09 Outubro 2025
"Em tempos calculistas e avessos ao risco, é difícil ver a vida como um processo de conversão, cura e mudança. É contracultural viver de mãos vazias e pisar esta terra castamente, livre da vontade de dominar. Podemos pensar que este ideal luminoso está tão fora do nosso alcance que deixamos de lutar por ele e definhamos na escuridão dum casulo", escreve Erik Varden, escritor católico norueguês e bispo da Prelazia de Trondheim, em trecho do livro "Castidade: a reconciliação dos sentidos", publicado por 7Margens, 06-10-2025.
A mais recente obra de Erik Varden – monge trapista e bispo norueguês nomeado pelo Papa Francisco em 2019 para a diocese norueguesa de Trondheim – tem como título uma palavra que pode parecer intimidante: castidade. Mas saberemos o que ela significa realmente? “Não designa uma negação do sexo. Nem tampouco equivale a celibato”, pode ler-se na apresentação do livro, cuja edição portuguesa chega brevemente às bancas, com a chancela da Lucerna.
Ao longo de 168 páginas, Erik Varden – que cresceu numa família protestante não praticante – procura mostrar que a castidade, como orientação unificada dos sentidos, é uma qualidade apreciável que dá beleza à humanidade.
Recorrendo a um leque alargado de referências às Escrituras, à literatura, à música, à pintura e à escultura, o monge norueguês – que está em Lisboa para duas conferências –, explica que “tornar-se casto é deixar de ser dilacerado por paixões e desejos, passando a vê-los reconciliados, realizados. Assim, através de tensões criativas entre o corpo e o espírito, o masculino e o feminino, a ordem e a desordem, a paixão e a morte, alcançamos uma nova forma de integridade”.
Eis o artigo.
Os Padres do Deserto não eram, no seu conjunto, dualistas hostis ao corpo. O Abba Antão exprime a tradição dominante quando diz que os impulsos do corpo, em si mesmos, são naturais e moralmente neutros. Contudo, uma pulsão passional distorcida pode levar esses impulsos a desviarem-se da natureza. Essa pulsão manifesta-se de duas formas. A primeira é puramente física. Surge quando nos entregamos a um cuidado voluptuoso do corpo. É por isso que a busca da castidade é inseparável do jejum, que devemos entender não apenas como uma alimentação disciplinada, mas também como uma prática psicobiológica e terapêutica de libertação do egocentrismo. A segunda forma dessa pulsão passional é espiritual, nascida da inveja do demônio (V. 1). O pai da mentira não quer que sejamos santificados na verdade. Ele confunde-nos onde somos mais vulneráveis.

Livro "Castidade: a reconciliação dos sentidos" de Erik Varden
Um sinal da origem diabólica de uma determinada tentação é a sua tendência para induzir o desespero. Um monge que lhe sucumbe pensa que foi abandonado por Deus; que para ele não há perdão. Esta é a maior de todas as tentações. Os Apophthegmata louvam os monges que, no combate contra a impureza, se recusam a abandonar a esperança na graça de Deus (V. 47). Mesmo os pensamentos mais sombrios são impotentes se não lhes permitirmos entrar no nosso coração. Estamos seguros enquanto nos recusamos a deixar-nos impressionar. O perigo começa no instante em que fechamos os olhos e nos confiamos à voz suave do tentador, que nos atrai para o domínio do caos de onde ela procede.
E que dizer de ver o meu irmão – o outro, representativo e presente – na verdade? Para introduzir este tema, podemos considerar uma história sobre Macário, o Grande:
Dizia-se que o Abba Macário, o Grande, numa viagem pelo deserto, encontrou um crânio no chão. O ancião tocou-lhe com o seu cajado e disse: “E tu, quem és? Responde-me!”
O crânio respondeu: “Eu era sumo sacerdote dos pagãos neste lugar. E tu és o Abba Macário, portador do Espírito. Quando tens piedade dos que são punidos [para além da sepultura], eles recebem algum consolo”.
O Abba Macário perguntou: “Em que consiste esse consolo?”
O crânio respondeu: “Tal como o céu dista da terra, assim o fogo se estende sob os nossos pés e sobre as nossas cabeças; quando estamos no meio do fogo, não podemos ver-nos face a face, pois estamos atados costas com costas. Mas, quando rezas por nós, cada um de nós pode entrever o rosto do outro”.
