10 Setembro 2025
Prêmio Nobel de Economia em 2001, Joseph E. Stiglitz (Gary, Indiana, 1943) é um dos economistas mais influentes do mundo. Em seu livro mais recente, O caminho para a liberdade, propõe uma visão de liberdade baseada na justiça social e na igualdade de oportunidades. Conversamos com ele sobre a guerra tarifária de Donald Trump, a importância dos meios de comunicação e da academia como contrapesos ao poder e a necessidade de expandir a liberdade de escolha.
A entrevista é de Elena Herrero-Beaumont, publicada por Ethic, 08-09-2025. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em uma época de fragilidade emocional e social, falar de liberdade soa quase como utópico. Por que você decidiu escrever este livro agora? O que o levou a repensar a liberdade como tema central do debate econômico?
Escrevi o livro antes das eleições de 2024, nos Estados Unidos. Estava ciente de que a liberdade seria um tema central e, por um momento, foi. Kamala Harris usou “Yes She Can” como hino de sua campanha e houve debates sobre os direitos reprodutivos e outras liberdades fundamentais. Algumas das questões que eram levantadas, como a liberdade de portar uma arma, tratavam de algo que é central no livro: o reconhecimento de que a liberdade de uma pessoa pode restringir a de outra. Esses temas surgiram, mas não dominaram a campanha. Foi uma eleição que muita gente sentia que não ia bem e Donald Trump prometia uma mudança. Não acredito que entenderam plenamente que seria um caos e uma desestabilização das instituições. Mas foi uma eleição sobre a mudança, e Harris representava a continuidade.
Os valores da liberdade estão tão arraigados na cultura estadunidense que pensei que mereciam um debate mais profundo. O que o Partido Democrata representava era a liberdade de cada indivíduo realizar seu potencial. Se eu mudasse a conversa sobre o que os republicanos chamam de liberdade - fazer o que bem entender, sem importar as consequências -, pensei que conseguiria convencer a maioria de que minha concepção de liberdade é o que as pessoas realmente desejam. Nós que defendemos posições progressistas, na verdade, temos uma agenda que amplia a liberdade. Por muito tempo, foi a direita que reivindicou a agenda da liberdade. Eu queria recuperar isso e torná-la parte central do debate intelectual e político.
Você critica a noção individualista de liberdade, em grande medida formulada por pensadores como Hayek e Friedman. Como você entende a liberdade real? Por que reduzir a intervenção do Estado não é suficiente para garantir que as pessoas sejam verdadeiramente livres?
Abordo este assunto na perspectiva econômica. Quando os economistas falam de liberdade, costumam se perguntar: “O que você tem liberdade para fazer?”. Alguém à beira da inação não tem liberdade. A liberdade real depende do conjunto de oportunidades que uma pessoa tem, e isso raramente se expande de forma individual. Dou exemplos em que cooperar aumenta a liberdade. Mesmo uma pequena restrição pode, na realidade, ampliar a liberdade. Por exemplo, em uma cidade como Nova York, os semáforos são uma limitação; você não pode avançar enquanto não ficarem verdes. No entanto, se eles não existissem, seria o caos. Então, uma simples regulamentação nos permite avançar.
O mesmo aconteceu durante a pandemia. A vacina de RNA mensageiro foi desenvolvida graças a recursos públicos. Nenhum indivíduo sozinho conseguiria produzi-la. Exigiu investimento estatal, que é financiado com impostos. Essa obrigação - pagar impostos - é uma restrição menor frente à liberdade de viver conferida por essa vacina. Cooperar implica aceitar certas limitações, mas, no panorama geral, essas limitações aumentam enormemente nossas possibilidades e nossa liberdade real.
Isso está ligado à visão utilitarista, no sentido de que suas ações devem ser realizadas de forma a beneficiar o maior número de pessoas. No que se distingue do que, por exemplo, John Stuart Mill queria transmitir?
