21 Novembro 2025
"Não há compaixão nas análises econômicas capitalistas, não há preocupação com a fome real, mas apenas com a fome do acúmulo, da ganância dos mercados, aquela que não sacia os famintos de verdade, mas apenas os elimina. Que faremos? A quem pediremos ajuda?"
O artigo é de Ivone Gebara, religiosa pertencente à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, filósofa e teóloga, que lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER e que dedicou-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso.
Eis o artigo.
Todos os seres são fome. Não apenas têm fome, mas são fome de muitas coisas. Precisamos de comida dos mais variados tipos para sobreviver na existência situada, datada e até especial que caracteriza cada espécie viva. Entretanto, nós seres humanos por conta da fome desenvolvemos também uma porção de vícios. Um deles é a gula, considerada um vício capital, isto é, um vício nocivo a nossa vida e à convivência social. gula é a fome em excesso, sem controle, uma fome múltipla que é mais do que a comida que alivia e supre as necessidades do corpo. Poucas vezes falamos desse vício na sua dimensão social e política. Quando a gula atinge simultaneamente muitas pessoas, grupos inteiros que disfrutam de fartos banquetes e se inebriam com seu próprio deleite buscando conservá-lo para sempre, os sintomas da enfermidade já estão grandes demais. Uma gula de poder, de terras, de bens, de prestígio, de ser reconhecido/a como importante por suas posses agregadas à sua pessoa pode levar ao esquecimento de nossa finitude. A pessoa se aliena de si, isto é, se separa de sua condição real. Perde a noção de seus próprios limites e do quanto os limites são fundamentais para a convivência humana. Então a gula se torna coletivamente mortal, uma arma de aparência inocente, mas capaz de mover emoções violentas, acumular bens, protege-los mesmo quando não se necessita deles. Os bens tornam-se de certa forma o próprio corpo, o próprio ideal, o próprio desejo, a própria vida. Tornam-se uma espécie de doentio amor de si mesmo, um amor em que o exterior agregado dá a ilusão de preenchimento interior.
A gula na sociedade de consumo se torna igualmente um vírus nocivo coletivizado, contagioso, uma praga certamente mortal. Provoca conflitos, guerras para que a fome exagerada que vai além do estomago, atinja os neurônios, se torne paixão, vontade de poder, crença hierárquica, expansão do próprio ser no mundo.
Quem foi adoecido pelo contágio com essa praga não é capaz de ver a fome real dos outros, sua situação precária de vida, a fragilidade de sua existência errante, sempre à mercê de predadores dos mais diferentes tipos e entre eles os gulosos adictos desse mundo.
A gula é a doença da fome de alguns, da fome de excessos, da fome que guarda bens para a segunda ou terceira geração de sua própria estirpe familiar, da fome que nega até os insistentes alertas da ciência do corpo da Terra e do conhecimento de muitos povos. É a enfermidade da fome que destrói o mundo ilusionada pelo desejo guloso de ter sempre mais. É a fome que sente prazer em acumular e contar seus bens e suas moedas de ouro, suas terras e seus palácios frutos do enorme valor da astúcia e do roubo do alheio. É a fome que se torna garantia de abundância descaradamente individualista, incapaz de abrir a mão e o coração para o bem comum. Torna-se igualmente incapaz de parar com os jogos de conveniência e as mentirosas promessas frente aos que perderam seus bens através do embuste e da ganância dos que se julgam ‘bons’, ‘educados’, ‘divinamente privilegiados’ e ‘politicamente progressistas’.
Por que falar da fome na COP 30? Porque aí se negocia também as muitas fomes, aí também aparece a gula dos mercadores preocupados com seu mercado especial e estão dispostos a comprar, vender, pechinchar para manter seus bens em dia mesmo acabando com a vida do planeta. Não controlam e nem diminuem sua gula, elemento fundamental para a maior internacionalização do capitalismo. Nesse Mercado também se compram as dissidências, a vida dos que são exceção e estão sendo convidados ou melhor forçados a entrar na regra ditada pelos grandes desse mundo. E, entrar na regra significa perder sua originalidade, abraçar valores novos que vão certamente substituir os seus hábitos culturais e sua originalidade. Entrar na regra é arriscar-se a perder a vida, a cultura de seu povo. A regra é a globalização que precisa de novas terras, de novos produtos para o Mercado e de cada vez mais novos consumidores. Ao acolher esse convite quase irresistível os novos aderentes serão apenas memória do que foram antes com seu povo, sua tradição, sua história. Tudo vira produto de Mercado!
As causas indígenas, suas terras, usos, costumes, sua original luta pela sobrevivência assim como os moradores sem teto das grandes e pequenas cidades, os quilombolas abandonados à própria sorte, os que são vítimas das mineradoras, das grandes rodovias e estradas de ferro para transportar minerais são considerados intrusos, incômodos ao levantarem suas vozes nos encontros internacionais. São muitas vezes acusados de atrapalhar o bom andamento das conferências, dos participantes internacionais da COP, dos turistas e dos programas previamente estabelecidos pelos governos. Sua fome de dignidade pouco interessa frente aos grandes projetos de “salvar” o planeta. Mas de que planeta se está falando? Porque também há uma diversidade de compreensões sobre o planeta. Precisamos talvez estabelecer alguns acordos cognitivos para saber se quando falamos de planeta estamos falando da mesma entidade!
