30 Outubro 2025
A operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro deixou pelo menos 132 mortos, segundo balanço divulgado nesta quarta-feira pela Defensoria Pública, após o envio de cerca de 2.500 policiais aos complexos de favelas da Penha e do Alemão, na zona norte da cidade.
O governo regional, liderado por Cláudio Castro, aliado de Bolsonaro, defendeu a intervenção como um "sucesso" contra o Comando Vermelho, uma das principais facções criminosas do Brasil, que classifica como organização "narcoterrorista", nos moldes de Trump. A dimensão da operação, a falta de coordenação com o governo federal e a retórica que a envolve revelam um contexto político mais complexo, onde se cruzam os interesses dos apoiadores de Bolsonaro, o controle territorial nas periferias e a retórica "narcoterrorista" que a direita busca consolidar regionalmente.
Para aprofundar essas tensões, o Página|12 conversou com Sabina Frederic, ex-ministra da Segurança Nacional e especialista em políticas de defesa e segurança na América Latina, que analisou o papel das milícias, as relações de poder por trás da operação e a forma como a violência estatal no Brasil se insere em uma disputa política de âmbito continental.
A entrevista é de Mateo Nemec, publicada por Página|12, 30-10-2025.
Eis a entrevista.
Como você interpreta essa intervenção policial?
Acho que existem vários níveis para entender o que aconteceu, para explicar o massacre. Em termos de número de mortos, é o pior das últimas décadas no Brasil, superando até mesmo o Carandiru, que também foi a origem do PCC, o Primeiro Comando da Capital, a organização de narcotráfico mais poderosa do país.
Qual é a origem da violência?
O Comando Vermelho teve origem na década de 1970 na prisão de Cândido Mendes, na Ilha Grande (Rio de Janeiro). Durante a ditadura, guerrilheiros presos conviviam com criminosos comuns, e houve uma troca de conhecimentos: presos políticos ensinavam organização, e criminosos comuns ensinavam técnicas de sobrevivência no crime. Eles controlam grande parte das prisões, em alguns casos substituindo o próprio sistema prisional, e essa estrutura permanece em vigor desde a década de 1980.
Para realmente entender o que está acontecendo hoje, é preciso observar outro fenômeno, pouco conhecido na Argentina: o das milícias. Não se tratam de grupos paramilitares no sentido tradicional; não são liderados pelas Forças Armadas ou pela Polícia Militar, mas sim compostos por ex-policiais, policiais estaduais, às vezes ex-militares ou civis. Nos últimos 25 ou 30 anos, ganharam terreno e hoje controlam aproximadamente 50% dos territórios dominados por organizações criminosas. Frequentemente atuam como força de choque contra organizações como o Comando Vermelho.
Quão perigosas são essas organizações?
Elas se tornaram verdadeiras organizações de intimidação: sequestram e extorquem traficantes de drogas e controlam serviços básicos nas favelas — gás, Wi-Fi, TV a cabo, água — em troca de propina. Muitos as chamam abertamente de “organizações de extermínio", já que operam pressionando traficantes de drogas a confiscarem seus lucros por meio da violência. São grupos poderosos, intimamente ligados ao movimento de Bolsonaro. Lembramos o caso de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada por milicianos ligados a esse setor político.
Essa operação pode ser interpretada como uma tentativa de enfraquecer o narcotráfico para fortalecer as milícias?
Há dois elementos centrais: um político e o outro relacionado ao poder econômico. Por um lado, há a disputa pelas organizações criminosas das quais os apoiadores de Bolsonaro também lucram. Esse massacre pode fazer parte de uma estratégia para enfraquecer o Comando Vermelho naquele território, possibilitando assim o avanço das milícias. Desde 2007 ou 2008, as milícias vêm confrontando e extorquindo as organizações mais poderosas, enfraquecendo-as e negociando seu retorno em troca de dinheiro.