John Stuart Mill viveu em uma época marcada pela intolerância e, por isso, centrou sua defesa da liberdade no direito a acreditar e pensar livremente, desde que não afetasse os outros. Foi um grande defensor da tolerância. Eu também trato deste assunto, embora seu foco no que hoje chamamos “externalidades” fosse secundário. No entanto, quase 200 anos depois, vivemos em sociedades densas e interconectadas. E, nessas economias, o que uma pessoa faz tem um impacto muito maior sobre as outras. Por isso, o problema não é apenas a tolerância, mas também como as ações de uma pessoa podem afetar outras.
Um monopolista que fixa preços altos tira a liberdade de outra pessoa, talvez até mesmo a capacidade de comprar um medicamento vital. Isso é uma compensação. E os economistas trabalham precisamente com compensações. No livro, argumento que uma sociedade razoável, após uma boa deliberação, concluirá que é mais importante preservar os direitos dos explorados do que os do explorador. Que a liberdade de viver sem medo é mais importante do que a liberdade de portar uma arma automática. Haverá divergências, é claro, mas acredito que é possível alcançar um amplo consenso.
Nos casos mais complexos, proponho que pensemos como faria o “espectador imparcial” de Adam Smith ou sob o “véu da ignorância” de John Rawls. Quando pensamos em que tipo de sociedade queremos viver, devemos partir da perspectiva de que não sabemos em que lugar vamos nascer dentro dessa sociedade. E penso que a maioria das pessoas concordaria que um sistema tributário progressivo bem elaborado é o sistema contratual que todos apoiaríamos.
As contribuições de John Rawls não tiveram o impacto que uma grande filosofia como a dele deveria ter tido. Por que considera que isso está acontecendo nos Estados Unidos, onde se tornou muito difícil transmitir essas mensagens ao público e aos líderes políticos?
O debate nos Estados Unidos foi sequestrado por uma visão muito egoísta do individualismo, promovida por setores do Partido Republicano. É um individualismo que não considera o véu da ignorância de Rawls, nem o espectador imparcial de Adam Smith. Os piores exemplos são Elon Musk e Donald Trump. Temos agora uma oligarquia destruindo as regras do jogo. O Congresso é o único que pode redigi-las, e eles simplesmente as ignoram, enquanto devastam os vários departamentos do governo.
Nem sequer prestam atenção às salvaguardas, às normas estabelecidas por congressos anteriores. Essas são as ações mais antidemocráticas que enfrentamos na história da nossa nação. Em sua natureza, os oligarcas têm muita dificuldade em entender realmente a vida dos estadunidenses comuns, que em uma vida toda recebem o que eles ganham em uma hora. Não conseguem compreender suas necessidades, nem preocupações. Ao desmantelar o papel do Estado, eliminam serviços que não valorizam porque não precisam deles, mas que são essenciais para milhares de pessoas.
Como chegamos até aqui? O que falhou por parte dos democratas?
Este é um tema que abordei no meu livro O preço da desigualdade, publicado em 2012, baseado em um artigo que escrevi, em 2011, intitulado Of the 1%, by the 1%, for the 1%. Nele, eu alertava que os Estados Unidos tinham permitido que a desigualdade crescesse excessivamente e era percebida - com razão - como injusta. Não acompanhamos de forma adequada aqueles que ficaram para trás na transição de uma economia agrária para uma baseada em serviços e conhecimento. Muitos ficaram sem oportunidades, sem esperança. Embora os democratas demonstrassem mais compaixão, acabaram aceitando muitas das mesmas políticas neoliberais que os republicanos, apenas com um pouco mais de empatia. Isso nos deixou com mais de 40 anos de desigualdade crescente.
