Da sociedade disciplinar à sociedade do desempenho. Artigo de Robson Ribeiro

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25 Outubro 2025

"A verdadeira liberdade não está em poder tudo, mas em poder parar."

O artigo é de Robson Ribeiro, teólogo, historiador e filósofo.

Eis o artigo.

A história das sociedades humanas é também a história de suas formas de controle. Desde os tempos antigos, o poder assumiu múltiplas expressões: visível ou silencioso, coercitivo ou sedutor, punitivo ou produtivo. Com Michel Foucault e Byung-Chul Han, o pensamento filosófico moderno e contemporâneo mergulha nas profundezas dessas transformações, mostrando que o poder não desaparece, ele apenas se reinventa. Ambos os pensadores revelam que o domínio sobre o ser humano não se dá apenas por meio das instituições, mas sobretudo pela internalização de mecanismos que moldam a subjetividade. Foucault, no século XX, analisa o poder que disciplina e normaliza; Han, no século XXI, identifica o poder que seduz e exaure.

Em Vigiar e Punir, Foucault descreve a transição de uma sociedade que castigava corpos para uma sociedade que os disciplina. O suplício público, espetáculo de dor e autoridade, cede espaço a um poder mais silencioso e constante, exercido nas escolas, fábricas, hospitais e prisões. A obediência deixa de ser imposta pela violência e passa a ser construída pela vigilância e pela norma. Surge, assim, o sujeito disciplinar: aquele que internaliza o olhar do poder e se conforma às regras antes mesmo de ser punido. O corpo se torna dócil, o comportamento previsível, e a sociedade, organizada por mecanismos de controle invisíveis.

A disciplina, para Foucault, é uma tecnologia política do corpo. Ela não apenas reprime, mas produz utilidade, eficácia e rendimento. É um poder que se infiltra nos gestos, nos hábitos e até nos pensamentos. A escola, por exemplo, ensina a obediência por meio de filas, horários e notas; a fábrica transforma o corpo em máquina; o hospital regula o tempo e o espaço do doente. Nada escapa ao olhar vigilante do poder. O indivíduo aprende a comportar-se como se sempre estivesse sendo observado. O olhar do outro é internalizado, e o medo da punição se transforma em autocontrole.

Contudo, o século XXI revela uma nova configuração social. As prisões continuam existindo, as escolas continuam ensinando, mas o poder já não precisa de grades ou olhos visíveis. É nesse ponto que entra Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano que vê o poder contemporâneo como algo mais sutil: não um poder que proíbe, mas um poder que convida; não o que diz “não podes”, mas o que insiste “tu podes”. Para Han, vivemos na sociedade do desempenho, marcada pela ilusão da liberdade e pela autoexploração.

O sujeito contemporâneo acredita ser livre porque não obedece mais a um mestre, mas a si mesmo. Ele é empreendedor de si, gestor de sua própria existência, e busca constantemente provar seu valor. No entanto, ao tentar ser sempre mais produtivo, eficiente e visível, transforma-se em seu próprio opressor. A liberdade se converte em compulsão, e o “podes” se transforma em um novo “deves”. O resultado é um ser humano exausto, fragmentado, incapaz de descansar, pois se sente culpado por cada momento improdutivo.

Enquanto Foucault descrevia uma sociedade do controle externo, Han descreve a internalização total do poder. Já não precisamos de um vigia: somos o nosso próprio carcereiro. A sociedade do desempenho não oprime por proibição, mas por sedução. Ela oferece a liberdade de escolha, mas essa liberdade se torna um fardo, pois exige constante superação. A norma cede lugar à meta, e o castigo é substituído pela sensação de fracasso. O indivíduo, ao não atingir o padrão ideal, sente-se insuficiente e é essa sensação que o aprisiona.

Nesse sentido, o poder descrito por Han é ainda mais profundo que o de Foucault. Ele não age sobre o corpo, mas sobre a psique. É um poder psicológico, emocional, que produz o que o autor chama de violência neuronal. O sujeito não é mais reprimido, mas esgotado. Sua alma se torna o campo de batalha da produtividade. A sociedade, que antes era disciplinar, agora é do cansaço, ou seja, uma sociedade que adoece por excesso de positividade, por querer sempre mais, por não suportar o limite.

Diante disso é importante observar que a sociedade do desempenho nasce justamente da sociedade disciplinar. Não há uma ruptura, mas uma continuidade. O poder apenas muda de estratégia. Se antes era o olhar do outro que controlava, agora é o olhar sobre si mesmo. Se antes o indivíduo temia o castigo, agora teme o fracasso. Se antes obedecia à norma, agora obedece à meta. Assim, o poder se torna mais eficiente, pois já não precisa ser imposto: é desejado.

O que se perde nesse processo é a capacidade de pausar, de contemplar, de ser sem a necessidade de produzir. A contemplação, que sempre foi o espaço da filosofia, é substituída pela pressa, pela competição e pela lógica da visibilidade. Byung-Chul Han chama essa incapacidade de parar de “crise da atenção”. O sujeito moderno não suporta o tédio, e por isso não se reconhece mais como ser reflexivo, apenas como ser ativo, produtivo e mensurável.

Foucault e Han, portanto, convergem na denúncia de uma sociedade que fabrica subjetividades adaptadas ao poder. Ambos mostram que o poder não é algo que se possui, mas algo que se exerce. O homem de hoje acredita ser livre, mas vive preso às próprias expectativas.

Essa reflexão adquire um sentido ainda mais profundo quando pensamos na educação. A escola, que no modelo disciplinar foi um espaço de adestramento e vigilância, corre o risco de se tornar, na sociedade do desempenho, um espaço de competição e meritocracia. Em ambos os casos, perde-se o verdadeiro sentido do ato de educar: formar seres humanos capazes de pensar, sentir e conviver. O papel do professor, nesse cenário, é resistir à lógica do rendimento e resgatar a dimensão ética e humana da formação.

Educar, portanto, é ensinar a suportar o limite, a valorizar o tempo, a recuperar o silêncio. É ajudar o estudante a compreender que a vida não é apenas desempenho, mas experiência. Que a liberdade verdadeira não está em poder tudo, mas em reconhecer o valor do não. O pensamento, como dizia Foucault, é uma forma de resistência; e como diria Han, é também uma forma de cura, ou seja, contra o excesso, contra o ruído e contra o cansaço.

A passagem da sociedade da norma à sociedade do desempenho revela que o poder não desapareceu: ele apenas se interiorizou. Antes moldava corpos, hoje, molda consciências. Se outrora éramos vigiados pelo olhar alheio, agora somos controlados pelo espelho do próprio ego. E talvez o maior ato de resistência contemporânea seja o de desacelerar, pensar e recuperar o sentido do humano.

A verdadeira liberdade não está em poder tudo, mas em poder parar.

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