Quando nem o exílio é um lugar seguro. A vida dos nicaraguenses na Costa Rica. Artigo de Wilfredo Miranda Aburto

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26 Novembro 2025

O assassinato na Costa Rica de Roberto Samcam, ex-oficial sandinista e crítico do regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo, evidenciou algo que muitos já intuíram: o exílio no país vizinho deixou de ser um lugar seguro. Hoje, aqueles que fugiram vivem atentos ao que acontece ao seu redor e ao que pode acontecer com eles. A certeza que se impõe é simples e dura: o braço do regime nicaraguense é bastante longo.

O artigo é de Wilfredo Miranda Aburto, jornalista nicaraguense exilado na Costa Rica, fundador da revista Divergentes e colaborador do jornal El País (Espanha), publicado por Nueva Sociedad, em 25-11-2025.

Eis o artigo.

O sociólogo Juan Carlos Gutiérrez tenta evitar qualquer tipo de rotina no exílio. Tanto em atividades presenciais quanto digitais, por mais tedioso que seja: evita espaços públicos, nunca faz as mesmas rotas, poucos conhecem seu endereço em San José, muda constantemente as senhas de seus dispositivos – todos com múltiplas autenticações de segurança – e revisa continuamente as câmeras que instalou há poucos meses no apartamento onde vive com sua esposa. O assassinato de Roberto Samcam, um militar crítico exilado, rompeu nossa sensação de segurança, me diz esse homem metódico em seus afazeres, com essa alma de catedrático da confiscada e encerrada Universidade Centro-Americana (UCA) que ainda se percebe nele.

Há que recordar casos como o de Letelier ou Trotski: os tentáculos do poder atravessam fronteiras, exemplifica de maneira contundente, de um modo que alguém não acostumado à repressão desmedida da ditadura bicéfala de Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo poderia considerar exagerado. Mas não é. Milhares de exilados na Costa Rica – entre os quais eu me incluo – sentimos o mesmo que Juan Carlos Gutiérrez: que o refúgio já não é seguro.

Todos os que fazemos algo pela democracia no exílio estamos afetados. Voltaram os temores de perseguição, a incerteza e a sensação de confinamento, ressalta Gutiérrez, que integrou a comissão negociadora entre a oposição e o regime de Ortega em 2018, quando a Igreja Católica colocou as partes em uma mesa de diálogo nacional que, fracassadamente, tentou pôr fim à brutal repressão policial e paramilitar daquele ano.

Desde então, o casal presidencial começou a perseguir sem descanso todos os considerados opositores, provocando um êxodo sem precedentes: quase 850 mil nicaraguenses fugiram do país, especialmente para a Costa Rica, a fronteira mais próxima, porosa e acolhedora para perseguidos políticos.

Como muitos outros, Gutiérrez chegou à Costa Rica em junho de 2021 com a ideia de encontrar um lugar seguro para se refugiar. Mas essa sensação começou a se romper com o tempo. Organizações de direitos humanos e figuras opositoras começaram a advertir sobre movimentos de vigilância atribuídos ao governo nicaraguense, um rumor persistente que inquietava todo o exílio. Uma dessas vozes foi Zoilamérica Ortega Murillo, filha de Rosario Murillo, proscrita na Nicarágua pela própria mãe, que nunca lhe perdoou por ter denunciado seu padrasto, Daniel Ortega, por violentá-la sistematicamente desde a adolescência.

O Coletivo Nicarágua Nunca Mais começou a notar vários padrões suspeitos ao redor de seu escritório, localizado perto do centro de San José. Homens em motocicletas vigiavam o local e, às vezes, chegavam a vasculhar o lixo da instituição, para onde centenas de vítimas iam buscar assistência legal e humanitária. O que realmente disparou os alarmes dentro da organização foram as ameaças de morte recebidas por Gonzalo Carrión, seu diretor e fundador.

Além de Carrión, outros opositores proeminentes foram ameaçados de morte, incluindo o assassinado Roberto Samcam. A primeira tentativa de assassinato contra o opositor Joao Maldonado, ocorrida em setembro de 2021, demonstrou que as ameaças não eram vazias. Em janeiro de 2024, Maldonado voltou a ser baleado por sicários que dispararam pelo menos oito tiros contra ele, causando lesões irreversíveis.