É uma forma de extrativismo criminoso, uma teia de corrupção difícil de imaginar na Argentina. Nesse contexto, o que Cláudio Castro fez foi uma operação extremamente sangrenta e arriscada, realizada sem supervisão judicial, que resultou em mais de 130 mortes em um verdadeiro estado de emergência. Este não é um incidente isolado: em 2010, houve um ataque semelhante no Complexo do Alemão. Essas operações geram insegurança em todo o Rio, porque aqueles que vivem e trabalham nesses complexos sustentam uma parcela significativa do turismo e dos serviços domésticos no centro da cidade.
Como as tensões políticas no Brasil influenciaram o massacre?
É aí que entra o segundo elemento. Castro pertence ao partido de Bolsonaro, que vem obstruindo o governo em todos os níveis possíveis. E neste domingo, Lula da Silva se reuniu com Donald Trump na Malásia para negociar a suspensão das tarifas sobre o Brasil que Trump havia imposto como punição pela “perseguição política” de Bolsonaro. O encontro foi favorável a Lula. Mas dois dias depois, ocorreu o massacre. É impressionante, principalmente porque Lula não estava no Brasil.
O filho de Bolsonaro veio a público defender o governador e criticar o governo federal, embora ministros de Lula tenham afirmado que não houve nenhum pedido de apoio. Para que o governo federal interviesse, o governador teria que invocar o mecanismo de “garantia de lei e ordem”, algo que nunca aconteceu. Por isso é falso que o governo federal o “deixou em paz”. Ele chegou a oferecer o sistema prisional para abrigar os detidos. Enquanto isso, organizações sociais e de direitos humanos no Rio estão mobilizadas, exigindo a renúncia do governador, que alega que a operação foi um "sucesso" no combate ao "narcoterrorismo".
Essa postura de "combate ao narcoterrorismo" busca se alinhar aos Estados Unidos ou é mais uma questão política interna?
É difícil imaginar uma intervenção estrangeira no Brasil: o país possui enorme força regional e global. Mas sim, essa narrativa de "narcoterrorismo" se alinha com a abordagem de Trump e sua cruzada no Caribe. Acredito que o motivo subjacente da operação seja político: desafiar as negociações de Trump com Lula.
A mensagem de Bolsonaro seria: "Representamos a luta contra o narcoterrorismo, enquanto Lula protege os traficantes de drogas". É a mesma retórica que Uribe usa na Colômbia. Durante seus primeiros mandatos, Lula tentou pacificar as favelas com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), uma política que reduziu a violência, especialmente durante grandes eventos (Jogos Pan-Americanos, Copa do Mundo, Olimpíadas). Mas o Brasil não vivenciou um processo de justiça social como o peronismo na Argentina. A pobreza lá está associada ao total desapego do Estado, a uma miséria desprovida de qualquer memória de direitos.
E quanto ao problema em nosso país?
Na Argentina, temos outros problemas, mas não essa história de exclusão brutal. O que existe na Argentina é algo completamente diferente: uma operação de lavagem de dinheiro comandada pelo Comando Vermelho, descoberta em 2023 pela Polícia Federal na Operação Crypto. Uma base foi descoberta em Nordelta, e estima-se que eles tenham lavado cerca de US$ 420 milhões com ligações com a Bolívia e a China. Isso demonstra a importância de fortalecer as investigações financeiras. Mas a escala e a desigualdade no Brasil são muito maiores. É o país mais desigual da América Latina, e essa desigualdade alimenta todo esse fenômeno. É um país que aboliu a escravidão relativamente tarde, quase na década de 1930, e permanece profundamente racista. Hoje ouvi Benedita da Silva, uma congressista afro-brasileira de 80 anos do Partido dos Trabalhadores (PT), que viveu a maior parte da sua vida no país, dizer que a operação também foi uma expressão do racismo estrutural do Estado brasileiro. As favelas são habitadas por populações afro-brasileiras e mestiças, historicamente excluídas, e são as primeiras a serem vítimas da violência.
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