04 Dezembro 2025
"Pobreza não é uma punição de Deus a um pecado pessoal dos pobres, mas, ao contrário, é fruto dessa economia que mata e concentração a riqueza nas mãos de poucos, e 'de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. [...] negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum' (n. 92)", escreve Jung Mo Sung, teólogo católico e cientista da religião.
Eis o artigo.
O cristianismo de libertação latino-americana – que inclui igrejas cristãs, pessoas cristãs leigas e eclesiásticas, teólogos e teólogas, e pessoas não ligadas diretamente a uma igreja, mas influenciadas pela tradição cristã – ofereceu ao mundo, pelo menos, três ideias teológicas que mudaram a face e a identidade do cristianismo no mundo dos últimos 50 anos: a crítica à idolatria do dinheiro e do mercado, a opção pelos pobres e o conceito de pecado social.
Após muitos anos de discussão teológica sobre o conceito de idolatria, o deus que exige sacrifícios e mortes de vidas humanas, – que apareceu com o livro “A luta dos deuses” (DEI, 1980; Paulinas, 1982) –, a noção de “idolatria do dinheiro” se tornou parte do ensinamento oficial da Igreja Católica com a exortação Alegria do Evangelho. E a noção de idolatria é fundamental porque a missão da Igreja e do cristianismo não é apenar anunciar que Deus existe ou que Jesus é o Senhor, mas sim anunciar uma visão correta da imagem de Deus e do Reino de Deus. Nesse sentido, o discernimento das imagens de Deus que existem no mundo é fundamental. E essa exortação afirma que o problema da idolatria não é apenas um erro de representação (que ocorreria no campo da filosofia e da teologia), mas sim que ocorre especialmente no campo da economia. Isto é, a idolatria do dinheiro do atual capitalismo é a expressão de uma “economia que mata”, em oposição a Deus que é Deus da Vida.
Quando se considera essa economia que mata como algo sagrado, absoluto e inquestionável, inverte-se totalmente os valores éticos e teológicos. As instituições e pessoas passam a obedecer às leis do mercado que mata pessoas, especialmente os pobres, e o meio ambiente e creem que estão fazendo o bem e seguindo a vontade de Deus ou da natureza. Em termos teológicos, temos aqui a inversão da teologia do pecado.
Esse tema do pecado é um dos centrais da exortação Dilexi Te. Apesar de que a palavra “idolatria” não aparece, essa questão da idolatria do dinheiro e do mercado sacralizado está claramente presente nessa Exortação quando se diz: “É necessário, portanto, continuar a denunciar a ‘ditadura de uma economia que mata’” (n. 92). É importante marcar que o Papa Leão XIV e o Papa Francisco relembra que é uma grande contribuição da Conferência de Medellin e Puebla: “A Conferência de Puebla, diante do agravamento da miséria na América Latina, confirmou a decisão de Medellín com uma opção franca e profética a favor dos pobres e qualificou as estruturas de injustiça como ‘pecado social’” (n. 90).
Após essa afirmação sobre o “pecado social”, um tema que estava quase ausente nos últimos anos, muitos criticaram essa expressão com a tese de que a noção de pecado exige um sujeito pessoal consciente e com a vontade deste pecado. E a sociedade ou grupos sociais não poderiam ser sujeitos do pecado, portanto, esse conceito de pecado social não tinha sentido e não era teológico.
Essas críticas pressupõe uma noção individual e legalista do pecado, enquanto que a noção de pecado social surge dentro da crítica que vai levar à crítica da idolatria. Quem assume uma teologia idolátrica de um Deus insensível aos sofrimentos pobres (tratado no primeiro artigo da série) chega à conclusão de que a noção de pecado não tem nada a ver com o tema dos pobres ou que esses são pecadores. Contra isso, essa Exortação diz: “os indigentes e os enfermos eram frequentemente obrigados a mendigar. A isso somava-se o peso da vergonha social, alimentada pela convicção de que a doença e a pobreza estavam ligadas a algum pecado pessoal. Jesus combateu com firmeza aquele modo de pensar” (n. 22).
Pobreza não é uma punição de Deus a um pecado pessoal dos pobres, mas, ao contrário, é fruto dessa economia que mata e concentração a riqueza nas mãos de poucos, e “de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. [...] negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum” (n. 92). Além disso, a Exortação afirma: “o pecado social assume a forma de uma “estrutura de pecado” na sociedade, fazendo frequentemente parte de uma ‘mentalidade dominante que considera normal ou racional o que não passa de egoísmo e indiferença’” (n. 93).
Essa passagem do conceito de pecado social para o de “estrutura de pecado” na sociedade muda a discussão sobre a noção de pecado social. A questão não é mais “quem” é o pecador, mas sim que tipo de estrutura social é essa que mata em nome de um ídolo. O que não quer dizer que não há dimensão pessoal ou a opção pessoal no interior do que chamamos aqui de “estrutura de pecado”. Os idólatras, os seguidores do “ídolo dinheiro”, Mamón (Mt 6,24), estão imersos no reino do pecado, ou na estrutura do pecado e de morte. Frente a esse “mundo”, somos chamados a anunciar a conversão ao Reino de Deus, ou a graça, a justiça e a misericórdia.
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