Havia alerta, mas ela se dissipou quando começaram a circular teorias conspiratórias que vinculavam Maldonado ao narcotráfico, hipótese nunca provada e finalmente descartada pelo Organismo de Investigação Judicial (OIJ). Em junho de 2025, o processo apontou como responsáveis pelo ataque o jornalista infiltrado Danilo Aguirre Sequeira e outros dois nicaraguenses, um deles inclusive fingindo ser refugiado na Costa Rica. Embora a motivação política estivesse clara e Aguirre Sequeira fosse procurado pelas autoridades costarriquenhas, ele segue movendo-se com total impunidade na Nicarágua.

Foi nesse momento que todos entendemos que era preciso redobrar esforços para nos proteger na Costa Rica, um país preso em sua própria crise de insegurança, com crescente penetração do narcotráfico. Esse caldo de cultivo gerou uma legião de sicários que, aproveitando a chuva de balas que só em 2024 deixou 880 assassinatos no outrora pacífico refúgio da América Central, permitiu que células repressivas sandinistas se infiltrassem para atingir seus alvos políticos.

Antes do assassinato de Roberto Samcam, ocorreram os de Rodolfo Rojas, capturado na Costa Rica e morto em Honduras, e o do camponês Jaime Ortega Chavarría, assassinado na localidade costa-riquenha de Upala. Mas o de Samcam foi o que mais sacudiu o epicentro do exílio nicaraguense, pelo nível de detalhe e inteligência na operação. Em 19 de junho de 2025, sicários bem organizados e com minuciosa inteligência prévia – segundo o processo judicial – planejaram e executaram o assassinato do major aposentado. Apesar das múltiplas medidas de segurança que Samcam tomava por sua experiência militar – como trocar de camisa enquanto caminhava por San José – foi morto na porta de seu apartamento. Um jovem de 20 anos, de sobrenome Carvajal, entrou no condomínio em Moravia, bateu à porta do opositor e disparou oito vezes, matando-o quase instantaneamente, deixando-o caído em uma poça de sangue.

Os assassinos fugiram e, em setembro de 2025, foram capturados pelo OIJ. Até agora, tanto esse corpo policial quanto a Procuradoria-Geral da Costa Rica mantêm a motivação política como principal linha de investigação.

A viúva de Samcam, Claudia Vargas, não tem dúvidas de que a morte de seu marido foi por motivos políticos, e todas suas suspeitas apontam para a Direção de Inteligência do Exército da Nicarágua, um órgão que via em Samcam seu principal crítico.

Após esse assassinato, recaíram numerosas críticas sobre a Direção de Inteligência e Segurança Nacional (DIS) da Costa Rica. Fontes do OIJ afirmam que não quiseram colaborar com a investigação em curso. No início de outubro, o chefe de operações da DIS, Gilbert Villegas, declarou na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa que a instituição havia perdido contato com o ex-militar nicaraguense em meados de 2023. Mas essa é uma afirmação que Claudia Vargas contesta. Segundo ela, seu marido sempre manteve comunicação com a DIS sobre sua situação e percepção de segurança, especialmente após receber ameaças de morte, pouco antes de seu assassinato.

Vou seguir defendendo essa verdade e, claro, eles – a DIS – estão evadindo algum tipo de responsabilidade. Não sei qual implicação política pode haver para eles ao assumir publicamente que mantinham uma relação com Roberto Samcam… mas o importante é a relação que mantêm com o exílio nicaraguense ameaçado. Embora seja verdade que com Roberto havia maior proximidade devido aos temas de segurança que ele trabalhava, também existem outros exilados que se reúnem com a DIS desde 2018, disse.

Fontes da própria DIS, fora Villegas, me disseram que dentro da agência responsável pela segurança nacional costarriquenha há visões divergentes sobre os riscos enfrentados por alguns exilados especialmente expostos pela visibilidade pública. Uns acreditam que não há grande perigo e até recomendam relaxar, mas a verdade é que deveriam reforçar suas medidas de segurança, disse uma das fontes.

A espiral do medo

Quando assassinaram Samcam, eu estava a caminho de Washington, DC, para um evento de trabalho. Ao aterrissar, meu celular estava repleto de mensagens e chamadas, especialmente de minha família, que me exigia deixar a Costa Rica. O medo deles era compreensível. Eu também tive temor e, por um instante, pensei em não voltar a San José.

Mas depois de quase cinco anos de desterro, é difícil considerar começar de zero em outro país. Essa é uma decisão que ronda meu entorno e o de todos os exilados que se sentem em risco. Mesmo assim, voltei e senti um medo que há muito não experimentava desde que deixei a Nicarágua: o de dirigir olhando repetidamente pelos retrovisores, com um sobressalto que nasce na base da coluna toda vez que uma motocicleta ultrapassa meu carro. Esse exercício mental de imaginar um sicário disparando de sua moto uma submetralhadora se tornava insuportável. Assim como a simples apreensão de ir à feira, ao supermercado, a um bar, a um parque, a qualquer espaço público.

