16 Setembro 2025
“E, nesse ambiente, quando a busca por segurança se torna a grande alavanca que articula tudo, acaba sacrificando liberdades e justiça, consolidando perversamente inseguranças e incertezas para a grande maioria. Assim, podemos ver que, na realidade, esse discurso e prática da ‘guerra às drogas’ se torna um mecanismo de controle da sociedade a partir das demandas de acumulação do capital nacional e estrangeiro”. A reflexão é de Alberto Acosta, em artigo publicado por Rebelión, 15-08-2025. A tradução é do Cepat.
Alberto Acosta é economista equatoriano. Foi presidente da Assembleia Constituinte do Equador (2007-2008).
Eis o artigo.
“Exércitos e auxiliares mercenários são inúteis e perigosos” – Nicolau Maquiavel, O Príncipe (1513)
A remoção da proibição constitucional que impedia o estabelecimento de bases militares estrangeiras no Equador avança. Após aprovar essa possibilidade, cumprindo o disposto na lei para emendas constitucionais parciais, ou seja, o debate em duas sessões, a Assembleia Nacional abriu caminho para a realização de um referendo. Assim, convocando o povo às urnas, essa proibição pode ser removida, a que concretizou a retirada da base estadunidense em Manta em 2009. Em suma, com uma sociedade assolada pela violência criminosa, avançam propostas autoritárias, regressivas em direitos. Buscam, assim, retroceder na roda da história, permitindo novamente o estabelecimento de tropas estrangeiras, inclusive a atuação de mercenários.
Recordemos que entre os cinco primeiros artigos aprovados pela Assembleia Constituinte em Montecristi, na sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008, estava o que hoje é o Artigo 5, que estabelece que o Equador é um território de paz e que proíbe a presença de tropas estrangeiras. [1] Ironicamente, no dia seguinte à sua aprovação, na madrugada de sábado, 1º de março, a Força Aérea colombiana lançou um bombardeio surpresa sobre Angostura, território equatoriano, com claro apoio militar dos EUA. Assim, violando a soberania nacional, assassinou um grupo de pessoas que sequer faziam parte das forças insurgentes da Colômbia.
Esta foi uma clara advertência sobre a dificuldade de construir um território de paz, impulsionado pelo sentimento pacifista da sociedade equatoriana. Não podemos esquecer que, naquela época, na Constituição de Montecristi, foi tomada a decisão de vislumbrar um mundo que condenasse as pretensões imperiais de qualquer uma das grandes potências e promovesse a integração e a coexistência pacífica entre os povos, rejeitando a presença de bases militares estrangeiras no mundo. Isso é compreensível, no entanto, já que o Equador sofreu o impacto da presença de tropas estrangeiras, sendo as mais notáveis as bases americanas em Galápagos e Manta, ambas motivadas por claros interesses geoestratégicos de Washington.
Recordemos o caso mais recente: a base americana em Manta – Posto de Operações Avançada (FOL) –, estabelecida no âmbito do Plano Colômbia em 1999. Essa instalação militar não contribuiu em nada para reduzir o flagelo do narcotráfico, que era um dos principais objetivos desse plano. Durante os 10 anos de presença de militares estadunidenses no Equador, os carregamentos de drogas triplicaram. A taxa de criminalidade disparou. Dezenas de pessoas, principalmente pescadores, denunciaram violações sistemáticas dos direitos humanos. Um ponto adicional a ser considerado é que as ações das aeronaves estadunidenses não estavam em conformidade com os termos do acordo firmado, visto que, na verdade, visavam combater a insurgência na Colômbia e interditar emigrantes equatorianos, muitas vezes sem o conhecimento das autoridades equatorianas.
Há outra experiência que vale a pena mencionar. Décadas atrás, já houve a presença de tropas americanas em território equatoriano. Isso aconteceu na década de 1940, em plena Segunda Guerra Mundial. Poucos dias após o ataque japonês a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, soldados estadunidenses desembarcaram na Ilha de Baltra, Galápagos, e em Salinas, em território continental, sem a autorização expressa do Estado equatoriano. Na época, o Equador vivia um momento crítico, com a província de El Oro ocupada por tropas peruanas. Após esse desembarque, o acordo para normalizar a presença de tropas estadunidenses em Salinas foi assinado em 24 de janeiro de 1942 e em Baltra em 2 de fevereiro. Entre essas duas datas, como resultado de enorme pressão pan-americana, em 29 de janeiro de 1942, foi assinado o Protocolo de Paz, Amizade e Fronteiras do Rio de Janeiro, que excluiu definitivamente o Equador das margens do Rio Amazonas. Em suma, a presença dessas tropas estrangeiras em nada salvaguardava a soberania nacional e o equilíbrio ecológico desse paraíso, especificamente a ilha de Baltra, devastada pelas tropas ianques. Para concluir este breve relato histórico, vale destacar que Washington tentou negociar – chantageando com a pesada dívida externa – a permanência de suas tropas, mas o governo de José María Velasco Ibarra, em 1946, rejeitou essa pretensão.