O ancião chorou e disse: 'Ai do dia em que o homem nasceu, se isto é aquilo a que se pode chamar consolo no tormento eterno!' " (III. 19).
Não precisamos de nos deter nas dificuldades técnicas que o texto levanta (por que e como estão os condenados amarrados de costas uns para os outros?); estamos perante uma tradição manuscrita problemática, repleta de variantes. O que importa é isto: a condenação é concebida como a incapacidade de ver o rosto dos outros. Ela traduz a aniquilação da pessoa, um estado em que a identidade de alguém é reduzida e encerrada na mera individualidade.
Um ser humano condenado, separado de Deus, é consumido pela solidão. Um ser humano santo, em contraste, que vive em comunhão com a Trindade, é plenamente pessoal. Orientado para o outro, na pureza e no amor, ele ou ela leva a bênção até ao próprio inferno.
Os Padres tiravam consequências práticas desta teologia sublime, aplicando-a à vida cotidiana. Lemos constantemente sobre situações em que a questão é se uma pessoa vê os seus semelhantes ou se realmente só tem olhos para si mesma. Os exemplos conservam uma relevância intemporal.
Epifânio, monge que se tornara bispo de Chipre, certa vez convidou o seu velho amigo, o Abba Hilarion, para o visitar, quando ambos já eram de idade avançada. Enquanto conversavam, a governanta do bispo serviu uma bela ave assada. Hilarion recusou educadamente, mas com firmeza, dizendo: "Perdoe-me, abba, mas desde que recebi o hábito, nunca mais comi carne". O bispo respondeu: "E eu, desde que o vesti, nunca deixei que ninguém se deitasse com algo contra mim, assim como nunca me deitei com algo contra alguém". "Perdoe-me, abba", disse Hilarion, "o seu modo de vida é mais elevado do que o meu" (IV. 15).
O que é mais importante neste caso: os meus princípios elevados ou a atenção delicada a um amigo? A história sugere que o ascetismo superior consiste na cortesia, numa forma elevada de autotranscendência.
Encontramos este princípio ilustrado de um modo mais radical na história de um jovem monge atormentado por pensamentos impuros. Quando foi ter com um abba para lhe abrir o coração, o velho, apesar dos cabelos e da barba grisalhos, revelou-se ἄπειρος [apeiros], "sem experiência": repreendeu violentamente o irmão e disse-lhe que um homem que alimenta tais pensamentos é indigno do hábito de monge. O jovem discípulo ficou triste, perdeu o ânimo e decidiu abandonar a vida monástica. Graças a Deus, no caminho de regresso ao mundo, encontrou-se com o Abba Apolo. Apolo era um homem perspicaz. Tinha olhos para ver. Apercebeu-se de imediato do fardo de tristeza que pesava sobre o irmão. "Mas, filho, por que estás tão abatido?" O jovem monge contou-lhe a sua história. Apolo consolou-o: "Filho, isso não é motivo de espanto. Não percas a esperança! Eu próprio, tão velho como sou, continuo a ser frequentemente atormentado por pensamentos terríveis! Não percas a coragem por causa de uma febre que nenhum zelo humano pode curar, mas apenas a misericórdia de Deus. Dá-me um ou dois dias, depois podes voltar para a tua cela".
O jovem acalmou-se, reconfortado, enquanto Apolo pegou no seu cajado e foi visitar o seu antigo colega, aquele que tinha sido tão severo. Colocando-se diante da cela desse homem, Apolo rezou: "Senhor, tu permites que as tentações venham àqueles que delas podem beneficiar. Deixa que o combate do meu irmão [mais novo] seja transferido para este velho, para que ele […] possa experimentar o que uma longa vida não lhe ensinou, e assim aprenda a ter misericórdia para com os que combatem". A oração de Apolo foi ouvida. Imediatamente, o velho saiu a correr pela porta, gritando "como um bêbado", incapaz de suportar a tentação, fugindo para o mundo. Apolo deteve-o e explicou-lhe o que se passava. Com grande sarcasmo, disse: "Provavelmente, o diabo achou que eras indigno de ser tentado e foi por isso que foste cruel com o irmão que atravessava um momento difícil" (V. 4).
