27 Agosto 2025
Vista do espaço, a Antártica parece muito mais simples do que outros continentes: uma grande camada de gelo em contraste com as águas escuras do Oceano Antártico que a cerca. Mas, ao se aproximar, o que aparece não é uma simples camada de água congelada, mas uma interação extraordinária e complexa entre o oceano, o gelo marinho, as plataformas e as camadas de gelo.
A reportagem é de Matt Simon, publicada por Grist e reproduzida por La Marea-Climática, 26-08-2025. A tradução é do Cepat.
Essa relação está em sério perigo. Um novo artigo científico publicado na revista Nature relata como várias “mudanças abruptas” - como a perda drástica de gelo marinho na última década - estão ocorrendo na Antártica e em suas águas circundantes, reforçando-se mutuamente e ameaçando levar o continente ao ponto de não retorno. O resultado: inundações em cidades costeiras em todo o mundo, conforme o nível do mar for subindo em vários metros.
“Estamos vendo toda uma série de mudanças abruptas e surpreendentes na Antártica, mas não acontecem de maneira isolada”, destaca a cientista do clima Nerilie Abram, autora principal do estudo (realizou a pesquisa na Universidade Nacional da Austrália, embora agora seja cientista-chefe da Divisão Antártica Australiana). “Quando alteramos uma parte do sistema, isto cria efeitos em cascata que pioram as mudanças em outras partes. E estamos falando de transformações com consequências globais”.
Os cientistas definem a mudança abrupta como aquela em que uma parte do ambiente se modifica muito mais rápido do que o esperado. Na Antártica, essas mudanças podem ocorrer em escalas de tempo muito diferentes: dias ou semanas, no caso do colapso de uma plataforma de gelo, e séculos ou mais, no caso das camadas de gelo. O problema é que, conforme os seres humanos seguem aquecendo o planeta, essas mudanças abruptas podem se retroalimentar e se tornar imparáveis. “São as decisões que estamos tomando agora sobre as emissões de gases do efeito estufa, nesta década e na seguinte, que determinarão os compromissos com mudanças de muito longo prazo”, adverte Abram.
Um dos principais motores das crises em cadeia da Antártica é a perda de gelo marinho flutuante, formada no inverno. Em 2014, atingiu sua extensão máxima já registrada, desde que, em 1978, começaram as observações por satélite: 20,11 milhões de km². Desde então, a cobertura caiu tão vertiginosamente que recuou cerca de 120 km em direção à costa. Durante os invernos, quando o gelo marinho atinge seu pico, a diminuição na Antártica foi 4,4 vezes mais rápida do que no Ártico, na última década.
Em outras palavras, em apenas dez anos, a Antártica perdeu, no inverno, a mesma quantidade de gelo marinho que o Ártico, nos últimos 46 anos. “Sempre se pensou que a Antártica não estava mudando em comparação com o Ártico, mas agora vemos sinais claros de que não é mais assim”, afirma o climatologista Ryan Fogt, da Universidade de Ohio, que não participou do estudo. “Estamos vendo mudanças tão rápidas - e, em muitos casos, mais rápidas - na Antártica quanto no Ártico”.
Embora os cientistas precisem de mais dados para confirmar se este é o início de uma mudança fundamental, os sinais são preocupantes. “Estamos começando a ver como se desenha o panorama de que talvez estejamos entrando em uma nova etapa de perda dramática de gelo marinho antártico”, afirma Zachary M. Labe, pesquisador do Climate Central.
Um círculo vicioso e possivelmente irreversível
Esse declínio extraordinário está desencadeando um ciclo de retroalimentação climática. O Ártico está aquecendo cerca de quatro vezes mais rápido do que o resto do planeta, em grande parte porque perdeu a refletividade. O gelo marinho é branco e brilhante e devolve a energia solar ao espaço, resfriando a região. Quando desaparece, expõe águas escuras que absorvem essa energia. Menos refletividade significa mais aquecimento, derretendo mais gelo, gerando ainda mais aquecimento, e assim por diante. “Prevemos que esse mesmo processo ocorra agora no hemisfério sul, porque perdemos uma quantidade equivalente de gelo marinho”, disse Abram.