Vale ressaltar também que, após o desmantelamento da Base de Manta, os estadunidenses estabeleceram mais duas bases na Colômbia, onde atualmente existem sete, sem conseguir deter o narcotráfico. Além disso, a produção de cocaína continua a crescer na Colômbia. Algo semelhante está acontecendo no Peru, onde já operam cinco bases militares estadunidenses, além da base de controle espacial em Talara, que é uma espécie de resposta dos EUA à construção do megaporto de Chancay pela China. [2]
O pretexto de combater o crime organizado, especialmente o narcotráfico, utilizado pelo governo Daniel Noboa, não se sustenta. Basta rever as declarações de diplomatas de Washington, que declararam publicamente que não há a necessidade de bases militares para esses fins. [3]
É evidente, então, que uma nova base estadunidense em Galápagos e/ou o retorno de uma base a Manta teriam motivações geoestratégicas de Washington em meio à disputa com as outras grandes potências imperialistas, especialmente a China. Suas pretensões imperiais são amplamente conhecidas; basta lembrar as recentes e reiteradas declarações do Comando Sul dos EUA, que expressou categoricamente o interesse do gigante do norte em controlar áreas de influência e fontes de recursos naturais estratégicas para sua segurança geopolítica e energética.
Levando em conta esses elementos, deve-se integrar na análise a militarização acelerada da sociedade equatoriana, que coincide com a rendição às pretensões imperiais. Assim, a abertura a tropas auxiliares estrangeiras, incluindo mercenários, é motivo de grande preocupação.
O presidente Noboa chegou oficialmente a um acordo com Erick Prince, um dos maiores mercenários em atividade atualmente, após a aprovação da nova Lei Orgânica de Inteligência, que entrou em vigor em 14 de julho deste ano e permite a implementação de operações de espionagem em larga escala dentro da sociedade. Essa lei, claramente inconstitucional, permite, entre outras coisas, o uso discricionário de “fundos especiais” sem prestação de contas. A aproximação do governo desses mercenários remonta a tempos anteriores. Em março passado, durante a primeira visita de Prince ao Equador, o presidente Noboa falou de uma “aliança estratégica” para angariar o apoio de mercenários em seu conflito armado interno. Mesmo durante a recente campanha eleitoral, Prince participou abertamente de duas operações anticrime nos subúrbios de Guayaquil, ao lado dos ministros da Defesa e do Interior.
Prince, um operador e negociante de guerra, é um dos maiores promotores da soldadesca assalariada transnacional, com um histórico macabro de mortes e violações de direitos humanos em mais de 30 países. Hoje, ele é um contratante de segurança para o Equador. [4] O fundador da notória empresa Blackwater – famosa por suas brutais violações de direitos humanos em vários países, incluindo o Iraque – lucrou servindo a governos autoritários e oligárquicos, muitas vezes em conluio aberto com o imperialismo estadunidense. Para ser claro sobre quem ele é, Prince é um dos rostos mais visíveis do negócio privado da guerra, que, de forma alguma, busca a paz. Este ponto não é menos importante.
Em meio à guerra interna contra o crime organizado, decretada pelo presidente Noboa, a contratação de mercenários constitui uma “transação por um serviço”, com “empresas que tratam a morte como um negócio”. [5] É preocupante, então, que, por meio desse tipo de negociação com grupos mercenários, esteja ocorrendo uma espécie de neoliberalização da luta contra o crime organizado. E dentro dessa lógica comercial perversa, esses aproveitadores da guerra – que é essencialmente o que os mercenários são, que não estão realmente interessados na paz porque não é um negócio – podem negociar facilmente com o maior lance. Dessa forma, suas ações no Equador poderiam ser um incentivo para o estabelecimento massivo do paramilitarismo. Isso poderia se materializar por meio de alianças de tropas mercenárias com grupos oligárquicos ou mesmo com gangues do crime organizado, como já aconteceu em outros países.
Assim, com a presença de mercenários ou ações ligadas às suas práticas, abre-se ainda mais a porta para respostas repressivas fora das instituições estatais e dos direitos humanos. Assim, em suma, Noboa adere à lógica repressiva do “capitalismo mafioso” de Donald Trump e outros governantes de extrema-direita. [6] Tudo como parte de uma guerra fracassada e sem fim contra os cartéis de drogas, que concentram a maior parte de seus negócios lucrativos em países do Norte global, liderados pelos próprios Estados Unidos.
