16 Outubro 2025
As categorias do século XX estão arquivadas. Mas muitas de suas conquistas também. O debate iniciado pelo discurso de Baricco continua.
O artigo é de Corrado Augias, jornalista, escritor italiano e ex-deputado do Parlamento Europeu, em artigo publicado por La Repubblica, 14-10-2025.
Eis o artigo.
Acompanhei com grande interesse o debate, iniciado com a habitual maestria sedutora de Alessandro Baricco, seguido pelas respostas sólidas de Michele Serra e Stefano Massini. Já era hora de alguém tirar os olhos das piadas de Salvini e das invectivas da nossa primeira-ministra e perguntar quem somos e para onde presumivelmente estamos indo.
Expresso a opinião de um nonagenário que justapõe, a partir de uma perspectiva quase centenária, as de duas eras geracionais distintas expressas por colegas que me precederam. Tive o melancólico privilégio de observar em primeira mão acontecimentos que muitas pessoas vivas tiveram de se limitar a ler em algum lugar. Confesso que compartilho a ideia de que o século XX realmente acabou e deixou pouco para trás. Esse estranho século de duas caras entrou para a história com uma primeira metade terrível, marcada por duas guerras civis europeias e três ditaduras ferozes; no entanto, também conheceu uma segunda metade em que a paz prevaleceu (pelo menos dentro das fronteiras da Europa) e assistimos à progressiva aquisição de direitos e garantias para os indivíduos nunca antes conhecidos. O Estado de bem-estar social foi provavelmente o ápice do pensamento civil alcançado pelo velho continente. As três famosas palavras, "liberdade, igualdade, fraternidade", nasceram aqui e só poderiam ter nascido aqui, dada a forma como o mundo estava estruturado no fim do século XVIII. Três palavras que eram o núcleo duro e brilhante do que chamamos de civilização ocidental.
Hoje, as coisas não são mais como as conhecemos. Os ideais que o lema triplo personificava declinaram em grande parte do mundo. O que antes pareciam conquistas das quais jamais haveria reversão foram abolidas, diminuídas e questionadas, mesmo onde nasceram.
Permitam-me dar um passo atrás. Toda grande revolução sempre trouxe transformações profundas e mudanças drásticas. Foi o caso da Revolução Cristã, da invenção da tipografia móvel e da primeira revolução industrial. As maravilhas do pensamento e as conquistas da tecnologia sempre provocaram convulsões políticas, incluindo convulsões revolucionárias decisivas.
Qual é a novidade hoje que justifica a sensação de uma ruptura definitiva? Nunca antes na história da humanidade tantos fatores concomitantes convergiram para moldar a vida de sociedades e indivíduos. O que vem acontecendo nas últimas décadas é uma combinação de novidades sem precedentes em velocidade e alcance, um choque terrível para uma condição que parecia consolidada para sempre.
Não foi assim. A forma democrática do Estado, a melhor já desenvolvida (a menos ruim, se preferir), foi questionada e está vacilando nos dois continentes — Europa e Estados Unidos — que favoreceram seu nascimento. É inútil perguntar se Trump e seus deploráveis ministros são "fascistas"; a pergunta é antiga e inadequada. O mesmo, em menor escala, se aplica à Itália. Eles são fascistas e, no entanto, não são; eles sentem o vento e ajustam as velas. Esse vento diz que, quando bilhões são movidos ao apertar um botão, enquanto um parlamento leva meses para aprovar um orçamento, o jogo está perdido desde o início e o botão — por assim dizer — venceu. Os complexos procedimentos parlamentares estão, em muitos casos, fora de lugar e desatualizados, e ninguém ousa considerar quais ferramentas usar para substituí-los, porque o espectro do homem (ou mulher) forte que atormentou a primeira metade do século passado ainda está muito próximo e paira sobre nós.
Por enquanto, a tecnologia bruta prevalece. Do dispositivo "inteligente" que cada um de nós tem no bolso, que nem podemos chamar de telefone porque é um milagre, às conquistas ilimitadas da Inteligência Artificial, pela primeira vez, os humanos estão sendo progressivamente superados no que antes era seu território típico: a capacidade de conectar diferentes dados para derivar uma síntese (cogito ergo sum). Hoje, o mens cogitans está além de nós, substituindo-nos e superando-nos em velocidade numa proporção humilhante de um para cem, um para mil, um para quem sabe quanto.
A tecnologia faz tudo isso sozinha, sem o indispensável apoio da ética. Acredito que a última vez que uma invenção/descoberta sensacional (e aterrorizante) foi acompanhada de dúvidas agonizantes sobre sua legitimidade moral foi quando um pequeno grupo de cientistas, na solidão de Los Alamos, se perguntou se era permitido desenvolver uma arma com potencial tão devastador. Hoje, testemunhamos todos os dias alguma figura poderosa do mundo afirmar alegremente que, se as circunstâncias exigissem, o uso de armas nucleares (táticas, vale acrescentar) poderia se tornar inevitável.
Os cavalos da técnica, sem guia, são lançados a galope e guardam uma semelhança assustadora com os do Apocalipse.
Chegando aqui, faço uma pausa. Estou convencido de que a ruptura da nova era com os costumes, a política e a antropologia do século XX é total e definitiva. Nada é como antes, mas nós, a velha humanidade, ainda estamos aqui. Até onde sei, desde o século V a.C., os seres humanos sempre pensaram, fizeram, sofreram e desfrutaram das mesmas coisas. Alguns dizem que novas ferramentas estão, na verdade, mudando nossa antropologia; eu também acredito. Novos seres humanos surgirão; na verdade, eles já estão aqui. Serão piores ou melhores do que nós? Iguais e diferentes, eu diria, assim como somos iguais e diferentes dos antigos gregos. Quanto ao resto, não creio que haja uma resposta possível hoje.
Leia mais
- A despedida do século XX pelos jovens nas praças. Artigo de Alessandro Baricco
- É a era da tecnologia que apagou história e memória. Artigo de Umberto Galimberti
- Por que o Ocidente acabou com o século XX. Artigo de Stefano Massini
- É por isso que não confio no século que nasce. Artigo de Michele Serra
- Na terra nua como o santo de Assis. Artigo de Corrado Augias
- “No novo mundo que está nascendo não há cultura que alimente a política”. Entrevista com Corrado Augias
- “Vivemos uma ruptura civilizatória”. Entrevista com Éric Sadin
- “Não podemos deixar a ética da IA e a democratização da IA para as Big Techs”. Entrevista especial com Mark Coeckelbergh
- “Devemos desmistificar a tecnologia e ouvir as pessoas que estão sob os escombros do progresso”. Entrevista com Ruha Benjamin
- No começo e no “fim” era o verbo: as implicações da IA na condição humana. Entrevista especial com Lucia Santaella