Nesse contexto, alertei que havia terreno fértil para um demagogo. Não sabia quem seria, mas finalmente surgiu alguém tão perigoso como Trump, que soube aproveitar o mal-estar, ampliá-lo e polarizar a sociedade. E eu estava preocupado com o fato de o mundo estar repleto de uma grande oferta de demagogos potenciais. O preocupante é que tudo pode ser agravado com a inteligência artificial e outras crises. Trump propõe destruir nossas instituições educacionais, impondo tarifas que não criarão empregos e aumentarão a inflação. Portanto, minha leitura é que enquanto a retórica for raivosa e houver uma guerra cultural contra os democratas, o resultado será o agravamento das mesmas forças que o levaram ao poder.
Considera que a verdadeira liberdade requer acesso efetivo à educação, saúde, moradia e segurança econômica. Como podemos garantir essas condições, sem cair no paternalismo?
Antes de tudo, não se trata de tirar a liberdade de escolher. A liberdade de escolha é fundamental e a agenda progressista que proponho busca ampliá-la. Por exemplo, nos Estados Unidos, a maioria das pessoas só tem acesso a uma ou duas seguradoras privadas de saúde, muitas obtêm lucros negando o atendimento médico, gerando grande frustração. Proponho uma opção pública, mas não obrigatória. Uma seguradora sem fins lucrativos. Seu objetivo não seria explorar os indivíduos, mas melhorar suas vidas e oferecer um bom atendimento médico. Este é um exemplo de como podemos fomentar decisões melhores e oferecer mais opções.
A mesma coisa com a moradia. Em 2008, vimos como as hipotecas mal planejadas destruíram o patrimônio de milhares de pessoas. Uma opção pública conseguiria oferecer condições mais humanas: flexibilidade diante da perda de emprego, regras mais justas e sem busca de lucros. Seria uma alternativa segura, não uma imposição. Por último, nosso sistema educacional deveria nos ensinar a tomar decisões melhores. As decisões são complexas, têm consequências para a vida toda. E agora, aqueles que têm um interesse particular que você escolha o que lhes convém são os principais provedores de informação. Seria bom se a informação viesse de alguém sem esse tipo de conflito de interesses.
Sua defesa é a de um capitalismo progressista, com instituições que restaurem a confiança pública e protejam o bem comum. Donald Trump está corroendo e desmantelando as principais instituições. Tenho duas perguntas sobre isto. Primeira: você observa resistência suficiente da sociedade civil e da academia? Segunda: você acredita que esse setor ainda é forte o suficiente para enfrentar essa guerra? E se não, que futuro vislumbra para os Estados Unidos, nos próximos anos?
Você tem toda a razão. Há uma guerra em curso neste momento, por parte do governo Trump, contra as instituições que sustentam a democracia. Uma democracia é mais do que eleições a cada quatro anos. Muitos de nós tememos que, em 2026, não teremos eleições justas e livres. Trump ataca todas as instituições que oferecem salvaguardas: como a imprensa, que ele chama de “inimigo do povo”, as universidades e o sistema judiciário. Estamos à beira de uma crise constitucional.
Em relação às universidades, Trump foi tão longe que Harvard disse: “Só até aqui”, e todas as outras universidades concordaram. Primeiro foi uma intromissão, pedindo apenas um pouco, e a Columbia cedeu. Muitos de nós dissemos que era um erro, porque regimes autoritários primeiro pedem um pouco, depois pedem muito. O aspecto mais decepcionante foi a atitude dos escritórios de advocacia, porque seria de se esperar que defendessem a lei. Contudo, cederam e concordaram em oferecer o que se estima que será até um bilhão de dólares em honorários e serviços jurídicos para promover a agenda ilegal de Trump. Felizmente, nem todos agiram assim.
As universidades estão sendo atacadas porque são fonte de pensamento independente. Não se trata apenas de proteger os indivíduos, mas de proteger a nossa democracia. O sistema de contrapesos não existe só dentro do governo. Trata-se também de um conjunto de equilíbrios dentro da sociedade, no qual os meios de comunicação e o mundo acadêmico desempenham um papel absolutamente central. Donald Trump simplesmente não entende isto e quer esmagar a liberdade acadêmica. Nós não permitiremos. Nossos estudantes, nosso professorado, estão unidos neste valor fundamental.
