06 Setembro 2025
“As tarifas de Donald Trump equivalem a um imposto oculto sobre as classes média e trabalhadora, disfarçado na linguagem da soberania. Na prática, equivalem a uma redistribuição para cima e a uma especulação corporativa, o que alimenta a desigualdade que corrói a estabilidade e erode a democracia”. A reflexão é de Christopher Marquis, publicada por Jacobin, 01-09-2025. A tradução é do Cepat.
Christopher Marquis é professor da Universidade de Cambridge e autor de The Profiteers: How Business Privatizes Profits and Socializes Cost.
Eis o artigo.
O sucesso do presidente Donald Trump em implementar sua agenda tarifária tem sido duramente criticado, não apenas pelo abuso de poder e pelos riscos econômicos que cria, mas também pelo setor que será mais prejudicado. Ao aumentar os preços ao consumidor de tudo, de alimentos a eletrodomésticos, essas tarifas atuarão como um imposto oculto sobre os estadunidenses das classes média e trabalhadora. As famílias mais pobres, que gastam uma parcela maior de sua renda em bens básicos, serão as mais afetadas.
Mas o perigo não reside apenas no aumento das contas de supermercado ou nos cortes das redes de segurança social para financiar os cortes de impostos. Décadas de evidências apontam para a mesma conclusão: drenar riqueza para cima não só pune os pobres, como também mina os fundamentos da economia e da própria democracia. A desigualdade não é um efeito colateral lamentável, mas um veneno lento que enfraquece o crescimento, alimenta o ressentimento e torna as sociedades mais frágeis.
Para entender o porquê, é fundamental distinguir entre pobreza e desigualdade. A pobreza é uma condição absoluta: a falta de acesso a necessidades básicas como alimentação, moradia, saúde e educação. A desigualdade, por outro lado, é uma medida de diferença relativa: como renda, riqueza e oportunidades são distribuídas na sociedade. Uma nação pode reduzir a pobreza absoluta e, ao mesmo tempo, tornar-se mais desigual.
Ao contrário das ideias desacreditadas sobre a “economia de gotejamento”, o que acontece quando a riqueza se concentra mais no topo é que os ricos podem implementar políticas para proteger e aumentar sua vantagem: cortar serviços públicos, bloquear a redistribuição e minar os direitos trabalhistas. Todos esses esforços estão sendo intensificados agora sob o governo Trump.
No entanto, as consequências mais profundas permanecem invisíveis para muitos.
Devido à segregação social e econômica, a gravidade da desigualdade e suas consequências são amplamente subestimadas. Quando os pobres sofrem, as injustiças são muito visíveis: mais pessoas dormindo nas ruas e filas mais longas nos bancos de alimentos. Mas quando os ricos enriquecem discretamente, a mudança muitas vezes passa despercebida. Eles se isolam ainda mais em seus condomínios fechados, mandam seus filhos para escolas particulares de elite e viajam cada vez mais em jatos particulares.
Como documentou o sociólogo Matthew Desmond, a política estadunidense já favorecia sistematicamente os ricos, mesmo antes de Trump (em questões que iam desde deduções de juros de hipotecas até doações para universidades isentas de impostos), enquanto os pobres recebiam apoio estigmatizado e insuficiente. A desigualdade extrema não apenas coexiste com a pobreza, como a perpetua.
Mas os analistas que defendem a acumulação de riqueza frequentemente afirmam que a desigualdade é uma distração: contanto que todos os outros tenham o suficiente, o que importa quanta riqueza se acumula no topo?
Esta lógica é sedutora, porém equivocada.
O aumento da desigualdade não prejudica apenas os pobres, mas também sobrecarrega toda a economia. Até mesmo as pesquisas de instituições prestigiosas como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que quanto mais desequilibrada uma sociedade, mais fraca se torna sua economia: um aumento de 1% na desigualdade de renda pode reduzir o PIB de um país em mais de 1%.
Os motivos são simples: quando se corta os salários, as empresas perdem clientes. Quando as escolas públicas ficam sem recursos, os talentos não são desenvolvidos. Os ricos podem poupar e investir, mas esses investimentos frequentemente buscam retornos especulativos através de imóveis, capital de risco e capital privado, em vez do tipo de crescimento produtivo que as economias saudáveis precisam. Assim, também as pesquisas do Fundo Monetário Internacional mostraram que países com alta desigualdade apresentam crescimento menor e menos sustentável.
Nas últimas décadas, a desigualdade atingiu um nível que surpreende a muitos. Desde 1980, a renda do 1% mais rico nos Estados Unidos cresceu cinco vezes mais rápido do que a dos 90% mais pobres. Um relatório da Oxfam de 2023 revelou que, de cada US$ 100 de riqueza criada entre 2012 e 2021, US$ 54,40 foram para o 1% mais rico, enquanto os 50% mais pobres receberam US$ 0,70.
Nas sociedades mais desiguais, a família em que se nasce é mais importante do que as habilidades de cada um. As crianças ricas frequentam escolas melhores, recebem aulas particulares e têm acesso a redes que reproduzem privilégios. As crianças pobres, por sua vez, são forçadas a sistemas com poucos recursos, são criadas por pais sobrecarregados e têm poucas oportunidades de ascender socialmente. Como resultado, a grande maioria das pessoas nunca tem a chance de atingir seu potencial, comprometendo a inovação e as oportunidades.
Talvez o mais perigoso seja o fato de a alta desigualdade desintegrar o tecido social. Como mostram sociólogos como Rachel Sherman e John Osburg em contextos tão diversos quanto Nova York e Chengdu, na China, o aumento da desigualdade gera ansiedade e insegurança até mesmo entre a elite, que se compara constantemente com seus pares ainda mais ricos. À medida que a desigualdade aumenta, todos sentem que estão sendo deixados para trás.
Além disso, à medida que a classe média acredita cada vez mais que aqueles que estão no topo não estão pagando sua parte justa, eles se tornam mais ressentidos e menos dispostos a apoiar instituições públicas ou o bem-estar social, sentindo que estão arcando injustamente com todo o fardo. Assim, a desigualdade tem efeitos prejudiciais sobre os processos democráticos: países com maior desigualdade relatam consistentemente níveis mais baixos de confiança, taxas mais altas de violência e piores resultados em saúde pública. As pessoas deixam de acreditar que a sociedade é justa ou que vale a pena participar dela.
Dizem que o juiz da Suprema Corte Louis Brandeis teria alertado: “Podemos ter democracia ou uma imensa riqueza concentrada nas mãos de poucos, mas não as duas coisas juntas”.
As críticas às políticas econômicas de Trump, desde as tarifas até o orçamento e sua agenda desregulamentadora, precisam ser mais contundentes. Não se trata apenas de uma questão de equidade e justiça. O problema também é a traição aos princípios fundamentais de uma economia e democracia saudáveis. O resultado do mandato de Trump como presidente não será apenas que os pobres ficarão mais pobres, mas também um país mais fraco, com mais raiva, instabilidade e menos inovação.
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