Esta história ensina-nos muito: que a fraqueza da carne é uma experiência universal; que as tentações de ordem sexual são multifacetadas; que a tentação pode ser proveitosa, se nos conduzir à humildade; que o conhecimento da nossa própria fraqueza nos ensina a ter compaixão pelos outros; e que, quando vemos outro ser humano com verdade – frágil, mas com capacidade e vontade orientada para o bem – vemo-lo como Deus o vê, ou seja, com infinita misericórdia.
Quanto à busca para ver a Deus, o decurso de 16 séculos não retirou nada ao pathos do lamento do Abba Isaías: "Ai de mim! Porque o teu nome me rodeia, e eu sirvo os teus inimigos!" (III, 13). Estar rodeado pelo nome de Deus é viver na presença de Deus. Viver na presença de Deus, porém, não equivale a ver a Deus; e, se não vemos a Deus, somos propensos a esquecer que Ele está presente, a rodear-nos.
As Bem-Aventuranças proclamam que Deus é visível para os puros de coração. A sabedoria monástica leva a sério esta referência. Cassiano via a pureza de coração como o fim da vida monástica. Se nos propomos alcançá-la, um longo caminho abre-se diante de nós. Tem passagens difíceis. Muitas vezes, a contemplação de Deus é perceptível primeiro como uma experiência de ausência. Aquilo por que anseio parece tão distante. Aos poucos, começo a perceber que quem está ausente não é Deus, mas eu. Fui eu quem deixou a casa do Pai e partiu para uma terra longínqua. Tendo voltado a mim, posso começar o trabalho de conversão e arrependimento.
Não é, em primeiro lugar, a memória de pecados concretos que constitui a base do arrependimento, o penthos portador de alegria a que os Padres aspiravam. Essa dor, expressa na bem-aventurança dos que choram, é totalmente diferente da tristesse depressiva. O choro do monge é bem-aventurado na medida em que ele descobre a quem feriu com a sua infidelidade; na medida em que reconhece a imensa filantropia de Deus. Uma vez, o Abba Isaac viu o Abba Poimen em êxtase durante a oração. "Onde estavam os teus pensamentos, abba?", perguntou-lhe depois. Poimen respondeu: "Onde estava Santa Maria, de pé, a chorar junto à cruz do Salvador. Como desejo chorar sempre assim!" (III. 31).
Os Apophthegmata falam com moderação sobre a realização do anseio contemplativo. "Secretum meum mihi" é o que os filhos e filhas do deserto ainda murmuram em resposta, quando nós, espectadores intrusivos, nos tornamos demasiado curiosos: "Meu segredo para mim" (cf. Is 24, 16 na Vulgata). Mesmo os monges mais santos insistem em que mal começaram a trabalhar na sua conversão. Ainda assim, temos uma vaga ideia do que significa ver Deus quando, de vez em quando, temos um vislumbre de vidas transformadas.
A vida monástica vive-se à luz da Ressurreição de Cristo. "Sobre o Abba Arsenios, dizia-se que, ao cair da tarde de sábado, enquanto se preparava a glória do domingo, ele voltava as costas ao sol e, com as mãos levantadas para o céu, permanecia de pé, em oração, até que o sol iluminasse o seu rosto" (XII. 1). Esta vigília sabática, do pôr ao nascer do Sol, manifesta a vocação e o propósito do monge. A sua atenção é atraída para o Oriente, de onde Cristo, segundo a sua promessa, há de voltar. Quando a existência está orientada, a luz da eternidade revela o seu esplendor em vasos transitórios.
Quando o Abba Lot interrogou o Abba José sobre o sentido da ascese cristã, "o ancião levantou-se, estendeu as mãos para o céu e os seus dedos tornaram-se como dez lâmpadas brilhantes. Então disse: 'Se quiseres, podes tornar-te inteiramente fogo'" (XII. 9). O Deus que os ascetas do deserto ansiavam ver tornou-Se homem em Cristo; a fé na Encarnação impregna as suas vidas. Além disso, quando, com as palavras dos salmos, clamavam: "Senhor, mostra-me a tua face!", os monges estavam conscientes de que o Senhor tem um modo de Se manifestar nos rostos humanos. No fim da sua longa vida, o Abba Antão disse: "Já não temo a Deus. Amo-O" (XVII. 1). Tinha-se tornado a prova viva de que o amor pode expulsar o medo. Tinha-se tornado um ícone de Cristo, irresistivelmente belo. Quando o velho Antão perguntou a um discípulo que o visitava o que poderia fazer por ele, o jovem respondeu: "Pai, basta-me ver-te" (XVII, 5). Nas feições de Antão, discerniu indícios da ação presente de Deus. Viu aquilo que ele próprio era chamado a ser.
