24 Novembro 2025
"A vitória judicial das vítimas ecoa como um lembrete de que vidas e territórios não podem ser tratados como variáveis secundárias em nome do progresso econômico", escreve Frei Betto, escritor, autor da tetralogia sobre os evangelhos – Jesus Militante (Marcos); Jesus Rebelde (Mateus); Jesus Revolucionário (Lucas); e Jesus Amoroso (João) -, editado pela Vozes, entre outros livros.
Eis o artigo.
A década marcada pelos rompimentos das barragens de Mariana, em 2015, e de Brumadinho, em 2019, deixará para sempre cicatrizes no Brasil. Consideradas os maiores desastres socioambientais da história do país, revelaram não apenas a fragilidade das estruturas de mineração e a vulnerabilidade das comunidades cercadas por essas operações. Depois de anos de batalhas judiciais, manifestações, perícias contestadas e negociações frustradas, as vítimas alcançam agora uma vitória que simboliza não apenas reparação financeira, mas também o reconhecimento de que seus direitos foram violados.
A decisão recente garante benefícios ampliados aos atingidos e representa um marco para a Justiça brasileira ao estabelecer parâmetros mais sólidos de reparação integral. Entre os pontos centrais está a ampliação das indenizações individuais, a reavaliação dos danos morais e materiais, e a inclusão de categorias que por anos ficaram à margem do processo, como trabalhadores indiretos, agricultores familiares e comunidades tradicionais, especialmente ribeirinhas e indígenas. Para muitos, é a primeira vez que a dor padecida recebe, ao menos simbolicamente, um reconhecimento institucional legítimo.
Além das indenizações, o acordo prevê um conjunto de benefícios sociais e econômicos para as regiões atingidas. Nos municípios ao longo do Rio Doce, por exemplo, foram ampliados os investimentos em saneamento, saúde pública e recuperação de áreas degradadas. Na bacia do Paraopeba, ações semelhantes incluem programas de apoio psicológico contínuo, revitalização de áreas de preservação e projetos de fomento à economia local. Os moradores ressaltam que embora nada seja capaz de trazer de volta vidas perdidas, casas e modos de viver, o fortalecimento da infraestrutura pública representa um legado essencial para garantir que outras comunidades não sofram abandono semelhante.
Outro avanço significativo ocorre no campo da responsabilização. Após anos de debates, perícias e questionamentos sobre a competência da Justiça brasileira, as decisões recentes impõem punições mais firmes às empresas envolvidas. No campo civil, as mineradoras enfrentam multas vultosas, obrigação de custear projetos de recuperação ambiental e restrições operacionais mais rigorosas. Em alguns casos, executivos respondem a processos na esfera penal, o que reforça uma lição: desastres dessa magnitude não podem ser tratados como meras falhas administrativas.
Ainda que as responsabilizações penais incluam entraves processuais, o avanço das investigações e o fortalecimento do Ministério Público e de órgãos de fiscalização representam mudanças importantes desde 2015. O país amadureceu em relação ao controle das atividades mineradoras, pressionando por leis mais duras e respostas mais rápidas. Entidades ambientais celebram a incorporação de critérios técnicos mais exigentes para a exploração e o encerramento das atividades de barragens, a estabilização da área e a restauração ambiental, de modo a eliminar sua função de reter rejeitos e água, para aumentar a segurança.
As comunidades atingidas destacam que a vitória não é apenas judicial, mas também social e política. Durante anos, moradores de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Córrego do Feijão e outras localidades se organizaram em movimentos, recorreram a tribunais internacionais, dialogaram com pesquisadores e sensibilizaram a opinião pública. A mobilização coletiva foi fundamental para evitar a repetição de tragédias e pressionar autoridades e empresas por respostas mais efetivas, inclusive pagando indenizações às famílias das vítimas.
A reconstrução das localidades destruídas avança lentamente. Entretanto, a criação de mecanismos de participação comunitária no processo decisório - algo raro antes das tragédias - é um exemplo para outras regiões brasileiras afetadas por grandes empreendimentos. Moradores passaram a acompanhar a execução das obras, sugerir ajustes, fiscalizar prazos e discutir prioridades. Na prática, nasce uma nova cultura de governança territorial: a população deixa de ser mera espectadora das decisões que moldam seu cotidiano e passa a opinar e interagir.
Do ponto de vista ambiental, os danos seguem profundos. A contaminação de rios, a perda de biodiversidade e os impactos sobre a pesca artesanal continuarão por décadas. Ainda assim, o fortalecimento das políticas de recuperação ambiental, aliado à pressão social por maior transparência, indicam um caminho possível. Programas de monitoramento permanente da qualidade da água e da fauna aquática tornam-se, hoje, parte da rotina dos órgãos ambientais - avanço que dificilmente teria ocorrido sem a visibilidade provocada pelos desastres.
As lições deixadas por Mariana e Brumadinho, contudo, vão além das fronteiras dos municípios atingidos. Expõem a necessidade urgente de repensar o modelo de exploração mineral no país, especialmente em regiões densamente povoadas ou próximas a mananciais estratégicos. Especialistas alertam que enquanto a mineração seguir como uma das fontes econômicas de Minas Gerais, será fundamental adotar sistemas de fiscalização independentes, transparência total nos dados de segurança e punições mais duras para quem descumprir normas.
Para as vítimas, a sensação predominante é de alívio, não por considerar a reparação concluída, mas por finalmente ver avanços concretos após anos de espera. Muitos ainda lidam com traumas profundos, perda de laços comunitários e dificuldades de adaptação às novas moradias. No entanto, a confiança de que a Justiça é capaz de responder a tragédias dessa escala, mesmo que tardiamente, abre espaço para um futuro marcado menos pela dor e mais pela reconstrução.
Os episódios de Mariana e Brumadinho são marcos dolorosos, mas emblemáticos. A vitória judicial das vítimas ecoa como um lembrete de que vidas e territórios não podem ser tratados como variáveis secundárias em nome do progresso econômico. As indenizações, punições e políticas de reparação representam passos importantes. Porém, a maior lição permanece: prevenir é sempre mais urgente e mais humano, do que remediar. E menos oneroso para as empresas que operam com irresponsabilidade e descaso.
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