A chacina como estratégia: A barbárie da extrema-direita e o jogo internacional. Artigo de Carlos R. S. Milani

Foto: Eusébio Gomes/TV Brasil

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04 Novembro 2025

"Com a COP 30 se iniciando em Belém, a extrema-direita – ancorada no neoliberalismo econômico, nos negacionismos de toda sorte (contra a ciência, o clima, as vacinas etc.) ou ainda em posturas de obstrução a quaisquer tentativas de regulação do Estado a fim de domar o capitalismo em suas facetas mais selvagens – procura macular a imagem de um Brasil plural, diverso e inclusivo", escreve Carlos R. S. Milani, Professor Titular de Relações Internacionais no IESP-UERJ. Autor, entre outros livros, de Solidariedade e interesse: motivações e estratégias na cooperação internacional para o desenvolvimento (Appris Editora), em artigo publicado por A Terra é redonda, 03-11-2025.

Eis o artigo.

O massacre no Rio não foi um mero desvio de segurança, mas um cálculo político da extrema-direita para romper a ordem democrática e interromper a projeção global de um Brasil que se reconectava com o mundo sob a bandeira do diálogo e da justiça climática.

A chacina de 28 de outubro, a mais letal desde a redemocratização, evidenciou uma ruptura com o estado democrático de direito no Brasil e indicou o caminho que pretende trilhar a extrema-direita rumo às eleições de 2026.

Internacionalmente, o massacre de criminosos, suspeitos e inocentes – qualificado de “operação de sucesso” pelo governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, e respaldado pelos governadores de São Paulo, Minas Gerais e Goiás, entre outros – não apenas revelou uma faceta antidemocrática de parcelas importantes da política institucional, da sociedade e da mídia brasileira. Pesquisas de opinião apontam que aproximadamente 57% dos moradores do Rio apoiaram o método, muito embora boa parte não tenha mudado a percepção de insegurança e o sentimento de insatisfação com as políticas públicas nesse setor depois de 28 de outubro. Além disso, o massacre afetou profundamente a imagem do Brasil no exterior às vésperas da COP do clima a ser realizada em Belém, entre os dias 10 e 21 de novembro.

A trajetória recente da diplomacia brasileira vinha sendo pautada por três presidências relevantes: a do G-20 em 2024, a do grupo dos BRICS e a da COP 30 do clima em 2025. Ademais, a confrontação com Washington em torno do tarifaço imposto unilateralmente por Donald Trump cedia lugar, paulatinamente, a um cenário de negociação inaugurado nos bastidores da Assembleia Geral da ONU e continuado no recente encontro entre Lula e Trump na Malásia, às margens da cúpula da ASEAN. A política externa brasileira vinha apresentando resultados positivos, com repercussão na imagem nacional de Lula e no processo de recuperação de prestígio diplomático depois da consagração do Brasil como pária internacional durante o governo de Bolsonaro. Pesquisas de opinião, inclusive, apontavam o favoritismo do atual presidente nas eleições de 2026. A extrema-direita via-se ameaçada em seus interesses eleitorais e suas capacidades de obtenção de apoio político, principalmente nos EUA.

A chacina nos complexos do Alemão e da Penha interrompeu momentaneamente essa trajetória. Seu “timing” foi cirúrgico, quase matematicamente calculado, trazendo à luz a barbárie defendida pela extrema-direita no Brasil (e no mundo). Em nome da “minha segurança” do lado de cá dos muros, bairros e fronteiras, a chacina no Rio revelou mais uma vez que, na perspectiva de governantes de extrema-direita transnacionalmente conectados, seria assim legítimo eliminar o outro – seja ele criminoso, suspeito ou inocente, pouco importa – sem processo legal, sem direito à defesa e sem julgamento público e transparente. O genocídio dos palestinos em Gaza, a invasão russa do território soberano da Ucrânia, os conflitos pouco midiáticos no Sudão e em Mianmar, a chacina contra pretos e pardos no Rio são alguns dos muitos casos a demonstrar como “outros humanos” podem ser barbaramente justiçados, tudo em nome da segurança e da paz social de alguns (auto) considerados mais humanos que os demais.

O “sucesso da operação”, como afirmou Claudio Castro, não reside em usar inteligência e evidência empírica para sufocar economicamente as redes nacionais e transnacionais do Comando Vermelho e de outras organizações criminosas. Não reside, tampouco, em combater as causas da insegurança, nem sequer em produzir mais segurança, de modo coordenado entre as esferas federal, estadual e municipal, para quem reside na favela ou fora dela. O êxito momentâneo, à custa do estado de direito e de vidas humanas menosprezadas, foi gerar um fato político novo, interromper a trajetória ascendente de um projeto político que, embora atravessado de contradições, tem-se pautado mais pelo diálogo e pelo reconhecimento de que, em territórios onde os direitos humanos são diariamente violados, a justiça não pode se destinar exclusivamente a quem ali não reside. Seguindo princípios da nossa Constituição de 1988 e do direito internacional, uns humanos não podem importar mais que outros para definirmos o que é justo.

Outra dimensão internacional fundamental do massacre a que assistimos no Rio foi a reconexão da extrema-direita brasileira, de modo ainda mais intenso na conjuntura política, com suas redes e movimentos nos EUA, na América Latina e no Oriente Médio. O governador do Rio de Janeiro, berço do bolsonarismo no Brasil, apelou ao reconhecimento de organizações criminosas como narcoterroristas e procurou legitimar possível intervenção de Washington, amplamente demandada pelo bolsonarismo, em nome do combate ao narcoterrorismo no Brasil. O desespero da extrema-direita é tal que nem sequer esconde o quanto suas bandeirolas de defesa da nação são, na verdade, puro menosprezo pela soberania e pela defesa dos interesses brasileiros nas relações internacionais.

Com a COP 30 se iniciando em Belém, a extrema-direita – ancorada no neoliberalismo econômico, nos negacionismos de toda sorte (contra a ciência, o clima, as vacinas etc.) ou ainda em posturas de obstrução a quaisquer tentativas de regulação do Estado a fim de domar o capitalismo em suas facetas mais selvagens – procura macular a imagem de um Brasil plural, diverso e inclusivo. Tentando ameaçar diretamente a busca por liderança ambiental e climática da diplomacia brasileira, a extrema-direita antinacionalista e obscurantista visa a retirar da pauta política e midiática a luta por justiça climática, a defesa dos direitos de todas as formas humanas e não-humanas de vida, bem como a sustentabilidade radicalmente necessária nos novos modelos de desenvolvimento a serem construídos, debatidos e implementados a partir de Belém. Que o espírito de Belém se sobreponha aos interesses eleitoreiros e negacionistas do governo atual do Rio de Janeiro e seus defensores, sejam eles brasileiros ou não.

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