17 Outubro 2025
"Mártires são poderosos. Suas mortes podem imbuir uma causa com uma aura quase sagrada. Eles podem unir pessoas em apoio a essa causa — e contra um inimigo. Podem ser usados para justificar a violência".
O artigo é de Katrin Bennhold, jornalista, publicado no boletim diário do New York Times e reproduzido por Settimana News, 16-10-2025.
Eis o artigo.
Quando Charlie Kirk foi assassinado e o presidente Trump o chamou de mártir, como alemão, lembrei-me de Horst Wessel. Wessel era um jovem membro da SA nazista morto pelos comunistas. Ele foi celebrado em discursos, ruas foram batizadas com seu nome, e a música dedicada a ele se tornou uma ferramenta de propaganda tão poderosa que ainda é proibida na Alemanha.
Os dois não eram iguais: Wessel era um bandido uniformizado, Kirk era não violento. Mas ambos ilustram o poder simbólico dos mártires políticos e o que pode ser realizado em seu nome. O que torna um mártir eficaz?
Não são apenas os conservadores americanos que tentam imortalizar Charlie Kirk. Seu nome foi o grito de guerra em um grande comício de extrema-direita em Londres. Sua morte foi o tema dominante em uma conferência de um partido de direita em Madri. Até o prefeito de Lima, no Peru, organizou uma comemoração, comparando-o aos mártires de Roma que ajudaram a difundir o cristianismo.
O "santo MAGA"
Nos Estados Unidos, a consagração de Kirk como um "santo MAGA" foi rápida.
Há propostas para nomear rodovias em sua homenagem e cunhar moedas com sua imagem. Oklahoma está considerando uma lei que exigiria que todas as universidades estaduais erguessem uma estátua dele. Ontem, no que seria seu trigésimo segundo aniversário — e que, segundo o Congresso, era oficialmente o Dia Nacional em Memória de Charlie Kirk —, o presidente Trump realizou uma cerimônia para lhe conceder postumamente a Medalha Presidencial da Liberdade.
Mártires são poderosos. Suas mortes podem imbuir uma causa com uma aura quase sagrada. Eles podem unir pessoas em apoio a essa causa — e contra um inimigo. Podem ser usados para justificar a violência.
Segundo especialistas, há alguns elementos recorrentes que fazem de uma pessoa um “bom mártir”, e Kirk preenche todos eles.
Três ingredientes
George Floyd foi um mártir eficaz. Ashli Babbitt, muito menos.
Se você nunca ouviu falar de Babbitt, é porque as tentativas de promovê-la após sua morte não conseguiram o impacto que muitos da direita esperavam.
Babbitt morreu em 06-01-2021 durante o ataque ao Capitólio. Ela foi morta por um policial enquanto tentava arrombar uma porta que era uma das últimas barreiras entre os manifestantes e os membros do Congresso.
Trump e outras figuras proeminentes do movimento MAGA descreveram sua morte como a execução de uma "inocente". Por um tempo, hashtags e camisetas com seu nome proliferaram nos círculos do QAnon e da extrema-direita, onde ela ainda é venerada como uma mártir.
Mas os esforços para ampliar seu apelo além daquele ambiente nunca realmente deram certo.
Floyd, um homem negro, morreu de bruços no asfalto, enquanto um policial branco pressionava seu pescoço com o joelho. "Não consigo respirar", as palavras que ele repetiu em seus momentos finais, tornaram-se o slogan do movimento Black Lives Matter. Pessoas ao redor do mundo marcharam em seu nome. O local de sua morte, em frente a uma loja posteriormente renomeada em sua homenagem, continua sendo um local de peregrinação. Seus murais estão por toda parte.
O que explica a diferença
Perguntei ao historiador Tom Holland, que estudou o martírio cristão, quais elementos os mártires mais carismáticos têm em comum. Ele identificou três.
- Primeiro: uma morte pública, dramática e "inocente".
A vitimização de Floyd nunca foi verdadeiramente questionada. O mundo inteiro assistiu ao vídeo de seus últimos suspiros. A morte de Babbitt, no entanto, dividiu a direita. Republicanos proeminentes, como o senador Lindsey Graham, chamaram os manifestantes de 6 de janeiro de "terroristas domésticos". O então presidente da Câmara, Kevin McCarthy, disse que o policial que atirou nela "cumpriu seu dever".
- Segundo: a morte deve estar ligada a uma causa.
Mártir em grego significa testemunha: os primeiros mártires cristãos foram testemunhas de Deus. Tanto Babbitt quanto Floyd morreram por uma causa. No primeiro caso, Stop the Steal; no segundo, Black Lives Matter.
Mas as diferenças ressurgem no terceiro critério identificado por Holland.
- Terceiro: os mártires precisam de um movimento poderoso.
Somente movimentos organizados têm os recursos para dar significado à morte e contar sua história de uma forma que galvanize as massas.
Em maio de 2020, quando Floyd morreu, a esquerda americana estava se mobilizando para a eleição presidencial daquele ano. Quando Babbitt morreu, Trump havia perdido a eleição e estava a poucas semanas de deixar a Casa Branca. O movimento MAGA ainda não tinha uma direção clara.
Uma ferramenta poderosa
A morte de Kirk, observa Holland, atende a todos esses critérios. Ele foi morto enquanto debatia com estudantes universitários. Ele já estava ocupado recrutando jovens eleitores para a causa MAGA. E ele é lamentado por um movimento mais forte do que nunca.
As ondas de choque de sua morte já ultrapassam estátuas e memoriais. Tornou-se uma poderosa ferramenta política. O governo usou sua morte para justificar a repressão à liberdade de expressão e a grupos progressistas. Ameaçou deportar qualquer um que banalizasse o assassinato de Kirk e revogou os vistos de alguns estrangeiros.
Durante um episódio do Charlie Kirk Show, apresentado pelo vice-chefe de gabinete da Casa Branca, Stephen Miller, o funcionário declarou que o governo está "em guerra com a esquerda" e prometeu "identificar, interromper, desmantelar e destruir" o que ele chamou de "um vasto movimento terrorista doméstico".
“Faremos isso”, disse ele, “em nome de Charlie”.
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