25 Outubro 2025
"Nos Evangelhos, Jesus nunca cura "em geral", porque cada cura é o resultado de um encontro singular. Ele chama pelo nome, olha nos olhos, toca as feridas. A humanização do cuidado nasce desse toque, dessa proximidade, dessa resistência que nenhum algoritmo pode substituir", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano, em artigo publicado por publicado por La Repubblica, 17-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Nosso tempo celebra com devoção o poder dos números, a precisão dos algoritmos, a neutralidade das estatísticas. Trata-se de uma verdadeira idolatria que tende a confundir o cientificismo com uma nova forma de religião.
A crença que a sustenta é a tradução exaustiva da vida em um formulário anônimo: as vivências emocionais tornam-se gráficos, os corpos funções, os desejos reflexos condicionados, o pensamento inteligência artificial. Cada parte do ser humano pode ser medida, calculada e traçada.
Mas nessa nova idolatria perdeu-se a dimensão humana do cuidado, que não pode ser identificado num procedimento anônimo, porque em primeiro lugar é um ato simbólico que reconhece a natureza insubstituível de cada singularidade. Curar não significa corrigir um mau funcionamento ou normalizar uma irregularidade, mas escutar um sujeito, reconhecer seu nome próprio e sua história. Nisso, a prática da psicanálise oferece, sem dúvida, um paradigma irredutível ao cientificista: acolher um paciente significa, antes de tudo, dar espaço à sua palavra. O instrumentário clínico-terapêutico não pode ser utilizado se não em referência a essa postura fundamental.
No entanto, quando, como Franco Basaglia enfaticamente enfatizou, a medicina, ou mais genericamente, qualquer forma de relação de ajuda, remove essa postura, ela inevitavelmente se transforma em um exercício de poder.
Então, o caráter impessoal do olhar do médico prevalece sobre o reconhecimento da singularidade do paciente, que se torna necessariamente um número de prontuário, um código fiscal, um caso clínico. O encontro que é o fundamento de todo ato de cuidado se reduz, assim, a uma transação: serviço e recebimento, sintoma e solução, pergunta e algoritmo.
É aqui que a incúria encontra seu terreno mais fértil: o nome próprio é substituído pelo anonimato do número. A incúria, de fato, não é tanto a ausência de cuidado, mas sua deformação impessoal. Trata-se de um cuidado que apagou o rosto do outro junto com sua palavra, que impõe protocolos e procedimentos padronizados em vez de analisar a subjetividade do paciente. Prevalece a lógica unidirecional e anônima do algoritmo – uma lógica sem nome, sem corpo, sem desejo – que suprime os aspectos singulares que, ao contrário, tornam a história de um paciente única. Nessa perspectiva, "cuidar" significa – nas relações individuais e na vida coletiva das instituições – reconhecer, em primeiro lugar, a impossibilidade de comprimir o próprio nome em um número. É um gesto de resistência contra a tendência generalizada do nosso tempo de dissolver o singular no coletivo, de apagar o rosto por trás da tela, de reduzir o sofrimento a um dado estatístico. Em termos clínicos, essa hegemonia sinaliza a prevalência distorcida do código paterno – eficiência, impessoalidade, especialização, técnica – sobre o materno.
De fato, cuidar evoca a figura da mãe, que constitui o eixo simbólico de todo ato de cuidado. É a mãe que mostra que cada filho é filho único.
Nesse sentido, o amor materno exclui, por princípio, qualquer forma de serialidade. Se cada filho é filho único aos seus olhos, não o é na ordem do número, mas apenas em sua existência inigualável.
O código materno em uma relação de cuidado, em uma família ou em uma instituição, é aquele código que salvaguarda a natureza particularizada de cada cuidado. O que Winnicott definia como "preocupação materna primária" sinaliza precisamente o impulso da mãe em proteger a vida singular do filho, sustentá-la, acalentá-la, nunca permitir que ela caia no anonimato.
Uma mãe suficientemente boa é aquela que não se limita a satisfazer as necessidades primárias de sua criança oferecendo seu seio, porque ela sabe bem que o desejo humano não se nutre apenas de objetos, mas sobretudo de signos, aqueles signos que reconhecem a natureza insubstituível do sujeito. Nessa perspectiva, a ativação do código materno é o que humaniza os cuidados, porque a lógica que o inspira não é a da eficiência, mas a da atenção singular. É o olhar que chama pelo nome, que reconhece a fragilidade sem julgá-la, que acolhe a dependência do mais frágil e do inerme como condição constitutiva da existência. É desse código que nossas instituições deveriam haurir inspiração, traduzindo o cuidado em responsabilidade pública. Mas é justamente nesse nível que hoje se manifesta a ruptura mais profunda.
As instituições criadas para humanizar a vida correm o risco de se tornarem espaços de anonimato administrado, onde a relação viva é substituída pelo formulário e a palavra pelo protocolo. Tomemos o exemplo da escola, que deveria proteger o aspecto singular de cada aluno. Ela é frequentemente reduzida a uma máquina de avaliação que mede, classifica e exclui. Nessa perspectiva, George Steiner a definia como destruidora do devir.
Trata-se de uma desumanização silenciosa que tende a desativar o código materno. O médico produz laudos, o professor compila tabelas, o psicólogo atualiza plataformas digitais. Dessa forma, corre-se o risco de ser arrastado para um vórtice burocrático que, ao mesmo tempo em que garante vigilância e controle, nos fatos acaba gerando uma distância desumana. Em vez disso, deveríamos lembrar que cada gesto de cuidado é, em primeiro lugar, um ato de reconhecimento.
Nos Evangelhos, Jesus nunca cura "em geral", porque cada cura é o resultado de um encontro singular. Ele chama pelo nome, olha nos olhos, toca as feridas. A humanização do cuidado nasce desse toque, dessa proximidade, dessa resistência que nenhum algoritmo pode substituir.
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