Necropolítica climática. Artigo de Julia Steinberger

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30 Agosto 2025

“A necropolítica climática implica que estamos sendo sacrificados. Não há nada de passivo, nem de natural nesse processo”, escreve Julia Steinberger, pesquisadora e professora de Economia Ecológica na Universidade de Lausanne, em artigo publicado por La Marea-Climática, 28-08-2025. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

A “necropolítica” é a política da morte. O filósofo camaronês Achille Mbembe cunhou este termo para descrever a política mortífera do colonialismo: condições em que aqueles que estão no poder não precisam se preocupar com quem vive ou morre. As prioridades dos colonizadores estão em outro lugar: na terra, no poder e na riqueza. Os colonizados são deixados em condições em que suas vidas sequer são secundárias, mas irrelevantes.

A necropolítica é a política de estar em condições próximas à morte, que levam à morte. Aqueles que sobrevivem (ou não) sob ela recebem constantemente o lembrete de que suas vidas não significam nada, que não têm importância, nem consequências para os que estão no poder.

Nosso tempo está cheio de necropolíticas: o genocídio em Gaza demonstra o quão pouco as vidas palestinas valem para os governos europeus e estadunidense (enquanto Israel simplesmente os quer mortos). E a geopolítica para os Emirados Árabes Unidos é necropolítica para milhões de pessoas no Sudão. Nossas fronteiras-fortaleza são necropolítica para os migrantes, e a austeridade é simplesmente necropolítica econômica. Tudo isto funciona como um lembrete constante de que, para os que detêm o poder, nossas vidas não valem nada (ou menos que nada).

A necropolítica climática opera em uma escala ainda maior e mais prolongada. O abrasamento global nos coloca em condições de proximidade cada vez mais frequente com a morte: ondas de calor mortais, megaincêndios, inundações em massa. O fornecimento de alimentos se torna incerto, a água potável escassa, novas doenças se espalham. A cada ano, enfrentamos algumas destas formas, enquanto o anjo da morte climática sobrevoa cada vez mais de perto nossas casas.

É um jogo de espera e sofrimento. Este ano, acredito que minha família sobreviverá à onda de calor. Mas e no ano que vem? E no ano seguinte? Este ano, ainda consigo manter algumas árvores em nossa cidade regadas e vivas. E no próximo ano? E no seguinte? Em algum momento, não será suficiente. Este ano, as florestas da nossa região não sofreram muito, só algumas árvores morreram. E no ano que vem? E no seguinte? Algum dia, muitas secarão. É apenas uma questão de tempo até vermos as chamas dos incêndios florestais se arrastando sobre nossas colinas outrora verdes, descendo para encher nossos vales de fumaça.

Sob a necropolítica, cada decisão que tomamos se torna uma questão de sobrevivência, de prolongar o jogo da espera. Que roupa me protegerá melhor na onda de calor? Qual bairro tem menos probabilidade de inundar? Qual apartamento escolher? Aqueles que costumavam ser seguros, inclusive desejáveis, agora se tornaram armadilhas de calor mortais. E o que acontece com aqueles que tomam decisões equivocadas ou aqueles que não podem se permitir as corretas? Perdem mais rápido, morrem em maior número.

A necropolítica climática implica que estamos sendo sacrificados. Não há nada de passivo, nem de natural nesse processo. Aimé Césaire falava de “bumerangue imperial”, o processo mediante o qual a violência que começou contra as colônias seria reimportada para os colonizados. A necropolítica climática é o último bumerangue imperial: as grandes forças econômicas e industriais que levaram os países europeus a tomarem posse de terras e riquezas estão agora voltando para casa, em escala planetária.

As grandes companhias de combustíveis fósseis são os grandes poderes de nosso tempo, algumas adotam até mesmo a forma de Estado. Exxon-Mobil, BP, Shell, Gazprom, Saudi Aramco: todas decidiram que o poder e a riqueza valem mais do que todas as nossas vidas. Não vemos os diretores executivos das companhias fósseis (e, claro, todos aqueles que as apoiam) percorrer nossos bairros como mensageiros do anjo da morte, de casa em casa, levando uma pessoa aqui, outra ali, para os campos de extermínio. Mas, é o que fazem, e sabem que estão fazendo isso. Fizeram as contas, e nossas vidas, bem, simplesmente não lhes importam.

Sentada no meio de uma onda de calor europeia, às 4h da manhã, quando está quase suportável lá fora, eu me pergunto o que mudaria se pudéssemos reconhecer esses monstros (pelo que eles são). Se pudéssemos reconhecer a necropolítica como um ataque contra todos nós, se pudéssemos nos sentir motivados a lutar e resistir. Como qualquer poder colonizador, a indústria dos combustíveis fósseis e seus amigos criaram infraestruturas para manter o seu poder. Elas vão das armadilhas legais à desinformação em massa, da corrupção política à criação de uma cultura neoliberal de indivíduos impotentes. O alcance e a magnitude dessas infraestruturas são, por si só, assustadores, mas também demonstram que eles sabem que poderíamos - e gostaríamos - derrubá-los, se tivéssemos ao menos meia chance.

Preparando-me para o calor do dia, pergunto-me onde poderíamos encontrar essa meia chance…

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