Em torno da Antártica, no entanto, as consequências podem ser ainda maiores e mais complexas do que no Ártico, e talvez irreversíveis. Os modelos climáticos preveem que, se o clima global se estabilizasse, o gelo marinho ártico também se estabilizaria. “Não vemos o mesmo na Antártica”, alerta Abram. “Mesmo que você estabilize o clima e faça simulações por séculos, o gelo marinho antártico segue diminuindo porque o Oceano Antártico continua absorvendo calor extra da atmosfera”.
Isso pode ser desastroso para a enorme massa de gelo do continente. Consiste em duas partes: as camadas de gelo, apoiadas sobre a terra, e as plataformas de gelo, que flutuam no mar. O problema não é tanto o derretimento de cima, mas as águas cada vez mais quentes que erodem as plataformas por baixo. E quanto mais o gelo marinho desaparece, mais essas águas esquentam. Além disso, o gelo marinho funciona como um escudo, absorvendo a energia das ondas que, de outra forma, colidiriam com as bordas das plataformas até fraturá-las.
O gelo marinho sustenta as plataformas e elas sustentam as camadas de gelo continentais. “Quando as plataformas derretem, param de segurar as camadas de gelo atrás delas, e isso acelera o fluxo de gelo para o oceano”, detalha Matthew England, oceanógrafo e coautor do estudo. Uma dessas camadas, a da Antártica Ocidental, pode entrar em colapso se a temperatura global atingir dois graus acima dos níveis pré-industriais, elevando o nível do mar em mais de três metros. E mesmo antes desse limite, pode entrar em colapso parcial.
Conforme derretem, as plataformas também alteram um sistema oceânico fundamental: a AMOC (Circulação Meridional do Atlântico). Quando o gelo marinho se forma, elimina sal gerando água muito fria e salgada que se funde devido à sua densidade e alimenta a circulação oceânica. Contudo, o degelo a dilui, abrandando o processo e permitindo que mais água quente chegue às plataformas e ao gelo marinho. “Esta retroalimentação amplificadora ocorre entre os sistemas”, destaca England. “Do oceano ao gelo, e do gelo de volta ao oceano, podendo desencadear uma mudança descontrolada e fazer com que a circulação colapse por completo”.
Essa circulação também eleva as águas profundas carregadas de nutrientes para o fitoplâncton, pequenos organismos fotossintéticos que absorvem carbono e liberam oxigênio. São responsáveis por sequestrar metade do carbono da fotossíntese mundial e constituem a base da cadeia alimentar: alimentam o zooplâncton, que por sua vez alimenta peixes e crustáceos. O gelo marinho também é, além disso, um habitat fundamental para eles, razão pela qual perderiam tanto o seu abrigo quanto seus nutrientes.
Os pinguins-imperadores também se reproduzem sobre o gelo marinho estável, onde seus filhotes desenvolvem as penas impermeáveis de que precisam para nadar. “Esse gelo está desaparecendo antes mesmo que os filhotes consigam emplumar. Quando isso acontece, toda a colônia sofre um fracasso reprodutivo na temporada”, disse Abram. “Estamos vendo esses colapsos reprodutivos catastróficos em todo o continente”.
O aquecimento implacável da Antártica e de suas águas é uma tendência de longo prazo - uma espécie de doença crônica do extremo sul -, mas se vê agravada por ataques agudos, como a onda de calor de março de 2022, na Antártica Oriental, que disparou as temperaturas 40 graus acima do normal, pulverizando recordes e deixando a comunidade científica atônita. “A intensidade desse evento extremo”, explica Fogt, “pode levar regiões já vulneráveis a um ponto de não retorno, do qual não se recuperarão por muito, muito tempo”.
A pequena boa notícia é que, a cada ano, os pesquisadores reúnem mais dados sobre como a Antártica responde à mudança climática provocada pelo ser humano, o que permite modelar com maior precisão o que poderá acontecer nas próximas décadas. E os cientistas sabem muito bem como tratar essa “doença crônica”: reduzir de forma imediata e drástica as emissões de gases do efeito estufa ou enfrentar as consequências. “Cada fração de grau de aquecimento que podemos evitar aumenta as possibilidades de escapar dessas mudanças catastróficas”, adverte England. “Um aumento do nível do mar de vários metros significará uma instabilidade política global que eclipsará o que vemos agora”.
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