Um ponto extremamente sério. As forças públicas: as Forças Armadas e a Polícia, que estão engajadas em uma espécie de guerra civil, compartilharão suas funções específicas com tropas auxiliares, mercenárias ou não. Essa força pública está assumindo novamente tarefas de gestão política de linha de frente, como a administração de alguns hospitais públicos. Além disso, as forças públicas, que controlam as prisões sem conseguir pacificá-las, estão assumindo cada vez mais o papel de guarda pretoriana dos interesses mineradores e petrolíferos, reprimindo comunidades que defendem seus territórios, contribuindo para a expansão do extrativismo (talvez este seja outro ponto de contato com a estratégia de “minerais para a segurança” de Washington, evidente em várias partes do mundo). E, nesse contexto, as forças de segurança, além de serem o braço repressivo contra a resistência popular e despreparadas para esse tipo de guerra interna (especialmente urbana), violam cada vez mais a lei: torturas, abusos, assassinatos, desaparecimentos, perseguições e corrupção crescente são alvo de repetidas denúncias. [7]
De fato, trilhamos um caminho de difícil retorno, que mina cada vez mais as frágeis instituições democráticas, seriamente ameaçadas pelas pretensões de Noboa de controlar todas as funções do Estado, incluindo o Tribunal Constitucional. Da mesma forma, a institucionalidade do direito internacional ratificado pelo Equador, que proíbe a presença de mercenários, está sendo duramente criticada. [8]
Em suma, essa espiral de repressão, fadada ao fracasso, pode se tornar uma espécie de poço sem fundo, como se viu no México e na Colômbia. Os resultados dessa ação no Equador já são decisivos. No primeiro semestre de 2025, o número de assassinatos por 100.000 habitantes superou todos os recordes anteriores, colocando o país no topo dessa lista sombria da violência em nível regional. E com a mercantilização dessa luta, a perspectiva se torna ainda mais tenebrosa.
O desafio é complexo. Vemos isso todos os dias. Mesmo que a militarização e o populismo penal estejam fracassando, o governo continua a impor a repressão à sociedade, assim como a neoliberalização na economia também fracassa. E, nesse ambiente, quando a busca por segurança se torna a grande alavanca que articula tudo, acaba sacrificando liberdades e justiça, consolidando perversamente inseguranças e incertezas para a grande maioria. Assim, podemos ver que, na realidade, esse discurso e prática da “guerra às drogas” se torna um mecanismo de controle da sociedade a partir das demandas de acumulação do capital nacional e estrangeiro.
Portanto, neste momento crítico para a vida nacional, para evitar este retrocesso histórico e enfrentar o crescente autoritarismo em curso, é fundamental construir uma ampla unidade democrática nacional.
Notas
1. Art. 5º - “O Equador é um território de paz. Não será permitido o estabelecimento de bases militares estrangeiras ou instalações estrangeiras para fins militares. É proibida a transferência de bases militares nacionais para forças armadas ou de segurança estrangeiras”. Constituição da República do Equador.
2. Sobre o que significou a presença de tropas estadunidenses no Equador e as perspectivas de rendição dos governos de Guillermo Lasso e Daniel Noboa, pode-se consultar o livro de vários autores (2025). La mirada Imperial puesta en Galápagos.
3. Ver Revista Vistazo, 10-06-2019: “No se requiere una base militar (americana) en Ecuador”.
4. Ecuador en Llamas: Observatorio Ecuatoriano de Conflictos (26.08.2025); “ERIK PRINCE: historia de un mercenario (1997–2025)”.
https://storymaps.arcgis.com/stories/25c6b7b7df2745c385d30e918c6971ac
5. INREDH (14-04-2025); “Contratistas militares: ¿Garantía de seguridad o negocio de conflicto?”
6. Um relatório detalhado sobre as ameaças representadas pela presença de Erick Prince pode ser encontrado em Ecuador en Llamas. “Noboa contrata a Erik Prince y abraza el capitalismo mafioso que promueve Trump”. Alerta Temprano nº 3 (agosto de 2025).
7. Unidad de Investigación Tierra de Nadie y CONNECTAS: “Operación sin rumbo: una guerra improvisada hunde a Ecuador en abusos militares”.
8. Até a institucionalidade do direito internacional é afetada, uma vez que a presença de mercenários é contrária à Convenção Internacional contra o recrutamento, utilização, financiamento e treinamento de mercenários, de 2017.
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