Os textos que consideramos apresentam um ideal relevante para todos nós. Mostram como os olhos se abrem, como o Senhor pode responder-nos quando rezamos com o cego Bartimeu: "Mestre, que eu veja!" (Mc 10, 51). O início de uma vida casta no mundo consiste em vê-Lo como Ele é, com reverência, desejando encontrar o que se vê, mas livre da necessidade de possuir.
Ver assim é graça. A graça pressupõe esforço. Devo abandonar os hábitos que obscurecem e pesam sobre a minha natureza, criada como luz para ser luz. Ver verdadeiramente é ser transformado pelo que vejo. É importante recordar isto num clima que me leva a pensar que a realidade deve adaptar-se a mim, e não eu a ela.
A terminologia clássica das paixões e da ascese, ethos e physis, surgiu de um desejo de recuperar o que é natural para o ser humano, criado à imagem de Deus, chamado a realizar a sua semelhança. Formados pelos mandamentos de Cristo, os ascetas do deserto declararam guerra a tudo o que neles comprometia a sua dignidade e a sua beleza como filhos e filhas de Deus. Tinham por certo que a imagem divina impressa no seu ser estava desfigurada. Mas tinham a certeza de que Deus podia restaurá-la em todo o seu esplendor. O objetivo da vida monástica, segundo Panayotis Nellas, é "refazer, em sentido inverso, o caminho de Adão, purificar as 'vestes de pele' e elevar as funções da sua existência ao nível das funções icônicas naturais que existiam antes da queda". Todos os cristãos são chamados a seguir este caminho, de acordo com o seu estado de vida. O único e verdadeiro fim digno da vida humana é o amor redimido a Deus e ao próximo, que transforma o nosso ser e o torna semelhante a Deus.
Em tempos calculistas e avessos ao risco, é difícil ver a vida como um processo de conversão, cura e mudança. É contracultural viver de mãos vazias e pisar esta terra castamente, livre da vontade de dominar. Podemos pensar que este ideal luminoso está tão fora do nosso alcance que deixamos de lutar por ele e definhamos na escuridão dum casulo. Precisamos do testemunho dos Padres. Ele recorda-nos: "Se quiseres, podes tornar-te fogo".
Leia mais
- Há 50 anos, o clero de Nápoles votou contra o celibato dos padres, mas o Vaticano encobriu tudo. Artigo de Fabrizio D'Esposito
- A hipocrisia do celibato
- Porque o celibato dos padres é um eterno debate dentro da Igreja. Artigo de Gaétan Supertino
- Celibato dos padres: novas perspectivas
- “O relatório da Conferência Episcopal Italiana - CEI sobre abuso não é suficiente. Um celibato mal vivenciado pelos padres pode se tornar um fator de risco”. Entrevista com Hans Zollner
- D. Norberto, bispo de Ji-Paraná, Rondônia: “Se a Igreja tornasse o celibato opcional, talvez mais padres o vivessem por convicção”
- O Sínodo discernirá sobre o celibato facultativo, o diaconato das mulheres e o acolhimento de divorciados e LGTBQ+
- Reabre-se o debate sobre o celibato sacerdotal
- Sobre o celibato na Igreja Católica nunca se deixa de discutir. Artigo de Giovanni Maria Vian
- Balanço provisório do pontificado. Os dez problemas não resolvidos do Papa Francisco
- Suíça: Bispo de Saint Gallen diz que “o celibato pode ser abolido amanhã”
- França: celibato e viri probati
- “O celibato deve ser voluntário”. Entrevista com Katharina Kluitmann
- “O celibato dos padres não é um dogma”. Entrevista com Reinhard Marx, cardeal-arcebispo de Munique
- Celibato, mulher e ministério eclesial. Artigo de José I. González Faus
- “O celibato e o sacerdócio masculino são práticas tardias na Igreja”. Entrevista com Juan José Tamayo
- O celibato dos padres: uma proposta
- A Igreja Católica alemã aprova a abertura a padres casados por grande maioria