Uma análise crítica e incisiva: a encruzilhada das mulheres, o poder e a fé no cristianismo ocidental. Artigo de Merche Saiz

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06 Outubro 2025

"Se a hierarquia não for capaz de ser realista e reconhecer a plena igualdade ministerial das mulheres, se continuar a valorizar mais sua tradição de poder misógino do que os princípios da justiça evangélica, a profecia de uma Igreja reduzida a um reduto esclerosado e minoritário logo se cumprirá", escreve Merche Saiz, em artigo publicado no Facebook, 04-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

A recente nomeação de uma mulher como Arcebispo de Canterbury para a Comunhão Anglicana não é um mero evento eclesiástico; é um marco de ressonância global que destaca, em termos dolorosamente claros, a profunda divisão teológica e de justiça social que persiste no cristianismo, particularmente diante da imobilidade estrutural da Igreja Católica Romana.

Esse ato de avanço anglicano, aplaudido por sua adesão a princípios de igualdade e dignidade humana, atua como um espelho implacável que reflete o anacrônico e misógino fechamento do Vaticano ao ministério feminino.

A frustração que emana das mulheres católicas batizadas não é um capricho teológico menor, mas uma demanda legítima por plenos direitos sacramentais e de participação ministerial, que a atual hierarquia eclesiástica sistematicamente lhes nega.

A exclusão da mulher do ministério ordenado (episcopado, sacerdócio, diaconato) apresenta-se como uma violação sistemática dos direitos humanos dentro de uma instituição que se autoproclama depositária da verdade revelada.

É um exercício de poder patriarcal que subordina a vocação e o talento feminino a papéis auxiliares e puramente consultivos, como evidenciado pelo seu limitado acesso aos dicastérios vaticanos, sempre sob o "olhar atento do cardeal em exercício". Essa disposição é uma simulação de inclusão que reforça, em vez de desmantelar, a estrutura de dominação masculina.

A falácia da denominação e a hipocrisia do poder

A exclamação "ainda bem que sou católico!" revela uma perigosa prioridade da identidade institucional (a "denominação") sobre o seguimento radical de Jesus de Nazaré e sobre os valores fundadores do Evangelho: amor, justiça e serviço. Se uma igreja se arvora como "a verdadeira" e afirma que "fora dela não há salvação", e ao mesmo tempo tolera e esconde aberrações morais como a pedofilia clerical, os escândalos financeiros e a opacidade na gestão de bens que não lhe pertencem - enquanto usa a ameaça de excomunhão para silenciar o dissenso feminino - sua reivindicação de ser o único caminho para a salvação torna-se um paradoxo ético insustentável.

O aspecto "negativo" não é que ele simplesmente "ofusca o aspecto positivo" do trabalho de padres corretos; o problema é que a cultura da impunidade e o abuso estrutural de poder dentro da hierarquia são o ambiente sistêmico que permite que o mal floresça e persista.

O cisne negro da conversão anglicana: fé ou machismo?

A questão da migração de clérigos anglicanos casados para a Igreja Católica, permitindo-lhes manter seu status laical e familiar, obriga a uma análise crua e sem concessões.

Embora a Igreja Católica exija celibato rigoroso a seus próprios padres latinos (um resquício disciplinar, não dogmático), oferece uma dispensa "ad hoc" aos convertidos anglicanos. Essa política gera um duplo padrão moral que mina a justificativa teológica do celibato. A motivação para essas conversões deve ser examinada com rigor acadêmico: é o reconhecimento de uma "verdadeira orientação" na doutrina católica ou, em um número significativo de casos, é uma resposta reacionária de clérigos "homens" que fogem de uma Igreja que adotou a plena ordenação das mulheres como bispos e padres?

A hipótese de que essas conversões sejam, pelo menos em parte, um ato de resistência de gênero é forte.

Esses religiosos encontram refúgio em uma estrutura que reafirma o exclusivismo masculino no poder sacramental. Trata-se de um transfugismo eclesiástico alimentado pelo conservadorismo patriarcal, camuflado sob o disfarce da busca pela ortodoxia.

A Igreja Católica Romana se encontra em um ponto de não retorno demográfico e moral sem precedentes. A persistência na negação do ministério feminino, a opacidade financeira e a contínua gestão autoritária do dissenso – que trata mulheres adultas e teologicamente formadas como "seres infantis" – estão causando uma hemorragia de credibilidade e de adesão.

A mulher crente, cansada das ameaças de excomunhão, é obrigada a apresentar sem medo seu trabalho teológico e pastoral, reivindicando o espaço que seu batismo e vocação lhe conferem.

Se a hierarquia não for capaz de ser realista e reconhecer a plena igualdade ministerial das mulheres, se continuar a valorizar mais sua tradição de poder misógino do que os princípios da justiça evangélica, a profecia de uma Igreja reduzida a um reduto esclerosado e minoritário logo se cumprirá.

A sobrevivência não reside na rigidez dogmática em questões de disciplina eclesial, mas na coerência moral e na justiça radical na aplicação do Evangelho.

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