06 Agosto 2025
Publicação revela que a maioria dos casos de violência contra indígenas ocorreu na Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, no oeste do estado.
A reportagem é de José Pires, publicada por Plural, 04-08-2025.
Relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) revela que 211 indígenas foram assassinados no país no último ano. O documento Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil - 2024 também apresenta dados alarmantes sobre as diversas formas de violência sofridas pelos povos originários em todos os estados do país no ano passado.
No total, os casos de “violência contra a pessoa” – que abrange assassinatos, homicídios culposos, abuso de poder, ameaças, lesões corporais, racismo, tentativa de assassinato e violência sexual contra povos originários – aumentaram de 411 para 424, um crescimento de 3,1%.
Os estados que registraram mais assassinatos de indígenas em 2024 foram Roraima com 57, Mato Grosso do Sul com 33, Amazonas com 45, Bahia com 23, Rio Grande do Sul com sete e Maranhão com seis assassinatos. Do total de vítimas, 159 eram do gênero masculino e 52 do feminino.
Segundo o documento, 154 conflitos referentes a direitos territoriais foram registrados em pelo menos 114 Terras Indígenas em 19 estados. O ano foi marcado por graves e violentos ataques armados contra comunidades indígenas em luta pela demarcação de suas terras, especialmente nos territórios Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, Avá-Guarani, no oeste do Paraná, e Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe, no sul e extremo sul da Bahia.
“Há uma sensação de desumanização relacionada aos povos indígenas. A violência contra eles é sistêmica e generalizada. Seus territórios são atingidos pelo garimpo, por madeireiras e incêndios criminosos. E muito disso se dá por omissão do poder público”, afirmou Roberto Liebgott, um dos organizadores do relatório.
No estado do Paraná, segundo o relatório, 72 episódios de violência foram registrados contra indígenas. São casos onde eles foram vítimas de homicídio, homicídio culposo, tentativa de assassinato, lesão corporal, violência sexual, ameaças, racismo e discriminação, abuso de autoridade, violência por omissão do poder público, entre outros.
A maioria dos registros foi contra o povo Ava-Guarani da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, nos municípios de Guaíra, Terra Roxa e Altônia no oeste paranaense.
As informações sobre assassinatos contra indígenas no Brasil foram obtidas pelo Cimi junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a secretarias estaduais de saúde e ao Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), por meio de pedidos realizados via Lei de Acesso à Informação (LAI) e de consultas a bases de dados públicas disponibilizadas pelos órgãos. Segundo o Conselho, “como em anos anteriores, é importante ressaltar que os dados obtidos junto a órgãos públicos são parciais e continuam sendo atualizados ao longo do ano, podendo sofrer alterações à medida que as bases de informação são alimentadas”.
O Paraná registrou três homicídios de indígenas. Um deles aconteceu em março de 2024 na Terra Indígena Mangueirinha, no sudoeste do estado. Adão Ferreira, de 62 anos, foi morto com golpes de machado pelo próprio filho.
Em 2024, foram registrados 19 casos de homicídio culposo contra indígenas em todo o país, com 20 vítimas. Destas, 16 foram mortas por atropelamento, uma por tiro acidental, uma por queimadura acidental e duas por contaminação por agrotóxicos. Nosso estado contabilizou sete destas vítimas. A maioria dos casos aconteceu na Terra Indígena Rio das Cobras, considerada a maior reserva indígena do estado do Paraná e que abriga o povo Kaingang. Lá, cinco indígenas morreram atropelados na BR 277 no município de Nova Laranjeiras.
Foram registrados, conforme o Relatório, 35 casos de ameaças várias contra povos indígenas em 2024. Foram quatro no Acre, cinco no Amazonas, uma no Ceará, quatro no Maranhão, uma em Minas Gerais, quatro em Mato Grosso do Sul, duas no Mato Grosso, uma em Pernambuco, uma em Roraima, quatro no Rio Grande do Sul, duas em Santa Catarina, uma no Tocantins e cinco no Paraná.
Em solo paranaense, a maioria das ameaças foi registrada contra os Ava-Guarani no município de Guaíra. Uma delas aconteceu em julho na Tekoha Ara Poty e na Tekoha Arakoé. Na ocasião, fazendeiros criaram uma barreira para impedir a chegada de apoio a essas comunidades que dias antes tinham ocupado áreas de fazendas sobrepostas sobre a Terra Indígena Guasu Guavirá. Um missionário do Cimi, acompanhado de uma liderança Avá-Guarani, foi impedido de entregar alimentos e lona às duas aldeias. Durante o trajeto, foram perseguidos por homens dirigindo uma caminhonete uma estrada de terra. O missionário, então, deixou os alimentos na sede da Funai de Guaíra para que os servidores fizessem a entrega à comunidade.
A maioria dos casos de lesão corporal e tentativas de assassinato no Paraná foi registrada também contra os Guaranis da Terra Indígena Guasu Guavirá.
Em 2024, conforme o levantamento do Cimi, foram registrados 31 casos de tentativa de assassinato de indígenas no Brasil, contra pessoas ou comunidades inteiras. O Acre registrou um caso, o Amazonas um, a Bahia dois, o Maranhão quatro, o Mato Grosso do Sul 14, Rondônia três e Santa Catarina dois. O Paraná, por sua vez, registrou quatro episódios.
