06 Setembro 2025
Graças à sua escrita cuidadosa e às suas ideias originais - que ele compartilha mensalmente no jornal francês Libération -, o filósofo italiano tornou-se uma das figuras mais interessantes do pensamento contemporâneo, especialmente desde a publicação de Metamorfoses, livro traduzido para mais de uma dezena de idiomas e no qual argumenta, em linhas gerais, que todas as formas de vida na Terra estão interconectadas. “Cada espécie é um mosaico de pedaços retirados de outras espécies. Nós, as espécies vivas, jamais deixamos de trocar pedaços, linhas, órgãos, e o que cada um de nós é, o que chamamos de ‘espécie’, é apenas o conjunto das técnicas que cada ser vivo tomou emprestado dos outros”, explica em seu ensaio.
Em meio à crise climática, cultural e política global, sua “filosofia da natureza” retoma saberes da Grécia Antiga, dos povos indígenas e da vida urbana, questionando a separação entre humanidade e ambiente. A partir dessa intersecção, Coccia convida a pensar criativamente um mundo onde “as velhas estruturas estão se desintegrando”.
Emanuele Coccia (Fermo, Itália, 1976), doutor em Filosofia Medieval e professor adjunto na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, conhece bem o Chile, país que visitou diversas vezes. Sua última visita foi em 2023, quando, em uma conversa em Cabo Hornos, afirmou que a América do Sul está se transformando em um lugar “para pensar um futuro diferente”. Autor de ensaios como A vida das plantas (2017), Metamorfoses (2021) e Filosofia da casa: O espaço doméstico e a felicidade (2024), Coccia concedeu esta entrevista para refletir sobre o tempo e o espaço que todos os seres vivos compartilham e sobre a urgência de habitar o mundo com um sentido de passado, presente e futuro.
A entrevista é de Ximena Póo, publicada por Palabra Pública, 13-05-2025. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em ‘Metamorfoses’, você explora a ideia da continuidade da vida e da interconexão de todos os seres. De que modo você pensa que esta perspectiva pode nos ajudar a repensar a nossa relação com o mundo natural?
Eu queria descrever o que chamamos de vida partindo do paradigma do que os entomólogos chamam de insetos holometábolos, ou seja, insetos que sofrem uma transformação radical da anatomia e a fisiologia de seu corpo ao longo de sua vida. Há algo de estranho em uma lagarta que se transforma em borboleta. Graças à metamorfose, o mesmo “eu” é capaz de viver em dois corpos que não podem se harmonizar; está definido por duas identidades morais opostas, sente-se cômodo em dois mundos incompatíveis.
É isto que me interessava. Sobretudo, os insetos nos ensinam que a vida não pode ser reduzida a uma única identidade anatômica, etológica ou ecológica, mas sempre nos permite passar de uma face a outra, de um ethos a outro, de um mundo a outro. Vice-versa, a descontinuidade morfológica, ecológica e ética não é capaz de fraturar a unidade substancial (também psicológica) da vida. No fundo, a metamorfose é também a estrutura da relação que, a partir de Darwin, a biologia deve ser capaz de considerar entre as espécies: cada espécie não tem nada de original; é a modificação de uma forma que já existia, literalmente sua borboleta.
Por que você se interessou em explorar essa ideia de metamorfose?
Porque é a estrutura de relação que todos os seres vivos têm com a Terra: a vida em sua totalidade nada mais é do que o casulo dessa enorme lagarta que é Gaia. Ora, a universalidade desta estrutura, muitas vezes invisível, é o efeito imediato de um fato extremamente banal, ao qual, no entanto, prestamos muito pouca atenção: que todos os seres vivos, independentemente da espécie a que pertençam, devem nascer para poder existir. Dito assim, pode parecer uma espécie de tautologia, mas não é. Em primeiro lugar, o nascimento é o fato mais elementar da vida, a qualidade que distingue o vivo do não vivo. Só nasce quem vive, a ponto de que a própria palavra “natureza” deriva do verbo latino “nascer”: a natureza é a memória de quem nasce.
Nascer não é sinônimo de existir. Pelo contrário, nascer significa que, para existir, é necessário tomar emprestado, usar um corpo ou, melhor dito, uma carne, que já está viva. Cada um de nós não começou a existir em uma porção de matéria virgem: tomamos um pouco de carne de nossa mãe e pai. Todos os seres vivos são vidas de segunda mão, moléculas recicladas e usadas, que buscam dar a essa carne outra forma, outro destino. Assim como os insetos, somos forçados a transformar o que os outros foram, a usar o que sentimos, experimentamos e pensamos para nos tornar o que somos. Entender que existe uma continuidade carnal e psíquica com tudo o que nos cerca nos ajuda a mudar a relação com o ambiente.
Sua filosofia, muitas vezes, desafia as dicotomias tradicionais entre natureza e cultura, humano e não humano. Em um mundo cada vez mais polarizado, como podemos cultivar uma compreensão mais fluida e relacional da existência?
Seria o caso de começar pelas cidades. Há pelo menos um século, a antropologia nos ensina que a espécie humana só conseguiu desenvolver uma relação estável com áreas geográficas específicas e abandonar o estilo de vida do caçador-coletor quando algumas comunidades decidiram vincular sua existência, de forma fiel e permanente, a um número relativamente pequeno de árvores e arbustos que podiam lhes fornecer alimento e abrigo. Assim, nasceu o primeiro jardim. Foi este estranho ato de fidelidade espacial e existencial à vida vegetal que deu origem ao ambiente urbano. O jardim não é um elemento perturbador do tecido urbano; é o fato urbano original. Isto é significativo porque atesta que a relação entre as espécies não é tangencialmente urbana. A relação interespecífica não é apenas a premissa, mas também a forma de todas as cidades.
