, 15-12-2025. 

Eis o artigo. 

Há uma cena que se repete a cada grande operação policial. De manhã, o noticiário exibe helicópteros sobrevoando favelas, tiros, viaturas em comboio, colunas de fumaça. À noite, nas redes sociais, o clima é outro: pessoas que se veem como pacíficas, trabalhadoras, religiosas, defensoras da família, escrevem frases como “tem mais é que morrer tudo”, “limpa esse morro”, “bandido bom é bandido morto”. Na semana seguinte, nos cultos e missas, orações “pelos policiais em combate” se misturam a agradecimentos a Deus pela “vitória contra o mal”.

Esse paradoxo é o ponto de partida deste texto. Não se trata de casos isolados de crueldade individual, mas de um arranjo social poderoso que combina medo, linguagem e fé em uma sociedade marcada por desigualdade extrema, racismo estrutural e abandono estatal. Quando certas vidas são rotuladas como “bandidos”, “psicopatas”, “demônios”, elas deslizam para fora do círculo da humanidade comum. Deixam de ser problema público e passam a ser descarte.

O que está em jogo aqui não é apenas a truculência de uma operação ou o exagero de um comentário. É a fronteira do aceitável numa democracia.

Quando a palavra vem antes do tiro

Antes que qualquer perícia seja feita, antes que os nomes dos mortos sejam conhecidos, a história já chegou pronta à tela: “guerra ao tráfico”, “megaoperação em área de risco”, “tiroteio entre polícia e criminosos”. As palavras decidem quem é o “nós” que se defende e quem é o “eles” que ameaça. O conflito ganha um script: de um lado, o Estado que reage; de outro, uma massa indistinta de suspeitos.

Termos como “confronto”, “baixa”, “neutralização”, “elemento abatido” parecem técnicos, mas funcionam como anestésico moral. Ao invés de “pessoas mortas por ação policial”, ouvimos “criminosos caíram em confronto”. A operação semântica é precisa: o foco sai da violência praticada pelo Estado e se desloca para o rótulo colado nos corpos.

Quando o crime é descrito como “praga”, “câncer”, “infestação”, ninguém imagina famílias, trabalhadores precarizados ou jovens com trajetórias marcadas por falta de oportunidades. Vê-se uma sujeira a ser removida do “corpo saudável” da cidade. Não é por acaso que expressões como “limpar a área” ou “fazer faxina” sejam tão populares: elas preparam o terreno simbólico para aceitar a ideia de que matar, ali, é uma forma de saneamento moral.

Em segurança pública, metáfora não é detalhe estético. É bússola. Se o crime é “guerra”, a solução é exército, armas, território inimigo. Se é “doença social”, a solução passa por prevenção, políticas públicas, urbanismo, escola, trabalho. A metáfora decide, silenciosamente, a direção do orçamento.

No Brasil, há décadas escolhemos a gramática da guerra. Resultado: favelas e periferias são tratadas como trincheiras internas. A presunção de inocência deixa de ser um direito universal e passa a depender do endereço: se o CEP é de favela ou de periferia, a pessoa é tratada como suspeita antes mesmo de dizer seu nome. Assim, a exceção deixa de ser ruptura pontual para virar modo de governo aplicado, em primeiro lugar, a determinados territórios e corpos.

Psiquiatria de botequim

Nesse cenário, uma outra linguagem entra em cena: a dos rótulos psiquiátricos improvisados. “Com esse tipo de gente não tem conversa”, “não tem cura”, “é tudo psicopata”, “predadores”, “monstros”. À primeira vista, parece apenas raiva. Mas, do ponto de vista político, é um movimento central: retirar certas pessoas do campo da cidadania e colocá-las no campo do lixo humano.

Ao longo do século XX, a retórica da “periculosidade” e da “degenerescência moral” serviu para legitimar internações compulsórias, segregação e expansão brutal de políticas penais. A figura do “anormal” e do “delinquente”, analisada por Michel Foucault, nasce justamente nesse cruzamento entre justiça, medicina e polícia: não se pune apenas o ato, fabrica-se um tipo humano perigoso por natureza.

Esse passado retorna quando, diante de uma chacina, a explicação rápida é: “não tem jeito, são psicopatas”. Se não há cura, não há política social que se justifique. Se “só entendem a linguagem da força”, não há reforma de polícia que faça sentido. Se são “monstros”, não são sujeitos de direito. A utopia democrática de um sistema que julga casos e contextos cede lugar ao fatalismo: resta apenas eliminar.

Essa lógica cai como luva em um país atravessado por frustração econômica, colapso de serviços públicos e humilhação diária. Em vez de admitir que o crime é alimentado por desigualdade, racismo, armas circulando livremente, ausência de políticas para a juventude, é mais confortável depositar tudo em indivíduos supostamente defeituosos de origem. O “criminoso irrecuperável” vira um espelho invertido no qual a sociedade se vê como saudável, normal, inocente.

