25 Agosto 2025
"Se há uma saída, não é pela nostalgia. A ordem mundial em colapso participou da dominação e da exploração. O que precisamos é de algo mais profundo: reformular o mundo como um espaço de relacionamentos e cuidado."
A opinião é de Michael Marder, filósofo e professor pesquisador na Ikerbasque (Fundação de Ciências Bascas da Universidade do País Basco). É autor de Pyropolitics in a World on Fire (NED Ediciones). O artigo é publicado por El País, 25-08-2025.
Eis o artigo.
Um dos muitos motivos para o desespero na era atual de genocídios transmitidos ao vivo e redistribuição acelerada de riqueza em favor da classe bilionária é que o fim da ordem mundial está chegando logo após uma sensação de fim do mundo devido à catástrofe das mudanças climáticas.
Em 2025, o colapso da arquitetura política internacional do pós-guerra — visível na deterioração das instituições multilaterais, no recuo das normas de cooperação e na ascensão de soberanias populistas — coincidiu com outro desastre mais tangível: o enfraquecimento da base ecológica da vida. Essas não são duas tendências paralelas, mas sim que se reforçam mutuamente. A decomposição das estruturas políticas desencadeou uma corrida armamentista pelo controle da segurança, do poder e da tecnologia, que está exacerbando a crise climática e acelerando o fim do mundo em seu sentido mais literal.
Mas devemos lembrar que o conceito de mundo não é inócuo. Ele é marcado por sua origem teológica e sua designação como um espaço mundano, separado do sagrado e, portanto, sujeito à dominação e à exploração. Na esfera política, também tem sido associado a períodos de expansão imperial. No entanto, é muito cedo (ou muito tarde) para abandonar a ideia do mundo como um projeto aberto, um espaço-tempo de julgamentos compartilhados negociados entre diferenças. Cada vez mais, a resposta ideológica implícita à afirmação revolucionária de que "outro mundo é possível" é que "o mundo, como ele é, é impossível". A decomposição atual é devastadora: impede a própria possibilidade de um futuro. Se não houver mais um mundo — como um conceito significativo e como uma realidade — não haverá outra guerra mundial, mas uma guerra global.
O sintoma mais claro do mundo em declínio é a nova corrida armamentista, que inclui, além das armas tradicionais, a inteligência artificial, a vigilância espacial e a guerra cibernética. A diplomacia está em declínio e a segurança agora é definida em termos de prevenção, estocagem e escalada. A própria Terra, já sofrendo com uma crise ecológica, está sendo sacrificada no altar-mor da retomada militar.
De Washington a Pequim e de Moscou a Delhi, governos estão dedicando recursos sem precedentes aos orçamentos de defesa. A OTAN elevou sua meta de gastos de 2% do PIB para o que, na prática, representa um novo patamar de lealdade. A Espanha, há muito relutante em aceitar a integração militar plena, encontra-se agora em uma encruzilhada. Madri recebe crescentes demandas para aumentar os gastos com defesa, mas a opinião pública permanece cética.
Ao contrário de alguns de seus vizinhos europeus, as razões da Espanha para resistir não são meramente econômicas, mas também éticas e históricas. Os espanhóis, ainda sofrendo as cicatrizes da ditadura, estão preocupados com a perspectiva de normalizar a lógica militar na vida civil. A nova geração de ativistas argumenta que as verdadeiras ameaças são os fatores internos de deterioração: seca, insegurança alimentar, desigualdade e a indústria extrativa.
A corrida não é apenas militar e industrial, mas também ocorre nos campos da inteligência artificial, armas autônomas e militarização da órbita espacial. Estamos entrando em uma era em que a inteligência é artificial e não presta contas a ninguém, o julgamento é terceirizado e a responsabilidade se evapora. O fracassado Acordo de Genebra no início deste ano deixou um vácuo que está sendo rapidamente preenchido por agressões. Os governos estão fazendo imensos investimentos em sistemas projetados para prever, antecipar e punir — em suma, para governar usando violência antecipatória. As tecnologias de IA, de forma alguma ferramentas neutras, não exigem um mundo como pré-requisito lógico, embora exijam enormes quantidades de recursos. Armas baseadas nessa tecnologia desestabilizam ecossistemas inteiros e combinam genocídio e ecocídio. Fazendas de servidores consomem enormes quantidades de eletricidade, água e terras raras. A mineração de lítio já devastou regiões inteiras da Bolívia, Chile e República Democrática do Congo. O objetivo de garantir a segurança nacional torna o planeta cada vez mais inseguro. Os gastos militares com logística, testes de armas e frotas navais movidas a combustíveis fósseis continuam aumentando, mesmo que precisemos descarbonizar nossas vidas para enfrentar a crise climática.
As ondas de calor que atingiram o Mediterrâneo neste verão — com temperaturas recordes em Túnis, Atenas e Córdoba — não são um simples fenômeno meteorológico; são uma declaração. A linguagem das emergências deixou de ser a exceção e se tornou a norma.
No entanto, esses fenômenos — guerra, clima, IA, migração — nunca são abordados como elementos inter-relacionados, mas sim como cada um por si. A governança moderna divide a complexidade e burocratiza as crises, recusando-se a compreender o ponto essencial: que esses não são problemas paralelos, mas sintomas da destruição do mundo. O rastro que deixam para trás não é uma possível nova ordem mundial, mas a precariedade do planeta.
Ao mesmo tempo, a própria capacidade de resposta comum está se erodindo. As cúpulas do clima estão cada vez mais performáticas e financeirizadas. Promessas são feitas e depois esquecidas. A meta de "emissões líquidas zero" torna-se um álibi para o adiamento de ações. Sem uma ordem mundial que faça a mediação entre a interdependência ecológica e a rivalidade geopolítica, os países retornam ao extrativismo. Entre as vítimas dessa situação está também a ontologia. O próprio mundo está desaparecendo, não apenas como ideia, mas como terreno no qual os seres se relacionam e os significados nascem. As ruínas do mundo são recintos isolados: fortalezas nacionais, câmaras de eco digitais, zonas de extração militarizadas.
Se há uma saída, não é pela nostalgia. A ordem mundial em colapso participou da dominação e da exploração. O que precisamos é de algo mais profundo: reformular o mundo como um espaço de relacionamentos e cuidado. Resistir à militarização da imaginação também é se recusar a ver a Terra como uma reserva de recursos ou um campo de batalha. Devemos prestar atenção e apoiar as formas de vida — não apenas as humanas — que continuam a criar mundos entre as ruínas: agricultores restaurando o solo; comunidades costeiras se reassentando com dignidade; ativistas que se opõem ao extrativismo.
Reconstruir o mundo não significa restaurar o que foi perdido, mas sim deixar claro que, mesmo em meio ao colapso, há um mínimo de significado. Ainda há maneiras de se relacionar e agir que mantêm aberta a possibilidade de algo além da guerra. A corrida armamentista pode ganhar as manchetes, mas se ainda houver futuro, ele não pertencerá àqueles que governam pela força, mas àqueles que ousam viver — com cuidado, com dor e uns com os outros — no que resta de uma Terra acolhedora.
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