Nesse sentido, como podemos gerar uma cidade mais respeitosa a todos os seres vivos?
O urbanismo é originalmente uma realidade multiespécie: coincide com um processo de domesticação mútua em que ao menos duas espécies se escolhem e se convertem em seu “lar” (domus). Para fazer uma cidade, é necessário domesticar uma espécie diferente e, vice-versa, deixar-se domesticar por ela. As espécies vegetais nos domesticam, transformam nossa espécie em seu novo lar. E, desse ponto de vista, não faz diferença se é o caso de espécies vegetais ou minerais: toda cidade é esse movimento que transforma uma vida no lar de outra. Cada espécie produz “urbanismo” ao se associar a outras, e vice-versa. O urbanismo é sempre um sintoma da coexistência de ao menos duas espécies. Além disso, esta associação é essencial para o próprio sustento físico de qualquer realidade urbana.
Como Carolyn Steele e William Cronon demonstraram, a imagem da cidade como um espaço geográfico fisicamente habitado e ocupado pela comunidade de cidadãos humanos, sob a autoridade de um único poder administrativo, é ilusória. Chicago, Paris, Buenos Aires e Pequim existem muito além de seus limites administrativos e abrangem, de fato, todas as terras habitadas por todas as plantações e rebanho necessários para manter as comunidades urbanas. Cada cidade é uma comunidade agrícola e pecuária interespecífica; melhor dito, um projeto agropecuário que muitas vezes elimina e exila sua condição de possibilidade para fora de sua fronteira simbólica. Esta evidência deveria mudar radicalmente a própria ideia de arquitetura e urbanismo.
Em um contexto de sobrecarga de informações e aceleracionismo, como podemos recuperar o sentido do tempo, cultivar uma vida cotidiana mais plena e significativa e distinguir a desesperança da possibilidade de futuro?
Sem se deixar assustar pelo que acontece. E repensando a própria ideia de técnica. Para isso, poderíamos, por exemplo, deixar-nos inspirar pelos Pokémon, já que este jogo nos ensina muito sobre o que é a tecnologia e sobre como imaginar a cidade do futuro. Pode parecer uma provocação, mas há pelo menos duas razões pelas quais deveríamos repensar a ecologia a partir do Pikachu. Como todos sabemos, os Pokémon são criaturas naturais, como animais fabulosos ou espíritos da floresta, com poderes incríveis. As crianças são seus treinadores e, para criar laços com eles, precisam de uma série de dispositivos de alta tecnologia: pokédex, pulseiras e, sobretudo, pokébolas.
Se é interessante e urgente deixar-se inspirar pelas aventuras de Ash e Pikachu, é porque sugerem que a relação com os espíritos sagrados da natureza e da Terra só pode ser estabelecida com o equivalente aos nossos smartphones: são uma fusão improvável, mas eficaz, de alta tecnologia e xamanismo. É difícil pensar em uma ideia melhor: a tecnologia não existe para nos defender ou nos manter distantes das florestas, rios, fungos, animais, bactérias ou tempestades, mas para nos conectar e interagir com seu lado mais espiritual. Toda tecnologia deve ser uma relação espiritual com o mundo, e não tem como estabelecer uma relação espiritual com outros seres vivos sem inventar um artefato que torne visível o espírito capturado na matéria.
Diante da ascensão do fascismo e da normalização da crueldade, como podemos defender os direitos humanos e promover uma cultura de empatia e solidariedade?
Penso que também neste caso devemos evitar ser dominados pelo medo. Estamos passando por um período de mudanças cruciais sob todos os pontos de vista: ecológico, econômico, geopolítico. As velhas estruturas estão ruindo e, em vez de gritar por causa da deterioração dos Estados (agora reduzidos a associações de crime legalizado), deveríamos começar a estudar novamente. E, sobretudo, imaginar como construir novas plataformas de constituição política planetária. Está claro que os desafios mais importantes do nosso século não podem mais ser resolvidos em nível nacional.
Por um lado, as finanças produzem uma riqueza que não está mais vinculada a um território, sendo necessário, portanto, pensar em uma estrutura capaz de drenar esta riqueza em escala planetária e redistribuí-la de maneira equitativa. A mudança climática tornou as diferenças nacionais completamente inúteis. Por isso, devemos começar a nos considerar cidadãos de um único planeta compartilhado por todas as espécies.
Por último, os riscos à saúde demonstram que as políticas implementadas exclusivamente em nível estatal são ineficazes. É também por isso que devemos repensar a nossa unidade sobre uma base planetária. Em vez de nos concentrarmos nos horrores, devemos nos esforçar para construir alternativas. Os Estados-nação não podem mais nos proporcionar a felicidade e a justiça que necessitamos. Construamos outras formações políticas alternativas, em vez de nos limitarmos à queixa e à acusação.
Qual é o papel da criatividade na construção de um futuro mais habitável e justo? Como podemos visualizar transformações reais e não modas passageiras?
Por meio da imaginação e da refundação do sistema de conhecimentos e, sobretudo, da educação. As universidades não são mais capazes de nos proporcionar o mapa de nosso tempo. Estão presas a um mundo que não existe mais. Por exemplo, ainda vivemos em um sistema educacional que separa de forma ridícula as ciências humanas e as ciências naturais. Desenvolvemos tecnologias incríveis e, no entanto, deixamos que a maior parte da população seja completamente ignorante e não tenha a menor ideia de como a IA e um smartphone funcionam. A ordem geopolítica está mudando e, no entanto, o conhecimento do chinês é muito escasso. Precisamos nos esforçar mais: estudar, estudar, estudar e imaginar um mundo diferente por meio do estudo e da imaginação.
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