Há, no entanto, outra tradição dentro da própria saúde mental: a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial, que deslocaram o eixo da contenção para os direitos, laços comunitários e participação social. Quando esse olhar é levado ao debate de segurança, muita coisa muda. Fica mais difícil aplaudir operações que matam dezenas de jovens negros em poucas horas e chamá-las de “higienização”. Fica mais difícil tratar bairros inteiros como grandes manicômios a céu aberto, onde a única “terapia” é o caveirão.

Medo, raiva e a tentação autoritária

Se a linguagem prepara o terreno, o medo é o combustível. Em tempos de crise, a mesma pessoa que se comove com a dor do vizinho pode escrever “tem mais é que morrer tudo” depois de assistir a uma sequência de reportagens sobre o crime. Não é que seu caráter tenha mudado da manhã para a noite. É que o medo, quando se torna crônico, começa a sequestrar a razão.

A psicologia social há muito descreve esses mecanismos. Sob ameaça permanente, o psiquismo busca atalhos: identifica-se com o agressor (“melhor estar do lado de quem atira”), divide o mundo em bloco de “gente de bem” versus “bandidos”, projeta no inimigo tudo o que não quer enxergar em si mesmo (ódio, desejo de vingança, crueldade). Ao chamar o outro de “lixo humano”, o sujeito se livra, por alguns segundos, da própria sensação de impotência.

Há também o desengajamento moral: eufemismos (“excesso”, “baixa”), difusão de responsabilidade (“é a polícia, não eu”), desumanização (“essa gente”, “vagabundos”), culpabilização da vítima (“se morreu, alguma coisa fez”). São dispositivos ordinários, não patologias raras. E são acionados com mais força quando a sensação de que “ninguém está no comando” é dominante. Nessa hora, ganha espaço o líder que promete “resolver de qualquer jeito” e trata garantias constitucionais como frescura de quem não vive “na vida real”.

Nada disso significa que as pessoas sejam fantoches da mídia ou do inconsciente. Significa, porém, que a adesão a soluções autoritárias não nasce no vácuo. Ela é cultivada em um ambiente onde o medo é real – tiroteios, assaltos, domínio territorial por grupos armados – e a resposta do Estado é, quase sempre, tardia, desigual, seletiva. O problema é quando esse medo legítimo deixa de ser enfrentado com políticas de redução de homicídios, urbanismo, escola, saúde, cultura, e passa a ser usado como justificativa para o extermínio.

Quando a bala vem abençoada

É nesse ponto que entra a fé. Não a fé como experiência íntima de transcendência ou compromisso com os pobres, mas a fé capturada por projetos de poder. Nas últimas décadas, uma parte importante do campo religioso no Brasil passou a ler a política como capítulo de uma guerra espiritual: de um lado, Deus, a família, a ordem; de outro, Satanás, a “ideologia de gênero”, os “inimigos da pátria”.

Quando essa gramática é aplicada à segurança pública, o efeito é devastador. Se o “bandido” é visto como agente do Diabo, o território periférico como fortaleza das trevas e a operação policial como cruzada purificadora, a morte deixa de ser problema jurídico para se transformar quase em liturgia. A frase “que Deus proteja nossos guerreiros” passa a conviver com a naturalidade com que se comenta “foram só bandidos”.

A teologia da prosperidade reforça esse quadro. Ao pregar que a vida bem-sucedida é recompensa da fé e do esforço individuais, ela ajuda a reembalar a desigualdade como prova de mérito. Os que sobem na vida seriam “abençoados”; os que permanecem na miséria, os que “não foram fiéis”, “se desviaram”, “deram brecha ao inimigo”. A ralé, para usar o termo de Jessé Souza, é convertida em categoria espiritual: gente que não deu certo porque não quis, não creu, não obedeceu.

Nesse contexto, o “bandido” condensa todos os fracassos: não trabalhou honestamente, não seguiu a palavra, não respeitou a família, ameaça os “de bem”. É o bode expiatório perfeito. Em vez de questionar a estrutura que produz miséria, violência e desespero, a sociedade despeja sua ira em corpos muito específicos: jovens, negros, de periferia. A necropolítica – o poder de decidir quem deve viver e quem pode morrer – ganha, assim, um verniz religioso.

É importante lembrar que este não é o único cristianismo em circulação. Pastorais, comunidades de base, teologias da libertação e grupos periféricos há décadas denunciam a violência estatal e o racismo em nome de um Deus comprometido com os últimos. De um lado, a fé que abençoa a bala; de outro, a fé que chora cada corpo caído. A disputa religiosa é também disputa de projeto de país.

ADPF das Favelas

Do ponto de vista institucional, a forma mais acabada da combinação entre medo, linguagem e fé é aquilo que Achille Mbembe chamou de necropolítica: a administração seletiva da morte como instrumento de governo. Ao olhar para o mapa do Rio de Janeiro, a lógica é evidente. As mesmas áreas onde faltam saneamento, escola, posto de saúde e transporte são aquelas onde operações policiais letais viram rotina. Nessas zonas, a Constituição chega enfraquecida, quando chega.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, a ADPF das Favelas, foi uma tentativa de frear, pelo alto, essa normalização do massacre. A partir de 2019, o Supremo Tribunal Federal impôs limites concretos às operações: restrição durante a pandemia, comunicação prévia ao Ministério Público, justificativa da excepcionalidade, preservação de cenas de crime, guarda de provas, planos de redução de letalidade, uso de câmeras corporais.