Segundo o Cimi, o contexto das ocorrências envolve ataques coordenados contra comunidades indígenas, perseguição a lideranças, agressões estimuladas por racismo e violência interna, geralmente potencializada pelo consumo de bebidas alcoólicas. “Vários casos foram registrados em meio a ataques contra comunidades indígenas em luta pela terra. Fazendeiros, pistoleiros e invasores atiraram contra comunidades inteiras. O tipo de munição e armamento utilizados, os locais atingidos e o fato de que, em alguns casos, houve mortes, indicam que esses ataques visavam a eliminação de tantas pessoas quanto fosse possível”, aponta o relatório.
No ano passado foram registrados 20 casos de violência sexual contra crianças, adolescentes, homens e mulheres indígenas. Os relatos causam espanto e indignação não apenas pela crueldade dos casos, mas também pela característica das vítimas: dos 20 casos registrados, 14 foram cometidos contra crianças e adolescentes, todas com idades entre 4 e 16 anos. Os registros foram feitos nos estados de Acre com um caso, Amazonas com seis, Mato Grosso com um, Mato Grosso do Sul com cinco, Paraná com dois casos, Rio Grande do Sul com um, Rio de Janeiro com um, Roraima com um e São Paulo e Tocantins com um caso cada.
No oeste paranaense fica a Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá. Nela vivem 4.171 pessoas, sendo 3.016 pessoas no município de Guaíra e 1.085 pessoas no município de Terra Roxa em 24 comunidades locais. A Terra Indígena ainda não está demarcada, fator que tem gerado muitos ataques contra as comunidades Guarani. Há uma liminar na Justiça Federal que impede o andamento do procedimento administrativo de demarcação. Assim, nos últimos anos as comunidades foram retomando espaços dentro da terra já identificada, ampliando as unidades locais ou retomando novas terras. As ampliações e retomadas (definidas como autodemarcação pelas comunidades) resultaram num importante território sob posse das comunidades, perfazendo um total de 736 hectares, sendo 389 em Guaíra e 347 em Terra Roxa.
Essas retomadas, que se intensificaram no início de 2024, foram alvo de diversos ataques promovidos por fazendeiros da região e amplificados pelo discurso de políticos locais e até do governador Ratinho Jr. que chamou os indígenas de “índios paraguaios”.
Em janeiro de 2024, quando os Guarani do Tekoha Y’Hovy se preparavam para iniciar a reza, foram atingidos por disparos de armas de fogo, que feriram quatro pessoas. E durante todo o ano os ataques ocorreram sempre no início da noite. Foi assim no dia 10 de janeiro, nos dias 27 e 28 de agosto, no dia 13 de outubro e nos dias 28 de dezembro e 31 de dezembro. A violência foi extrema e continuada.
A partir dos ataques, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) enviou para a região a Força Nacional, mas isso não impediu que a violência continuasse durante o ano. O Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) incluiu 19 lideranças Avá-Guarani no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH). Outros ataques seguiram, como fogos na mata para atingir as casas e pelo menos dois indígenas feridos por atropelamentos propositais. Em outubro de 2024, também em Guaíra, a liderança da comunidade foi atingida a pauladas na cabeça, tendo levado diversos pontos e inúmeras escoriações pelo corpo, por reclamarem do fazendeiro que quebrou o acordo feito numa audiência com o mediador de conflito indicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O Cimi destaca que lideranças Guarani relatam que o mais comum são as práticas de atropelamento, tanto no espaço urbano como nas margens das rodovias, seguido de pseudoacidentes de carro e moto. “Porém, nos últimos anos, as armas de fogo voltaram a ser usadas para atacar essa população. Não há pessoas punidas pelos ataques. Se para casos de atentados a bala ninguém foi preso, os casos de atropelamento sequer são investigados pelas forças de segurança”, diz o Conselho Indigenista Missionário.
O relatório do Cimi enfatiza que o ano de 2024 foi o primeiro a iniciar sob a vigência da Lei 14.701/2023, aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada nos últimos dias de dezembro de 2023. A expectativa dos povos indígenas e seus aliados era de que, dada a flagrante inconstitucionalidade e o evidente conflito com a recente decisão de repercussão geral sobre o tema, a chamada “Lei do Marco Temporal” fosse rapidamente derrubada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Não foi, contudo, o que aconteceu. A lei permaneceu em vigor durante todo o ano de 2024, fragilizando os direitos territoriais dos povos originários, gerando insegurança e fomentando conflitos e ataques contra comunidades indígenas em todas as regiões do país.
A vigência da Lei 14.701 foi apontada pelo Poder Executivo, responsável pela demarcação das terras indígenas, como um impedimento para avançar com processos administrativos de reconhecimento e regularização de territórios indígenas. Apesar dos questionamentos imediatos à Lei junto à Suprema Corte, o relator dos pedidos optou por mantê-la em vigor e estabelecer uma “Câmara de Conciliação”, reabrindo discussões que já haviam sido superadas pelo próprio STF.
“Como consequência, as demarcações avançaram em ritmo lento e terras indígenas, inclusive já regularizadas, registraram invasões e pressão de grileiros, fazendeiros, caçadores, madeireiros e garimpeiros – entre outros invasores, que se sentiram incentivados pelo contexto de desconfiguração de direitos territoriais. Os números de assassinatos e de suicídios de indígenas mantiveram-se elevados, assim como os casos de desassistência e omissão a povos e comunidades”, destaca o Cimi.