06 Dezembro 2025
Um colega recentemente chamou minha atenção para uma palestra proferida pelo cardeal Christophe Pierre, núncio apostólico nos Estados Unidos, intitulada: Cultura woke e pós-liberalismo: a resposta da doutrina social da Igreja. Vale muito a leitura.
A informação é de Michael Sean Winters, publicada por NCR, 05-12-2025.
Pierre começa reconhecendo que, apesar de suas diferenças, tanto a cultura woke quanto o pós-liberalismo surgiram de uma insatisfação com o projeto liberal clássico. Ele resume de forma franca — e correta — ambas as tendências antiliberais:
A primeira insiste na centralidade da identidade e na necessidade de uma memória histórica restaurativa, mas frequentemente é sujeita ao relativismo e a uma desconexão com a realidade.
A segunda enfatiza a importância do bem comum (entendido como o bem da minha comunidade) e do chamado ordo amoris (primeiro eu, depois minha família e então meu país, sem se preocupar muito com o destino do resto do mundo), deslizando para tentações autoritárias ou para um fundamentalismo que contradiz a legítima pluralidade da vida moderna.
Ele classifica ambas as alternativas ao liberalismo como incompletas e problemáticas e propõe, em seu lugar, a visão mais completa encontrada na Doutrina Social da Igreja.
Pierre observa que, desde a encíclica seminal Rerum Novarum, de 1891, do papa Leão XIII, até a encíclica Fratelli tutti, de 2020, do papa Francisco, a Igreja tem insistido na inseparabilidade entre a dignidade da pessoa humana e sua dimensão social. O problema da Igreja com o liberalismo foi, e continua sendo, a sua antropologia falsa.
O problema tanto da cultura woke quanto do pós-liberalismo é que eles também sofrem de antropologias parciais ou defeituosas, disse o cardeal. A primeira enfatiza a identidade a ponto de fraturar a universalidade, e a segunda corre o risco de instrumentalizar a religião para fins de poder. A proposta do Evangelho, por outro lado, desenvolvida na Doutrina Social da Igreja, permite manter unidas o respeito por cada pessoa, a abertura a todos os povos e a busca por um bem comum que não exclui ninguém.
A explicação do núncio sobre os contextos históricos e culturais que produziram a crise do liberalismo é muito bem feita. Ele cita a confiança excessiva no individualismo, as dinâmicas do capitalismo globalizado, a tendência da neutralidade liberal sobre questões últimas a criar um tipo de vazio moral. Após a virada do milênio, o desencanto com a política, a polarização, a desconfiança nas instituições, a expansão dos movimentos populistas e nacionalistas e o impacto da revolução digital aceleraram a percepção de que o liberalismo havia perdido sua capacidade de integrar as sociedades.
Ao examinar a cultura woke, o cardeal reconhece que, embora a raiz do fenômeno seja legítima — a defesa da dignidade de pessoas e comunidades historicamente marginalizadas —, a forma como a cultura woke se expandiu revela tanto sucessos significativos quanto limites. Ele elogia o conceito por aumentar a consciência sobre injustiças históricas, seu empoderamento de minorias e a ampliação da noção de solidariedade em escala global. Pierre também reconhece o mérito da revisão crítica da história. Eu faria uma ressalva: teoria crítica racial ou feminista sempre foi um nome impreciso, pois trazia uma agenda ideológica e se entrelaçava com ideias desconstrucionistas sobre a história que foram aceitas e promovidas sem o devido exame.
De qualquer modo, Pierre argumenta que a Doutrina Social da Igreja pode mitigar os problemas e excessos da cultura woke: Diante da redução da identidade, propõe a fraternidade universal; diante do relativismo, a verdade do Evangelho; diante do cancelamento, o perdão e o diálogo; diante da fragmentação, o bem comum.
Em nenhum momento, em sua análise da cultura woke, o núncio identifica autores ou pensadores específicos. Quando passa à crítica do pós-liberalismo, porém, ele cita nomes: Patrick Deneen, da Universidade de Notre Dame; Adrian Vermeule, da Universidade de Harvard; e R.R. Reno, editor da revista First Things. Embora o pós-liberalismo não seja uma ideologia única, segundo Pierre, seus expoentes compartilham a convicção de que o liberalismo chegou ao limite de sua própria lógica, produzindo múltiplas formas de fracasso: político, ao gerar sociedades paralisadas e fragmentadas; econômico, ao aumentar desigualdades e concentrar riqueza; moral, ao corroer os valores tradicionais que sustentavam a civilização ocidental.
Eis um exemplo da abordagem de Pierre: ao comentar a reivindicação dos pós-liberais de priorizar o bem comum, ele observa que nem sempre está claro se o bem comum é entendido como o conjunto de condições que permite o florescimento de todos ou como um projeto ideológico definido por um grupo dominante. Exatamente.
Assim como no caso de sua análise da cultura woke, ao discutir o pós-liberalismo, Pierre reconhece certas afinidades com o ensino social católico, mas também dificuldades intransponíveis. Por exemplo, a Igreja Católica não pode endossar um retorno a modelos de cristandade que confundem o espiritual e o temporal, como fazem alguns pós-liberais.
Retomando a antropologia cristã da graça e da comunhão, o cardeal desenvolve algumas consequências práticas do ensinamento da Igreja e conclui: A antropologia cristã oferece um critério de discernimento diante das antropologias reducionistas do liberalismo, da cultura woke e do pós-liberalismo. Somente ao reconhecer o ser humano como pessoa, dotada de dignidade, relacionalidade e vocação para a comunhão, é possível construir uma ordem social justa e humana.
A seção final do texto é uma discussão focada no conceito de bem comum e na luz que ele lança tanto sobre as insuficiências quanto sobre as possibilidades do liberalismo e dessas alternativas antiliberais. Vale muito a leitura.
Pierre completará 80 anos em janeiro, e seu tempo como nosso núncio está chegando ao fim. Ele se tornou um observador aguçado da cultura e da política norte-americana e traz esse aprendizado para este discernimento extraordinário não apenas dos problemas dos Estados Unidos, mas também dos caminhos que podem apontar para sair deles. Ele é, para o nosso tempo, o que outro francês, Alexis de Tocqueville, foi para o seu: o estrangeiro que vê aquilo que nós, americanos, temos dificuldade de enxergar. Ele fará falta.
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