Já foi dito mais de um milhão de vezes que a doença do planeta são os seres humanos, a fome e a gula excessivas de alguns grupos que creem poder dominar a terra e preparar-se para dela extrair meios e ir depois a outro Planeta.
A fome excessiva, o vírus da gula se expandem no planeta como doença incontrolável. Novos consumidores, novos aliados se tornam necessários nessa colonização múltipla onde os nacionalismos do passado dão lugar ao produto de cada empresa multinacional para além de sua nação ou de sua proveniência. O colonialismo capitalista atual deseja apenas consumidores, mercados novos, alianças novas, crescimento para poucos. Não lhes importa a manutenção de culturas ancestrais pois podem transformá-las em folclore e assim recordá-las em espetáculos anuais em muitos lugares do mundo. Não lhes importa a culinária de um povo com seus temperos próprios porque podem transformá-las em congelados a serem vendidos nos supermercados do mundo. Tudo pode ser transformado em dinheiro virtual!
O que escrevo nesse momento já foi dito e escrito muitas e muitas vezes nas situações as mais diversas e em diferentes partes do mundo. Apenas repito tudo mais uma vez de meu jeito. O fato é que não conhecemos a velha História de nossa ganância, até esquecemos a passada e a presente forma de colonização, de escravização de pessoas no campo e nos centros urbanos. Nossa memória é curta demais quando se trata de reconhecer a nossa cumplicidade na velha destruição que segue em curso no planeta. Nos esquecemos da gula de nossos ancestrais e de seus atuais herdeiros!
Escrevemos novos Tratados, assinamos novos Acordos multilaterais. Valorizamos os papéis escritos, mas nosso coração está longe da vida que flui no cotidiano, está longe da oralidade da vida, da manualidade da existência, da sua beleza e fragilidade. Brindamos nossos novos acordos hoje, e amanhã já os esquecemos numa espécie de amnésia coletiva das cúpulas que governam o mundo, que se saúdam repetidas vezes para fazer-nos crer que farão alguma coisa juntos por nós. E nós acreditamos... Será mesmo que ainda acreditamos?
Somos de fato ‘raça de víboras’, ‘dignos de ser vomitados’ pelos ecossistemas que nada mais podem fazer a não ser apressar a nossa morte. São eles que hoje dizemos defender em teoria e em discursos calorosamente mentirosos. Porém, são eles também que se encarregarão de nossa morte, que completarão o ecocídio que iniciamos há tempos. Não ficará pedra sobre pedra, nem rios e nem florestas de pé. Nossas paixões os devorarão e nossa gula nos afogará no vômito dos produtos químicos que produzimos e ingerimos em nosso alimento.
Os seres humanos não são confiáveis! Enganam, se enganam e sentem prazer em enganar. O que se julga mais forte rirá dos outros e exultará de alegria quando suas trapaças aumentarem de valor na ‘Bolsa de Nova York’ e em outras muitas espalhadas pelo mundo.
Insensatos somos! Ignorantes, crendo-nos sábios!
Quem nos livrará da infinita repetição de nossos males? Quem enfim nos acordará sobre a necessidade da partilha, da compaixão, do cuidado? Quem nos livrará de nossa gula? Suspeito que não há respostas claras e diretas.
E se abríssemos nossos Bancos e Bolsas de Valores e as dividíssemos? E se examinássemos nosso coração e lhe perguntássemos o que de fato necessita? Perguntas!
Puro desejo poético! Os bons sentimentos já não servem mais, não produzem bens, não acumulam propriedades. Onde buscar um caminho? Talvez a Inteligência Artificial nos dê alguma resposta. Temo perguntar-lhe ou melhor me recuso a perguntar-lhe pois, não leu com o coração a multiplicação dos pães no Evangelho de Lucas ou no de João. Não percebeu a presença do princípio econômico da compaixão e da divisão do pão, aquele capaz de saciar a fome de muitos/as. Pão multiplicado capaz de satisfazer e ainda recolher e guardar doze cestos! Será que esta é ainda a nossa fé, nossa inspiração de vida?
Não há compaixão nas análises econômicas capitalistas, não há preocupação com a fome real, mas apenas com a fome do acúmulo, da ganância dos mercados, aquela que não sacia os famintos de verdade, mas apenas os elimina. Que faremos? A quem pediremos ajuda?
Mais uma vez sinto a inutilidade dos discursos que se pretendem éticos. Vão talvez comprazer alguns leitores/as, movê-los para alguma pequena iniciativa, mas a vida da maioria segue igual. Quem moverá a pedra que nos faz permanecer no túmulo capitalista? Quem entrará no sepulcro e conseguirá perceber uma luz tênue e irá anunciar que afinal podemos ter alguma esperança, podemos correr e dar-nos as mãos, plantar novas sementes... No fundo, apesar dos pesares e das muitas gulas não queremos calar a força da ressurreição cotidiana em nós, não queremos apagar a chama de vida que deseja continuar acesa. Por isso, há que gritar pela vida, por essa pequena vida de cada dia como estão fazendo os indígenas e outros pequenos grupos na COP 30. Juntemo-nos a elas/eles e dividamos nossas forças, nosso pão e nossas vozes às delas/es. Talvez algo inesperado, algo para além das estatísticas, para além dos planos governamentais possa acontecer... Talvez é uma palavra que abre esperanças!
E as esperanças nutrem a muitas mulheres e muitos homens que continuam lutando acordados, esperando os sinais do novo dia nos muitos horizontes desse maravilhoso planeta azul, nosso planeta.
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