O medo – compartilhado por numerosos refugiados nicaraguenses – é confirmado por uma das últimas atualizações do trabalho do Grupo de Especialistas das Nações Unidas (ONU). O relatório documenta que o regime sandinista mantém uma rede de vigilância que persegue nicaraguenses no exílio, além de espionagem digital, negativa de documentos pessoais, confisco de bens e um padrão de castigo por associação, golpeando familiares e condenando milhares à morte civil, à pobreza e a uma sensação de ameaça permanente. Os especialistas resumem isso como o braço longo dos Ortega-Murillo. Assim também denunciou a Fundação Sem Limites.

O primeiro estudo sobre o tema, publicado em março de 2024 e intitulado Situação de segurança de pessoas ativistas na Nicarágua e no exílio na Costa Rica, mostrou que, mesmo fora do país, ativistas relatavam intimidação, assédio, vigilância na Costa Rica e obstáculos consulares deliberados – como negativa de passaportes ou imputação de delitos comuns – usados para dificultar sua inserção laboral e financeira no país de acolhida, explica Lea Bolt, diretora da fundação.

Para ela, esses sinais iniciais explicavam o clima de autocensura, as mudanças de residência, a clandestinização de rotinas e a percepção de que o exílio já não oferecia proteção real. Muitos exilados com quem conversei passaram pelo mesmo e sentem o mesmo. Instalaram câmeras em suas casas e, pior ainda, alguns decidiram abandonar a Costa Rica, o refúgio que haviam escolhido. Não queriam viver novamente com esse medo diário e persistente. Esta nova etapa do desterro está marcada por tiros, medo e despedidas.

Enquanto escrevo este artigo, meus pais voam de San José a Madri em um voo fretado repleto de exilados, no âmbito de um programa de reassentamento patrocinado pela Espanha, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e pela Organização Internacional para as Migrações (OIM). Fugiram desse refúgio porque estavam com medo devido a um episódio que, pela primeira vez, torno público agora que já estão seguros.

Em 1º de junho de 2024, meu pai foi vítima de uma tentativa de assassinato em Tamarindo, uma praia de Guanacaste onde vivia e complementava sua renda mensal como motorista de Uber. De madrugada, como de costume, saiu para buscar passageiros e um homem surgiu no meio da rua e abriu fogo contra ele. O carro de meu pai se chocou ao lado da via e, por sorte, quando o agressor o ameaçou com a arma, ele conseguiu arrancar a pistola e fugir correndo. Sofreu apenas um ferimento leve no braço esquerdo provocado pelo roce de um projétil. O agressor não roubou nada. O caso foi denunciado ao OIJ, mas meus pais ficaram profundamente aterrorizados.

Desde que Donald Trump voltou ao poder, a administração estadunidense suspendeu o programa de mobilidade segura e os processos de reassentamento para os Estados Unidos, deixando milhares de nicaraguenses em limbo migratório. O novo governo republicano também cancelou os fundos destinados ao programa, interrompendo assim a possibilidade de conseguir um traslado humanitário para território norte-americano.

Entretanto, países como Espanha e Canadá mantiveram abertas suas rotas de reassentamento, com apoio do ACNUR e da OIM. Isso explica por que hoje centenas de exilados seguem saindo da Costa Rica rumo à Europa ou ao Canadá.

Essa nova etapa do exílio está marcada por despedidas, porque centenas de famílias começaram a partir – por medo e pelo alto custo de vida na Costa Rica. Exilaram-se novamente, agora do próprio refúgio para onde haviam fugido.

Esse é o novo destino que nós, desterrados na Costa Rica, temos de enfrentar. E, para agravar ainda mais as preocupações, o ex-preso político Kevin Solís denunciou no início de novembro de 2025 ter sofrido um atentado em Madri, supostamente perpetrado por um pistoleiro vinculado ao regime nicaraguense. É o primeiro denunciado na Espanha, onde centenas – como meus pais e alguns amigos – buscam maior segurança.

Quão longo é o braço da repressão transnacional da dupla Ortega-Murillo? Parece que bastante. E pode atravessar o Atlântico.

Nota

O ex-ministro chileno Orlando Letelier foi assassinado em Washington, em 1976, por um agente da inteligência chilena por ordem do ditador Augusto Pinochet. Leon Trotski foi assassinado no México, em 1940, por um sicário de Stalin.

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