Muitos acadêmicos estão pensando em se mudar para a Europa. Qual futuro enxerga para a União Europeia, nos próximos anos? E como avalia que as guerras comerciais afetarão a economia europeia?
A Europa é hoje o principal bastião da democracia e dos direitos humanos. E isto está atraindo muitos profissionais e acadêmicos dos Estados Unidos. É irônico, pois durante o século XX o mundo acadêmico estadunidense se fortaleceu graças àqueles que fugiram da Europa devido à perda de liberdade. Agora, o movimento é inverso. Em muitos aspectos, é ainda pior do que isso, pois um dos pontos fortes dos Estados Unidos sempre foi o poder brando, o respeito que tinham por nós, e isto se perdeu.
A questão comercial é mais simples. Quase certamente perderemos a guerra comercial. Os Estados Unidos representam apenas 20% do PIB mundial. Os produtos que os Estados Unidos exportam para a China são produtos agrícolas, que podem ser comprados de qualquer outro país. Ao contrário, os produtos que os Estados Unidos importam da China são muito específicos e não podem ser facilmente adquiridos em outros países. Em particular, as terras raras só podem ser compradas na China. Nesse sentido, Trump cometeu um erro ainda maior. Acredita que, como o volume de importações chinesas é maior, temos mais poder de negociação. Na realidade, as tarifas estadunidenses são um choque de demanda para a China, mas as tarifas chinesas representam um choque de oferta para nós, e responder a isso é muito mais difícil e custoso.
Para piorar ainda mais as coisas, duas das nossas principais indústrias exportadoras são o turismo e a educação. Ele não entende que, em uma economia do século XXI, as exportações não são apenas de bens, mas também de serviços. Quem vai querer estudar ou fazer turismo em um país onde pode ser detido sem explicação? Essas são ações próprias de governos autoritários. Mas nem sequer os piores governos autoritários do mundo fazem isto, pois não querem prejudicar sua reputação. O que estamos vendo nos Estados Unidos é o pior do pior, e tudo é feito de forma aleatória. É uma revolução cultural improvisada, com gente agindo sem pensar, sem qualquer consciência das consequências de seus atos.
O que você aprendeu ao longo da vida sobre a conexão entre a liberdade e o sofrimento? E o que diria àqueles que, a partir de sua vulnerabilidade, lutam e tentam manter a esperança em uma sociedade boa?
Temos a capacidade de criar uma sociedade melhor. Não é fácil e, infelizmente, há forças que nos empurram contra. As coisas são frágeis, mais frágeis do que gostaríamos. Quando comecei minha carreira, há mais de 60 anos, eu me preocupava com os direitos civis. Marchei com Martin Luther King, em 1963, em Washington, D.C. Fiz minha pós-graduação em parte porque queria ver o que nós, economistas, cientistas sociais, poderíamos fazer para melhorar o mundo. Durante um tempo, as coisas melhoraram, mas depois pioraram. E mesmo que entendemos melhor as dinâmicas que geravam desigualdade, essas mesmas forças se intensificaram.
A crescente concentração de riqueza e de poder acabou criando o terreno fértil perfeito para os demagogos. E aqui estamos. Então, minha resposta é que precisamos continuar lutando. Recentemente, surgiu um artigo precioso na primeira página de um jornal mostrando Bernie Sanders, um homem de 83 anos como eu, ao lado de Alexandria Ocasio-Cortez, uma jovem política muito inteligente, percorrendo o país. Estão reunindo multidões de 40.000 pessoas ou mais. Há muito entusiasmo por um novo progressismo, e é isto que me dá esperança. Acredito que, ao final, venceremos.
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