26 Junho 2025
"A consciência da gravidade da situação crítica da Terra e da humanidade torna imprescindíveis mudanças nas mentes (cuidar da Terra como Gaia) e nos corações (estabelecer um laço afetivo e cordial com todos os seres) e forjar uma coalizão de forças em torno de valores comuns e princípios inspiradores que sirvam de fundamento ético e de estímulo para práticas que busquem um modo sustentável de vida", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros, de Cuidar da Casa Comum: como protelar o fim do mundo (Vozes, 2024).
Reinam demasiada inconsciência e profundo negacionismo no mundo, tão graves que podem custar nossa vida neste planeta. O fato é que estamos numa nova fase da Terra e da humanidade: a fase da irrupção da Casa Comum. O Covid-19 deu-nos a lição que ainda não aprendemos: ele não respeitou os limites e soberanias das nações. Mostrou que há uma única Casa Comum e que pode ser toda ela afetada. Mas não tiramos nenhuma lição desse fato. Bem disse o italiano Antonio Gramsci, o grande teórico da política: a história nos dá lições, mas ela quase não tem alunos. Pouquíssimos frequentaram essa escola e os mais omissos foram e são os poderosos deste mundo, pensando mais em suas economias do que em salvar a vida humana e da natureza.
Viemos de um tempo já bem passado e obsoleto aquele do Tratado de Westfália de 1648 que criou a soberania dos Estados. Depois disso, a Terra e a humanidade mudaram profundamente. Os povos dispersos pelos continentes estão voltando do milenar exílio e criando a Casa Comum, na qual todos cabem dentro (com seus mundos culturais particulares). Grande parte das tensões e guerras atuais são feitas dentro deste quadro ultrapassado das soberanias nacionais. Não despertamos para o novo tempo, da unificação do mundo e da espécie humana junto com a natureza, até para salvar-nos.
É urgentíssimo fazermos um pacto social mundial planetário, como fizemos o pacto social de nossas sociedades e aquele da Westfália: um pacto cujo fim é a salvaguarda da vida e da biosfera, ameaçadíssimas pela razão que enlouqueceu, pois, criou os instrumentos de sua própria autodestruição. É imperativo um centro plural, democrático, representando os povos da Terra para administrar os problemas planetários e da natureza e encontrar, democraticamente, uma solução para nós e para a natureza.
A Terra e a humanidade são partes de um vasto universo em evolução e possuem o mesmo destino. A Terra forma com a humanidade uma única entidade complexa e sagrada, o que torna-se claro quando a vemos do espaço exterior como foi testemunhada pelos astronautas. Além disso, a Terra é viva e se comporta como um único sistema autorregulado formado por componentes físicos, químicos, biológicos e humanos que a tornam propícia à produção e reprodução da vida e que por isso é nossa Grande Mãe e nosso Lar Comum.
A ciência nos tem mostrado que a Mãe Terra é composta pelo conjunto de ecossistemas nos quais gerou uma multiplicidade magnífica de formas de vida, todas elas interdependentes e complementares, formando a grande comunidade da vida. Existe um laço de parentesco entre todos os seres vivos porque todos são portadores do mesmo código genético de base que funda a unidade complexa da vida em suas múltiplas formas. Portanto, reina uma real irmandade entre todos os seres especialmente entre os humanos, coisa belamente descrita pelo Papa Francisco em sua encíclica Fratelli tutti (2025),todos, natureza e seres humanos, como irmãos e irmãs. A humanidade como um todo, é parte da comunidade da vida e o momento de consciência e de inteligência da própria Terra, fazendo com que através do ser humano, homem e mulher, sejamos a própria Terra que fala, pensa, sente, ama, cuida e venera.
Importa, entretanto, observar que o contrato social atual ganhou um papel inflacionado e exclusivista. Foi ele que propiciou o antropocentrismo, denunciado pela encíclica Laudato si' do Papa Francisco. Ele instaurou estratégias de apropriação e dominação da natureza e da Mãe Terra criando imensa riqueza para poucos e humilhante pobreza para a maioria. O modo de produção vigente nos últimos séculos, atualmente globalizado, cindiu a humanidade entre o que têm e comem e os que não têm e não comem. Quer dizer, não conseguiu responder às demandas vitais dos povos dividindo em dois a humanidade. Eis um motivo a mais para fundarmos um contrato social planetário que englobe a todos, permitindo-lhe uma vida decente e rica em virtualidades criativas.
A consciência da gravidade da situação crítica da Terra e da humanidade torna imprescindíveis mudanças nas mentes (cuidar da Terra como Gaia) e nos corações (estabelecer um laço afetivo e cordial com todos os seres) e forjar uma coalizão de forças em torno de valores comuns e princípios inspiradores que sirvam de fundamento ético e de estímulo para práticas que busquem um modo sustentável de vida. A Carta da Terra, sob a coordenação de M. Gorbachev e um grupo de cerca de 20 pessoas de vários saberes (tive a honra de participar) fizeram durante anos uma consulta a todos os estratos sociais para levantar tais princípios e valores. Resultou num documento de grande beleza e profundidade que pode ser lido na internet.
Assumida pela Unesco em 2003 se propõe, além de outros fins pedagógicos, criar as bases de um contrato social planetário. Hoje é divulgada e estudada num sem número de países, criando um novo espírito face à Terra e à vida. Chegará o dia em que poderá ser o fundamento do que estamos procurando urgentemente: um contrato social planetário que garanta a todos um bem viver e conviver dentro da Casa Comum.
Confira aqui; veja também O Bem Comum da Terra e da Humanidade, elaborado por Miguel d’Escoto Brockman, enquanto era presidente da Assembleia da ONU 2008-2009 e aqui como base para uma nova configuração da ONU. Leonardo Boff aqui como base para uma nova configuração da ONU.
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