Em uma democracia minimamente coerente, decisões assim deveriam ser motivo de consenso: menos mortes, mais transparência, mais controle. Em vez disso, foram tratadas por parte de autoridades e comentaristas como “amarras” ao trabalho da polícia, “interferência” na segurança pública, “proteção a bandidos”. A crítica não se dirigia a casos específicos de abuso, mas à própria ideia de que o uso da força pelo Estado precisa se submeter a freios constitucionais.

É aqui que os conceitos se embaralham. “Estado de direito” passa a ser invocado para justificar o contrário do direito. “Soberania nacional” é usada para atacar a corte que, justamente, tem o papel de guardar a Constituição. “Dever de capturar homicidas” vira senha para desautorizar qualquer limite imposto à letalidade policial. O discurso assume a forma: se o Supremo manda preservar provas, é porque “não sabe como é a realidade da favela”; se exige câmeras no uniforme, é porque “não confia na polícia”.

No caso da Operação Contenção, em 2025, que deixou cerca de 120 mortos no Rio de Janeiro, o roteiro se repetiu. O governo estadual celebrou “sucesso” com base no número de corpos e na ideia genérica de que todos teriam reagido. Pouco se falou sobre nomes, idades, vínculos, circunstâncias, provas. O fato de haver uma decisão do STF em vigor, estabelecendo limites à ação policial, foi tratado como detalhe incômodo.

Quando um país aceita discutir segurança apenas nesses termos – mais mortos significando mais eficiência – a democracia está cercada.

Uma agenda mínima

Diante desse quadro, é fácil ceder ao pessimismo ou à tentação de respostas simplistas. Mas o caminho mais honesto talvez seja outro: assumir que o problema é político, não técnico, e propor uma agenda mínima para quem ainda leva a sério a palavra “democracia”.

Primeiro: reconhecer que segurança pública não é assunto para delegar apenas a corporações armadas e especialistas de estúdio. É política de primeira ordem. Diz respeito a quem vive e a quem morre, a quem é protegido e a quem é sacrificado. Enquanto tratarmos o tema como “questão de polícia”, abrimos mão de decidir coletivamente sobre o uso legítimo da força.

Segundo: levar a sério o que já está escrito. A ADPF das Favelas é marco importante, assim como decisões que obrigam o uso de câmeras corporais, o registro de dados confiáveis e o controle de letalidade. Em vez de driblar essas normas, governos deveriam transformá-las em norte: plano de redução de homicídios com metas claras, transparência ativa, responsabilização de abusos, promoções atreladas à preservação de vidas, e não à “produtividade” medida em corpos.

Terceiro: substituir espetáculo por evidência. Operações midiáticas, leis “mais duras” sem capacidade de aplicação e encarceramento em massa não têm sido capazes de reduzir de forma sustentada os homicídios. Experiências que combinaram foco territorial, inteligência, políticas sociais e participação comunitária mostram mais resultados, mesmo sem render manchetes estrondosas. A pergunta não pode ser “o que rende mais cliques?”, e sim “o que efetivamente diminui mortes?”.

Quarto: recolocar a vida no centro da ideia de segurança. Isso parece óbvio, mas não é. Segurança que se constrói sobre o cadáver sistemático de jovens negros e pobres não é segurança: é gestão de extermínio. O único indicador aceitável para medir sucesso em segurança pública é a redução consistente de homicídios, letais em geral e por intervenção policial em particular. Todo o resto é narrativa.

Por fim, disputar linguagem, cultura e fé. Isso significa questionar metáforas de guerra e faxina, cobrar da mídia que pare de narrar operações como campeonato de morte, fortalecer vozes religiosas que defendem a vida e não a bala, garantir que moradores de favelas e periferias não sejam apenas objeto das políticas, mas sujeitos na sua formulação.

Entre a bala e a palavra

No fim, talvez a pergunta mais importante seja esta: que tipo de morte um país tolera sem se comover? Se uma chacina em bairro nobre provoca comoção nacional, enquanto a repetição de massacres em favelas é recebida com alívio ou indiferença, a resposta já está dada. A própria ideia de humanidade foi hierarquizada.

Este texto foi escrito a partir da convicção de que ainda é possível dizer não a esse destino. Dizer não à transformação do medo em projeto autoritário; não ao uso da fé para abençoar o massacre; não à linguagem que reapresenta o extermínio como política pública. E dizer sim a outra coisa: à ideia, simples e difícil, de que a vida de cada pessoa – inclusive aquela de quem discordamos, inclusive aquela que cometeu crimes graves – é limite inegociável para a ação do Estado.

Enquanto essa convicção puder ser escrita, debatida e defendida em espaços públicos, ainda haverá algo de democrático a ser preservado. A questão é saber de que lado da história queremos estar quando, daqui a alguns anos, olharmos para trás e perguntarmos: em nome de que, e de quem, deixamos o Estado matar?

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